Silviano Santiago
Sobre autores & livros Organização: Frederico Coelho
Para Laura, Rinaldo e demais companheiros
Sumário
Jornal do mundo, por Frederico Coelho ELOGIO DA LITERATURA O novo cosmopolitismo literário Os caninos de animal predador Apreendendo a apreensão Jovens ficcionistas em espanhol Sacola com dentes de ouro Liberdade interior Dentro da perda da memória Ler Lolita no Teerã Mudando minha cabeça Uma rosa fura o asfalto no Harlem Nemesis Desconstruindo o gênero conto Para que escrever literatura? Proust por outro viés Atualidade de Proust Mathieu Lindon A sociedade secreta dos biógrafos Homens partidos ao meio Pecado original da tradução Elogio da literatura A utopia verde-amarela modernista Os três Quincas Mecânica dos trens e da literatura A Jorge o que é de Jorge Três meninas cariocas Soroche, o mal das alturas Verdade poética
Sol da meia-noite As viagens de Camilo Pessanha Rui Knopfli O gato de Schrödinger ALÉM DO CAMPO VISUAL Olhos leem, dedos pensam Além do campo visual Caos e classicismo: 1918-1936 Readymade feito à mão Memória versus esquecimento Ficção teórica Renascença: movimento e gestual Maravilhas em cera de abelha Estar vivo aqui e agora Jean Genet Vida de artista Júlio Bressane … e o deus do cinema comercial contra todos Fernando Pessoa e o cinema História subterrânea e emotiva Preste atenção! Joyce, Tzara, Lênin – e Groucho UMA REVOADA DE VAGA-LUMES Primeira pessoa do singular Raízes do cosmopolitismo no Brasil Favor e voto Euforia e reflexão, a sociabilidade Bons ventos sopraram de Brasília Modos de inserção da América Latina Cosmopolitismo e diversidade cultural Cara de um, focinho do outro Formação e inserção
A comida da arte e da ciência Estética radical Hegel e o Haiti Nacionalismo e estética Londres, capital do século XVIII A terceira idade do cientista O filósofo entra na igreja Morte e vida do autor Dispositivo MBK Uma década de esperanças em declínio O mundo é alvo do olho D. H. Lawrence, o clássico e o pós-humano Uma revoada de vaga-lumes CRÉDITOS SOBRE O AUTOR
Jornal do mundo
sta apresentação poderia ser breve. Bastaria anunciar burocraticamente que o livro a seguir reúne 71 textos retirados da coluna que há quatro anos Silviano Santiago assina quinzenalmente no caderno Sabático, editado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Só que um livro como Aos sábados, pela manhã não é somente mais uma coletânea de textos veiculados em jornais e organizados para uma publicação. Aqui, temos a possibilidade de entrar em contato com um crítico exercendo de forma concisa e direta um pensamento interessado pelos eventos culturais de seu tempo. Nas páginas a seguir, Silviano Santiago nos apresenta uma espécie de obra em progresso, em que a cada sábado o crítico convida o leitor para um novo passo rumo ao risco. Risco de escrever ainda sob o calor de suas leituras. Risco de comentar em espaço mínimo eventos complexos de uma produção cultural cada vez mais emaranhada em redes de saberes e poderes. Risco, enfim, de assumir o lugar exposto de crítico do contemporâneo em um jornal de grande circulação. Este livro, para além de sua superfície cristalina de escrita impecável e fluente, traz uma série de elementos que vale a pena desenvolver aqui de forma mais ampla. Inicialmente, temos que pensar o livro de Silviano em seus aspectos sincrônicos e diacrônicos. No primeiro aspecto, temos o crítico que abraça a simultaneidade de tempos e espaços, amarrando discursos e suportes em arranjos próprios, muitas vezes ativados pela sua perspectiva interdisciplinar e intertextual. Já no aspecto do tempo contínuo e linear, Silviano não abre mão de nos fornecer, quando necessário, o fio condutor da história (seja da literatura, da política ou da arte) e sua marcha contínua entre um antes fundador e um depois em expansão, ambos mediados por um presente crítico dos dois extremos cronológicos. A força desse olhar reside justamente na percepção desse espaço de tensão que se forma entre esses dois aspectos. Sincronia e Diacronia informam o intelectual, estimulam o escritor e absorvem o leitor. Do ponto de vista da origem dos textos aqui apresentados, é importante situarmos historicamente seu meio – o jornal impresso – para que possamos demarcar o lugar específico que Silviano ocupa no atual debate crítico brasileiro. Boa parte dos participantes deste debate carrega um consenso negativo sobre o espaço do pensamento crítico na imprensa. Vemos com frequência um pessimismo contagiante a respeito da produção de ideias e contribuições originais que tenham desdobramentos efetivos entre o interesse público. Tal perspectiva, muitas vezes, não esconde o exagero de seu tom apocalíptico e nos oferece um diagnóstico em que nada do que ocorre hoje tem serventia. Dos muitos pontos presentes nesse debate, gostaria de destacar o fato de que a suposta afasia do nosso meio intelectual não passa especificamente pela qualidade dos que hoje escrevem em jornais e revistas – impressos ou virtuais. Entre grandes nomes do século XX e
E
novos escritores e intelectuais do século XXI, a sobreposição dos meios impressos e dos meios digitais como fonte de publicação e divulgação de ideias nos oferece um generoso cardápio de gostos e dicções por trás dos textos que lemos diariamente. O diagnóstico pessimista sobre o pensamento crítico da atualidade é mais de suporte do que de autoria. Mais de variedade do que de qualidade. Ele decorre, principalmente, da precariedade de veículos relevantes para o exercício crítico em contraste com a abundância que os dois últimos séculos ofereceram ao escritor e ao intelectual no país. Com poucos jornais disponíveis nos principais centros urbanos, a oferta de espaços críticos nos meios impressos tornou-se mínima. Somado ao processo mercadológico de concentração dos suportes, a revolução digital ampliou as possibilidades de publicação e circulação de textos, deslocando o peso centralizador das leituras e conversas ao redor dos temas para outras frentes de produção e consumo de ideias. São poucos os críticos que, hoje em dia, conseguem espaços de fôlego no jornalismo impresso para exercer um olhar independente, seja em tamanho de texto, seja em periodicidade. O tom inevitavelmente nostálgico que esse discurso assume se deve à existência de diversas trajetórias relevantes em nossa história recente que entrelaçam a literatura, o pensamento crítico e o jornalismo brasileiro. Desde o casamento conflituoso, porém inquebrantável, entre literatura e imprensa durante o século XIX, passando pela explosão das revistas ilustradas, dos cronistas urbanos e dos repórteres-escritores dos anos 1900-1910, pela consagração das revistas-manifestos e jornais do Modernismo, pelos diversos suplementos culturais dos anos 1940 e 1950 até a supressão brusca desse espaço e sua reconquista via “abertura” durante o período do regime militar, esse vínculo rendeu alguns dos melhores momentos no pensamento crítico brasileiro. Claro que seria absurdo afirmar que nas últimas três décadas não ocorreram momentos profícuos de ideias e debates no âmbito da imprensa nacional. Ainda nos anos 1980, alguns estudiosos da literatura apontaram para uma espécie de retorno da chamada “crítica de rodapé”, isto é, a crítica literária feita no jornal, porém muito mais em tons jornalísticos do que acadêmicos. O problema, porém, não foi exatamente o retorno do crítico-leitor, mas sim a consolidação do modelo superficial de análise apressada baseada em lançamentos do mercado editorial. A grande narrativa da “crítica de rodapé” das primeiras décadas do século XX, aquela que pensava os livros brasileiros dentro de um diálogo amplo (e às vezes excessivamente normativo) com a história da literatura mundial e com o seu papel na definição de nosso campo cultural, começou a perder definitivamente força. Cada vez mais é reservado ao texto crítico, cujo vigor é limitado à pequena margem criativa que os jornais oferecem, o espaço exíguo de suplementos e cadernos culturais. Lembremos que se na década de 1940 tínhamos críticas literárias diárias nos jornais, hoje temos os fins de semana para lermos as resenhas dos lançamentos em um mar de livros lançados em velocidade estonteante nas livrarias. Eis aqui um dos ganhos centrais deste livro: Silviano, pela longa trajetória no embate
crítico e docente a favor da literatura, coloca-se como uma espécie de “crítico fora do fluxo”, ou melhor, fora das demandas pragmáticas de editoras e redações. Encontrou no espaço de sua coluna um campo de experimentações críticas, sugerindo (des)caminhos para se trabalhar em um tamanho reduzido de fruição intelectual. Como um colunista livre de pautas obrigatórias, faz de seu espaço um oásis atemporal. Ali, os lançamentos de hoje entrelaçam-se com clássicos e títulos esquecidos. Filmes, peças ou exposições reverberam literatura e pensamento ao longo de sua escrita. Retomando a questão da crítica literária e as perspectivas negativas sobre seu desempenho público, é certo que o papel de destaque que a informação impressa deteve durante algumas gerações foi perdido conforme o país da televisão e das antenas parabólicas foi se estabelecendo, unindo litorais e rincões. Recentemente, o crítico João Cesar Castro Rocha demonstrou, em seu livro Crítica literária – em busca do tempo perdido? (Argo, 2011), a crise que hoje atinge os críticos “de rodapé” e o acadêmico formado nos cursos universitários de literatura. Ele sublinha que tal crise é parte não de um esgotamento dos formatos críticos, mas sim da mudança paulatina, porém definitiva, do jornal como espaço de reflexão escrita. Esse processo foi radicalizado com a eclosão de blogues, websites e mais recentemente dos e-books e outras interfaces de publicação e leitura digital, feitas por editoras ou por conta própria, sem intermediários institucionais ou mercadológicos. Simultaneamente à diversificação da informação, ocorreu a expansão dos meios de produção e a ampliação dos pontos de distribuição. Isto faz com que autores encontrem seus públicos em nichos e segmentos especializados, sem precisar dar conta de grandes narrativas do mundo das letras, das artes ou de outro aspecto estético na vida cotidiana de todos nós. Não são mais nos textos e colunas de escritores e intelectuais em jornais de grande circulação nacional que os debates do país são anunciados e galvanizados para leitores. Essa missão civilizatória da literatura e seu diálogo produtivo com o jornal, em um país que durante décadas registrou taxas alarmantes de analfabetismo, perderam terreno para resenhas raquíticas em espaços reduzidos para o debate crítico fora das pautas de lançamento. Ou, em outra ponta do mesmo processo, para os novos usos que hoje em dia são feitos com os textos na internet. Atualmente, um texto que atinge ampla circulação e fruição entre uma população letrada tem o meio impresso apenas como um ponto de partida. Compartilhado em rede, o texto pode ser consumido por uma série de leitores que podem aderir às ideias escritas sem ao menos saber ao certo o nome do autor. Se a marca do gênio autoral não é mais fundamental, o raio de ação de uma reflexão crítica escrita em um jornal (e seu correlato na internet) pode ganhar números inimagináveis de leitores. Hoje, o espaço circular e rizomático da web leva o texto crítico forçosamente para o anonimato viral da rede, caso atinja repercussão popular. O texto original vai muito longe do limite material da página impressa e desloca a centralidade do autor por trás da obra. Nesse cenário em permanente mudança para todos que se envolvem na cadeia produtiva
do texto, o crítico contemporâneo parece ter como saída inicial – e arrisco dizer, única – o reconhecimento dos novos limites de sua função à nova economia da informação. Não sendo mais aquele que necessariamente apresenta a novidade cultural para os que não têm acesso a ela – como foi até a época anterior à internet – o crítico precisa dialogar de igual para igual com seu leitor, ao menos no que tange ao tom que apresenta seu material de análise e debate. E esse “de igual para igual” não implica absolutamente nenhum tipo de “rebaixamento” ou simplificação das palavras escolhidas. Nem mesmo no demérito da missão reflexiva e de emissão de juízo que forma o ofício do crítico. A igualdade entre crítico e leitor é a sapiência de ambas as partes sobre a porosidade incontornável entre as fronteiras do saber especializado e do consumo da informação. De fato, o crítico talvez não possa mais apresentar algo novo (qualquer informação já pode ter sido consumida e divulgada antes por possíveis leitores através de pesquisas pessoais em sites de busca). Mas ele ainda pode organizar de forma inovadora as atuais informações que muitas vezes circulam sem centro de emissão institucional ou midiática. Sai o críticoprofessor, entra o crítico-articulador. Seu papel de mediador cultural, figura-chave nos compromissos estéticos coletivos da modernidade, é substituído por uma função quase curatorial. O crítico que hoje publica em jornais e outras mídias não é mais aquele que apresenta o futuro e organiza de forma criteriosa o passado, mas sim aquele que organiza os vastos repertórios da História de acordo com sua capacidade de articulação entre conteúdos compartilhados por todos. De certa forma, o crítico que ainda publica em jornais e revistas e os que se adequaram aos formatos digitais de publicação apontam grosso modo para a permanência de uma “grande narrativa” na busca de bússolas mais amplas para compreender fenômenos artísticos surgidos em profusão. Em tempos de transculturas, relativismos, pós-colonialismos e outras categorias que tornam cada vez mais complexa a tomada de posições críticas, o uso criterioso de repertórios é fundamental para o leitor. Prosseguindo nessa linha, podemos dizer que, quando sofríamos de certa escassez de informação, o crítico tornava-se mediador porque era sua figura histórica quem fazia a ponte entre a abundância dos iniciados e a escassez dos consumidores. Isto é, era ele quem dizia se Laforgue, Victor Hugo, Nietzsche, Joyce, Pound ou Brecht deveriam ser ou não procurados, pesquisados e consumidos pelo leitor. Em um país pensado e autonarrado como periférico de certa hegemonia cultural ocidental, como foi o Brasil ao longo dos séculos XIX e XX, o crítico como mediador era fundamental para que pudéssemos consumir com selos de qualidade as novidades que ainda não circulavam de forma corrente entre nós. Hoje, na época da abundância de informação disponível, tanto para iniciados como para consumidores, o crítico não detém mais com exclusividade o poder conector entre a novidade e a ignorância. Ele não é mais o único que faz o papel de Prometeu e apresenta como fogo sagrado a informação inacessível para leigos. O livro estrangeiro ainda não publicado em português ou o filme que só passou no festival independente europeu podem estar a três cliques de alcance de qualquer
um com acesso à rede mundial. O que marca atualmente a diferença positiva do crítico com seu público leitor é, novamente, sua capacidade de repertório, as fontes que ele domina, os arquivos que ativa e as referências cruzadas que acumula e apresenta para comentar o tema escolhido. Se os filmes estão na rede e os livros podem ser comprados através das lojas virtuais internacionais, o mergulho no interior de sua trama de sentidos, as conexões cada vez mais amplas que podem ser feitas entre obras e contextos transculturais, a compreensão das transformações em larga escala que ocorrem nos campos da arte e do pensamento, tudo isso só pode ser feito por aquele que se disponibiliza não apenas a consumir informação, mas principalmente a produzir reflexão crítica sobre ela. Em uma época cada vez mais exigente da excitação, da mobilidade veloz de conteúdos e da institucionalização consumista das ideias, a disponibilidade livre para a reflexão crítica se torna artigo escasso. De alguma forma, Aos sábados, pela manhã é um livro no qual constatamos que esta breve reflexão a respeito do lugar atual da crítica literária, apesar de pertinente, ainda pode apresentar surpresas. As próximas páginas nos mostram que a aliança entre a literatura, o pensamento crítico e o jornal, quando selada em seu devido tom e missão, ainda rende grandes frutos. Crítico, escritor, professor e tradutor, Silviano usa todas as suas múltiplas faces para exercer seu ofício das letras no espaço predefinido e conciso de uma coluna. Sem abrir mão da abordagem informativa que espera um leitor de jornal, suas variadas possibilidades de escrita conduzem esse mesmo leitor em sinuosidades e artimanhas criativas da língua. Em um formato enxuto e direto, o crítico nos apresenta reflexões que ganham amplitudes insuspeitas em textos que esmiúçam livros, filmes, artigos acadêmicos ou assuntos do cotidiano. Enfrenta o desafio de expor temas complexos sem desdenhar da capacidade crítica do seu leitor. Ao mesmo tempo, confia a ele a continuação do debate para além das linhas da coluna, ao indicar, como referências externas, sites e páginas da web com comentários complementares da atualidade cultural ao redor dos textos. Sempre conseguindo extrair o componente universal dos assuntos particulares, a desenvoltura no trânsito em temas diversos é ressaltada pela sua versatilidade nos registros de escrita – dentre os quais destaco o acadêmico, o ensaístico, o literário e o biográfico. Para um leitor acostumado com a agilidade do olho que a web e demais meios demandam atualmente, o texto de Silviano nos abraça e não nos larga até a última linha. Muitas vezes, ele solta nossas mãos, não no caminho seguro da página seguinte, mas na ressonância reflexiva do que acabamos de ler. Os leitores e pesquisadores da obra de Silviano Santiago já acompanham há décadas sua consistente trajetória intelectual, pavimentada com seus vários livros de ensaios críticos. Desde o já considerado clássico Uma literatura nos trópicos (1978) que seus escritos sobre literatura – e as pontes que sempre fez entre essa e as outras artes com seus respectivos campos de saber – tornaram-se definitivos para estudantes e pensadores no Brasil e no mundo. São livros cujos textos são em ampla maioria pensados para a fruição e circulação
acadêmica. Salvo algumas exceções, mesmo os textos mais populares não surgiram do embate do autor com prazos de redações e espaços predefinidos de leitura rotineira e descartável como o jornal. Aos sábados, pela manhã apresenta, portanto, um Silviano que preserva a agudeza e verve do crítico presente em seus livros, porém aliadas a uma mirada fulminante de temas que certamente não são a regra nos ensaios de maior fôlego. Mesmo óbvia pela diferença de formatos, é interessante vermos o exercício crítico de Silviano sendo conduzido em outras cadências. Pois se a tarefa de escrever textos de forma quinzenal não permite a extensão decantada do escrito, coloca ao escritor a tarefa intensa da assiduidade. A coluna periódica no jornal faz com que o corpo do autor se transforme em radar do alheio na busca de assuntos. Leituras, filmes, artigos, exposições e qualquer outro tema são vasculhados a partir de sua embocadura crítica. Um traço inicial que salta aos olhos em suas colunas é a proposta em retomar algo que ficou raro – ou perdido de vez – no horizonte literário brasileiro: a crítica sistemática sobre a atualidade estética e cultural que nos cerca, sempre através dos livros que circulam no nosso tempo presente. Sem medo do contemporâneo – ao contrário, fazendo dele um cúmplice fundamental de sua jornada desde os seus primeiros passos em cineclubes, revistas de quadrinhos e ícones pop do pós-Segunda Guerra Mundial –, Silviano atravessa os mares mais seguros para sua obra – a literatura – e mares um pouco mais revoltos e em plena ebulição histórica como o cinema, as artes visuais, a política, o pensamento estético e as novas tecnologias criativas. São textos cujos alvos são atingidos por disparos precisos em busca de breves, porém certeiras, iluminações sobre temas, autores e livros que passam despercebidos – ou são ignorados a contento – por parte de uma massa crítica que lemos cotidianamente nos cadernos culturais do país. Antes de entrar nos conteúdos dos textos e nas ideias organizadas ao redor deles, é preciso ressaltar outro traço geral do livro: a profissão de fé no caráter cosmopolita das publicações, peças, filmes e exposições que o crítico analisa. Ao terminar a leitura, o conjunto de textos em Aos sábados, pela manhã fornece ao leitor um panorama amplo do mundo – e, principalmente, do Brasil como parte atuante do mundo em seus múltiplos aspectos. Assim, Silviano quebra a expectativa de uma necessária nacionalização do debate e trabalha a partir da máxima “falar no Brasil” e não necessariamente “falar do Brasil”. Não é à toa que o cosmopolitismo seja um tema presente nos últimos livros de ensaios do autor (O cosmopolitismo do pobre foi publicado pela UFMG em 2004) e em alguns textos desta coletânea. O desgaste histórico dos Estados-Nações modernos, como comunidades imaginadas em prol de um internacionalismo que emerge das periferias determinadas pela geopolítica do século XX e pelos movimentos políticos transnacionais, faz com que o cosmopolitismo, isto é, a capacidade do agente marginalizado se rearticular como cidadão político do mundo e não apenas como portador passivo da nacionalidade restrita ao seu território, a sua língua e aos seus espaços de memória coletiva, torne-se a principal variável para um pensamento
constituído no âmbito de países da América Latina e do continente africano. Vale lembrar que o cosmopolitismo é parte integrante da biografia de Silviano. Como pesquisador e professor formado no bojo dos deslocamentos internacionais – apenas em uma década transitou entre França, Estados Unidos, Canadá, México, além, claro, do Brasil –, Silviano forjou a constituição saudável de um pensamento da diferença. Investigando simultaneamente a literatura, a história, a filosofia e a cultura de massas, articulou ao longo da vida uma interminável lista de autores e pensadores, sempre colocando o Brasil em diálogo permanente – e necessário – com o mundo. Desde o segundo livro de ensaios que o trabalho crítico e literário constitui um viés universalista, não só na sua prática intelectual, como principalmente na sua forma aberta, democrática e inclusiva de entender o mundo e seus saberes. Guiado por essa bússola biográfico-intelectual do nosso autor, o leitor não se surpreenderá ao testemunhar nas páginas a seguir encontros prodigiosos entre temas e trabalhos articulados com rara maestria por Silviano. Lembremos que o esforço do tiro curto que uma coluna em jornal obriga seu autor a exercer faz com que as passagens sejam rápidas e, muitas vezes, sutis para os olhos que não estão abertos a esse pensamento que aponta vizinhanças em conexões insuspeitas. Literaturas argentinas, hispânicas, inglesas, moçambicanas, nigerianas, portuguesas, japonesas, indianas, iranianas, norte-americanas e francesas são algumas das muitas que Silviano articula de forma ágil e nunca óbvia com a história literária, o mercado editorial e a economia do texto no seu estágio atual. Essas articulações ocorrem através de liames ora poderosos – a vibração política inerente ao lidar com temáticas pós-coloniais no seio das escritas contemporâneas – ora sutis – a aproximação poética dos eixos temáticos que cruzam pensamentos distantes no tempo e no espaço. Silviano introduz sem distanciamento professoral e com todo talento de escritor que sempre carregou em seus textos um cardápio que atiça a curiosidade de qualquer interessado nas novidades que circulam pelo mundo e pelos websites das grandes cadeias digitais de venda de livros. Ao leitor distraído do jornal de sábado, fornece o espaço que desestabiliza por ampliar referências em vez de sublinhar mais do mesmo no eco monótono de autores e temas que muitas vezes ocupam o debate crítico. Sua escrita traz para a mesa do café da manhã no fim de semana um leque de publicações inéditas em suas traduções para o português, sabendo que o alcance do leitor que desejar o livro em questão é direto. Silviano, assim, articula seu saber crítico com a possibilidade de acesso que seus leitores hoje detêm na busca dos temas e informações debatidos. Um filme, um catálogo de exposição ou um romance que ainda não foram fruto de consumo massivo podem estar acessíveis e abrirem futuros caminhos ao descortinar silêncios incompreensíveis sobre trabalhos fundamentais, porém pouco lidos ou falados. Um último traço geral que vale apontar nos textos a seguir diz respeito à presença constante de alguns autores – e leituras – prediletos de Silviano. Ao utilizar com desenvoltura o recurso da articulação entre temas e ideias, o crítico convoca alguns fiéis escudeiros para
servir ora como lastro de suas argumentações conceituais, ora como recursos narrativos que nos arremessam para caminhos criativos de análise. São autores cujas presenças foram se acumulando lentamente em sua obra, como percebem os leitores que acompanham a carreira do crítico. Machado de Assis, Mário de Andrade e Carlos Drummond são “colaboradores” bem próximos de Silviano, assim como Oswald de Andrade. Na praia teórica, Jacques Derrida (autor que Silviano encontrou na Universidade Johns Hopkins ainda no final dos anos 1960), Michel Foucault (seu colega na Universidade de Buffalo), Roland Barthes, Sigmund Freud e, mais recentemente, Aby Warburg, são os mais acionados quando o crítico busca interlocuções ou provocações de fundo conceitual. Todos serão, inclusive, personagens de colunas que debatem algum aspecto de suas obras e legados. Essa constância de referências fornece ao leitor uma amarração só possível de enxergarmos na leitura dos textos em sequência. Ao vermos o conjunto substancial de escritos para a coluna do Sabático, é possível destacar um percurso intelectual que, mesmo em outras condições, afirma suas filiações e, simultaneamente, as põe em jogo. O livro é dividido em três seções definidas a partir de afinidades existentes entre os temas trabalhados. Sem obedecer ao ponto de vista cronológico de publicação no suplemento, a organização privilegiou as vizinhanças temáticas ou conceituais que ligam um texto ao outro. Cada seção se dedica a um assunto, ou a assuntos correlatos. Essa divisão, antes de ser restritiva e de caráter normativo sobre o fluxo de leitura dos textos, é, ao contrário, expansiva. Há em cada seção um investimento nas possibilidades de leituras que cada texto do autor nos apresenta. Nem sempre é simples definir um eixo específico em cada um deles. São temas que abraçam outros temas, espaços moventes de leitura, rodízios que nos levam da literatura à filosofia e vice-versa em breves e decididos passos. O ponto de partida para a organização, portanto, foi estabelecer o fio condutor das seções a partir do objeto em análise por parte do crítico (livro, filme, exposição, catálogos, peças, biografias). Mesmo que, novamente, muitas vezes Silviano entre por uma porta no momento em que iniciamos a leitura das colunas para sair por outras completamente insuspeitas. Na primeira seção, intitulada “Elogio da literatura”, os textos reunidos são marcados pela relação infatigável de Silviano Santiago com as práticas e o pensamento literário. Mais que isso, são textos em que o vemos exercendo um arsenal de caminhos e olhares reunidos ao longo de sua trajetória. Se muitas vezes sua obra foi analisada pelo encontro criativo entre o crítico, o leitor e o escritor, aqui nós temos um conjunto consistente de textos em que essas personas literárias agem livremente, sem proteções acadêmicas ou pejos disciplinares. Seus textos nos sugerem um leitor que se move pelo fluxo crítico do escritor. Como na célebre imagem do “leitor que levanta a cabeça” cunhada por Roland Barthes, Silviano nos apresenta anotações claramente oriundas de suas leituras interessadas. Nas colunas que versam exclusivamente sobre romances, por exemplo, o leitor é atraído para uma espécie de conversa cuja desenvoltura da dicção crítica muitas vezes vibra no interior de uma abordagem narrativa
astuciosa, para usar um termo caro ao trabalho do nosso autor. Em alguns textos, a fronteira entre a fabulação e a informação é quase inexistente. Há também nesses textos do “Elogio da literatura” o exercício de uma das tarefas fundamentais da crítica desde sempre: a formação de um público leitor. Como dito no início desta apresentação, tal formação não se dá em uma matriz impositiva e nem busca constituir “de cima para baixo” lições de qualidade. Nos textos de Silviano, não se trata de aconselhar cânones ou aprovar “boas leituras”. Seu exercício crítico abre ao leitor os aspectos de prazer textual e a atração que uma boa trama pode criar em nós. Ele revela de forma inspirada as armadilhas do ofício de escritor, aquelas que só quem as conhece por dentro pode desarmar. Ao dividir com o leitor de suas colunas as leituras que está fazendo no momento – e não aquelas que o leitor deveria ler – Silviano apresenta autores e livros em dimensões mais amplas que a informação de sabor literário. O próprio texto do crítico se enreda no jogo narrativo, procurando fios soltos que desembocam em possíveis encontros com outros escritos. Sua longa relação com a literatura lhe permite exercer com desenvoltura um arquivo pessoal de leituras que nos surpreendem quando ativado. Ao citar apenas alguns autores e críticos literários que percorrem as páginas da primeira seção, ressalto um breve aspecto: quando o assunto é a literatura que circula pelo mundo, enfileiramos poucos nomes consagrados no país em contraponto às muitas novidades (entre o leitor não especializado) em pleno início de voo por nossas paisagens tropicais. São autores espalhados pelo globo terrestre como Roberto Bolaño, Ricardo Piglia, Edgard Cozarinsky, Roland Barthes, Silvia Molloy, Azar Nafisi, Zadie Smith, Teju Cole, Philip Roth, Lydia Davis, Joyce Carol Oates, Marcel Proust, Mathieu Lindon ou Marcel Schwob. Quando adentra as letras brasileiras, Silviano traça um caminho inverso – ao menos no que diz respeito à cronologia dos autores lidos pelo crítico. É mergulhando nos escritos públicos e pessoais de Joaquim Nabuco, Machado de Assis ou Mário de Andrade que ele encontra os elementos para pensarmos a contemporaneidade. Já seus textos sobre Jorge Amado, Guimarães Rosa e Carlos Drummond nos fornecem o combustível para voos originais sobre a obra de autores canônicos. Quatro textos sobre poesia – a partir dos livros de Afonso Ávila, Camilo Pessanha, Manuel Antonio Pina e Rui Knopfli – fecham esta seção. Saindo do fluxo temático dos textos e entrando nos seus assuntos, vemos a predileção de Silviano pela investigação da narrativa literária contemporânea, dedicando especial atenção para livros e textos que investem no tema. A partir do interesse sobre a narrativa, o crítico mergulha na sua atração confessa pela biografia, na reflexão sobre a reordenação crítica da literatura pós-colonial e na pesquisa permanente sobre o modernismo brasileiro, seus desdobramentos e deslocamentos ao longo de nossa história. Alguns deles, como a intrincada questão pós-colonial e sua face transnacional – o cosmopolitismo –, serão retomados de outras formas e em outras leituras nas duas seções seguintes. Intitulada “Além do campo visual”, a segunda parte do livro nos apresenta Silviano Santiago transitando com desenvoltura e curiosidade entre espaços críticos poucas vezes
publicados por ele ao longo de sua trajetória como ensaísta. Vale ressalvar aqui que artes visuais, cinema e teatro não são o prato principal da faceta crítica de Silviano, mas sempre estiveram no centro de suas obras literárias e de sua biografia. Isso nos mostra que esses textos, apesar de não serem comuns em sua obra crítica, não são olhares de um “estrangeiro” tateando em seara desconhecida.[1] Aqui, disposto a explorar com liberdade os temas abordados e sem prender seu pensamento a apenas uma área de atuação, Silviano nos permite acompanhar uma sequência de textos que nos fornecem trilhas para essa outra dimensão crítica de seu trabalho. Dos vários aspectos que podem ser destacados neste conjunto, o que sobressai logo de início é o olhar crítico para as artes visuais, o cinema e o teatro através de um estratégico e elegante filtro literário. O crítico investe no deslocamento da fronteira cada vez mais fluida entre texto e imagem, fazendo com que a disputa histórica entre esses dois polos ganhe uma dimensão provocativa. Nos textos dedicados a aspectos das artes visuais, por exemplo, Silviano não cessa de ver literatura nas exposições que visita, nos textos críticos que analisa e nas obras que comenta. O pintor Amédée Ozenfant deságua em Mário de Andrade através da revista L’Espirit Nouveau , editada pelo francês e lida pelo brasileiro. A escrita e a obra de Jean Genet são iluminadas a partir do livro breve e genial do escritor sobre o artista Alberto Giacometti. Uma longa entrevista concedida por Francis Bacon torna-se para Silviano um breve bloco de anotações, uma espécie de narrativa literária em que a voz do pintor irlandês se confunde com a do crítico. Outro ponto a se destacar, ainda relacionado ao universo das artes visuais, é o vivo interesse de Silviano no debate teórico conduzido pela crítica contemporânea. Vale ressaltar também os textos dedicados às dimensões históricas dos aspectos maquínicos da arte, seus primeiros passos na expansão da nossa relação com a imagem e as telas – desde os Panoramas do século XVIII até os tablets e e-books de nosso tempo. Para apresentar ao leitor suas inquietações relativas a tais temas, o crítico introduz autores como Jonathan Crary, Hal Foster, Rosalind Krauss e Oliver Grau, cujos livros ainda não foram traduzidos ou debatidos entre nós, ao menos no âmbito do jornal semanal. Nos textos sobre cinema, novamente o crítico deixa vazar literatura para pensar o campo de imagens em movimento que se tornou o cerne do nosso tempo. Como destaques, temos a apresentação de textos de Fernando Pessoa sobre a sétima arte, a relação missivista de poder entre Freud e seus discípulos, a partir de um filme de David Cronenberg, e o belíssimo texto dedicado à filmografia de Júlio Bressane a partir de seus escritos. Nessa coluna, aliás, Silviano nos sugere uma das chaves deste livro. Ao afirmar que os textos do cineasta incorporam a tradição literária para fazer do cinema um modelo teórico de funcionamento das artes como um todo, o crítico nos mostra como valoriza o que chama de “mobilidade da escrita”, movimento para além da intertextualidade, abrindo mão da unidade-texto e investindo nas fronteiras imagéticas que podem ser encontradas entre os diferentes campos da arte.
Um último aspecto particular dessa seção é a atenção especial que Silviano apresenta pela obra do crítico e historiador alemão Aby Warburg (1866-1929). Os trabalhos e a trajetória biográfica do historiador da arte são tema de variadas colunas, cada qual explorando um aspecto específico de sua obra e de seu pensamento. A leitura dos textos de Silviano sobre Warburg nos passa a impressão de que testemunhamos um encontro iluminador entre o crítico e o historiador. Ao se interessar pelo conceito de “ficção teórica”, escreve duas colunas dedicadas a Warburg, que se desdobram em outras duas, em que o método de “produzir efeitos” a partir de aproximações especulativas entre textos e imagens e cujo tratamento transgressor da normatividade cronológica da História são aplicados pelo próprio crítico. O interesse de Silviano é despertado por encontrar em Warburg uma chave para seu próprio ofício crítico exercido nas colunas, em que os temas tratados obedecem ao fluxo sugestivo das vizinhanças e não apenas ao encadeamento lógico da argumentação restrita a cada campo de saber – e a cada campo de visão. A ficção teórica de Warburg é, de certa forma, a realização de um entre-lugar entre imagens e textos através dos tempos e dos saberes. É aí, nessa potência criativa e sem devoção paralisante à hierarquia do conhecimento, que se instaura o aspecto ficcional da teoria. A terceira seção, por fim, nos apresenta textos em que o crítico-artista das outras seções cede lugar (não sem resistências) ao pensador teórico da arte e da cultura contemporâneas. Se nas duas primeiras partes o que se aponta é a perspectiva interdisciplinar e deliberadamente fabuladora de Silviano ao tratar da literatura, das artes visuais ou do cinema, nesta última encontram-se pontos mais densos de reflexão, em que o debate conceitual consiste na abertura de novas frentes de pensamento, novos temas, novos autores. Apesar de não ter o aspecto estético dos objetos no cerne do debate, é evidente o talento literário de Silviano para conduzir com destreza – e firmeza – temas nem sempre acessíveis ao leitor cotidiano dos jornais. É nesta parte que o tema do cosmopolitismo, tateado na primeira seção a partir de alguns romances e debates na literatura contemporânea, ganha ampla dimensão. Em uma sequência de tirar o fôlego do leitor, Silviano nos brinda com breves, porém contundentes, exemplos do debate intelectual travado no bojo dos movimentos pós-coloniais e da própria superação das bases históricas que o alimentam. Investindo na reflexão crítica sobre autores e pensadores brasileiros, latino-americanos, africanos e asiáticos, vemos diferentes nuances do processo de cosmopolitismo, abordado como postura crítica frente aos nacionalismos provincianos dos séculos XIX e XX. Debater o cosmopolitismo, portanto, não significa apenas constatar a existência de um contradiscurso para a globalização da economia liberal. Tampouco se conformar com a explicação do termo proveniente da ascensão política das minorias por todo o planeta. Indo além, o crítico aponta os desdobramentos marcantes dessa postura crítica na produção intelectual de diversos campos de saber em diferentes épocas e contextos. Silviano nos mostra, portanto, como um conceito pode ser pensado a partir de uma dinâmica criativa e interessada por parte de quem estuda o tema.
Mesmo que de forma mais contida do que nas partes anteriores, o crítico permanece utilizando a literatura como dispositivo estratégico para sugerir abordagens insuspeitas sobre os avanços e os impasses de áreas como a filosofia, a antropologia e a história. Em muitos casos, é através de autores como Machado de Assis, José de Alencar ou Joaquim Nabuco que se chega nas colunas ao cerne teórico dos temas apresentados. A variedade de autores e referências apresentadas por ele nos deixa positivamente à deriva durante a leitura do seu texto. Esta deriva decorre principalmente da velocidade – sempre segura, sempre precisa, nunca desgovernada – com que Silviano passa de um assunto ou autor para outro. A conexão improvável ganha encaixe perfeito, deixando o leitor interessado no tema apegado ao percurso intelectual do crítico que conduz o texto. Inerente aos debates sobre cosmopolitismo e sobre a perspectiva crítica dos discursos póscoloniais, vibra de forma ora sutil, ora evidente, a dimensão política dos textos de Silviano. O crítico não se furta em assumir posições públicas sobre temas que perpassam seus escritos. Sem assumir tom panfletário ou exigir coerências e filiações de leitores, ele consegue situar seu pensamento em perspectiva ética quando o tema exige. Talvez um dos momentos mais contundentes dessa seção seja “Hegel e o Haiti”, em que Silviano apresenta o livro de Susan Buck-Morss dedicado aos trabalhos praticamente inéditos que o filósofo alemão escreveu sobre a Revolução Haitiana. O entusiasmo do crítico com o trabalho de Buck-Morss não esconde sua filiação a uma leitura crítica da questão escrava e da chaga racial como tema fundamental da modernidade – tema esse deslocado pelos pensadores marxistas (brancos) diretamente para a luta de classes entre operários europeus. Silviano louva a obra não pelo que ela diz, mas por tudo que ela abre como possibilidade para novos pesquisadores e pensadores. Se há um engajamento em Silviano, ele se dá no âmbito provocativo do impacto aberto e especulativo das ideias no mundo, e não na adequação delas a determinadas demandas preconcebidas. Um último comentário sobre a terceira seção: o texto “Uma revoada de vaga-lumes” a batiza por ser uma espécie de síntese das chaves de leitura que apliquei na organização dos textos. A partir do título de um livro do crítico de arte francês George Didi-Huberman, Sobrevivência de vaga-lumes, Silviano apresenta uma belíssima “ficção teórica” ao articular a obra do crítico com outras imagens de vaga-lumes (seres com luz própria, porém oscilantes no lusco-fusco de sua existência precária). Novamente partindo da literatura, os vaga-lumes de Silviano se fazem presentes a partir de um conto de Guimarães Rosa passado em Brasília (o que já desestabiliza nossas referências à obra de sabor interiorano do autor). A relação entre luzes e trevas como dois polos que definem o processo histórico da civilização ocidental (e cuja tensão está presente em obras fundamentais sobre o tema, como as de George Bataille e Walter Benjamin) se faz presente na leitura aguda de Silviano sobre a modernidade tardia brasileira através do conto de Rosa. Fazendo essa aproximação, Silviano está reproduzindo criticamente o mesmo movimento de Didi-Huberman, sobrepondo procedimentos e estimulando no leitor um pensamento criativo na apropriação dos temas expostos. Isto porque
o crítico francês pensa a questão das imagens a partir dos trabalhos do cineasta e escritor italiano Pier Paolo Pasolini e do filósofo, também italiano, Giorgio Agamben. Dois autores fora do campo das artes visuais que apresentam para o crítico as ferramentas e imagens necessárias para sua análise. Aos sábados, pela manhã, portanto, é um livro que de certa forma supera e refunda o debate contemporâneo da crítica literária a respeito do seu espaço e da sua qualidade nos nossos meios impressos. Como apontado no início da apresentação, a falta de espaço físico nos jornais e a queda da qualidade dos textos críticos são fenômenos que caminham juntos desde os anos 1980. Hoje, essa situação se radicaliza a partir da pulverização de textos e autores no espaço infinito da web. Em sua coluna quinzenal, porém, Silviano subverte esses limites e supera esses problemas ao fazer do seu espaço reduzido uma usina de força. Pois ali, de quinze em quinze dias, ele não se limitou ao que supostamente as pessoas querem (ou podem) ler ou ao que o mercado editorial está lançando. Sem subestimar a capacidade crítica do leitor comum de jornal, força a barra de forma positiva, acreditando que esse leitor comum também pode ser o leitor interessado da literatura. Sem abrir mão de sua capacidade inventiva e do seu amplo espectro intelectual, propõe ao leitor uma parceria na busca de novos olhares sobre o cotidiano cultural do Brasil e do mundo. Aos sábados, pela manhã é o momento em que, ao termos em mãos o jornal do fim de semana, podemos ir além das platitudes tropicais e da repetição ad nauseam do mesmo que contagia a imprensa e sua crítica em época de lançamentos e premiações. Em suas colunas, Silviano passa ao largo do presente imediato para nos mostrar a força perene de textos e imagens. Envolve o leitor distraído que passa os olhos nas primeiras linhas de seus textos em fluxos de forças trans-históricas, utilizando o arquivo da cultura e até mesmo o arquivo de sua própria vida como forma crítica e inventiva para iluminar nossos tempos. O leitor dessas colunas, publicadas ao longo dos quatro últimos anos, e agora organizadas neste livro, terminará seu trajeto com a certeza de que, no cenário visto por muitos como apocalíptico no pensamento crítico brasileiro, ainda há espaço para aqueles que apostam na cumplicidade do crítico com seus objetos de estudo e, principalmente, com o seu leitor. Se não existe mais entre nós um perfil atuante e qualitativo da crítica literária, que fundou um discurso moderno sobre as artes no Brasil, ainda existem críticos que não abrem mão de plantar, em cada texto publicado, sua perspectiva renovadora sobre o país, seu povo e suas ideias.
FREDERICO COELHO Pesquisador, ensaísta e professor de Literatura da PUC-RIO
[1]
Vale lembrar que Silviano sempre manteve contato ativo com as artes visuais através de sólidas amizades e comentários
sobre artistas e exposições – como o recente ensaio publicado no livro Entre carnes e mares (Cobogó, 2010), volume dedicado
à obra da artista carioca Adriana Varejão.
ELOGIO DA LITERATURA
O novo cosmopolitismo literário
romance 2666, escrito pelo chileno Roberto Bolaño (1953-2003), é enorme. Traduzido e publicado no Brasil, há que franquear-lhe algum espaço. Sua leitura não cabe numa coluna. Cabe a digressão sobre traços formais do novo cosmopolitismo literário por ele representado. O mais saliente dos traços é o retorno do personagem. Dividido em cinco alentados volumes, 2666 se abre por “A parte dos críticos”. A narrativa só engrena depois de apresentar os personagens Pelletier, Espinoza, Morini e Liz Norton, sucessivamente. Caracterizados como críticos literários, os quatro estarão especulando sobre a notável obra de Benno von Archimboldi, que os tinha enfeitiçado em suas respectivas universidades de origem: as de Paris, Madri, Turim e Londres. Carismático e furtivo, Archimboldi é, entre outros possíveis, mutação do romancista alemão B. Traven (1882-1969), de misteriosa e fascinante biografia mexicana e autor de O tesouro da Sierra Madre, filmado por John Huston em 1948. Na metade do caminho do primeiro volume, os três universitários machos relativizam a obsessão por Archimboldi e se apaixonam por Liz Norton. Reencontram a camaradagem na imitação da viagem do escritor francês Marcel Schwob à ilha de Samoa. (Em 1901, Schwob lá fora em peregrinação ao túmulo de Robert Louis Stevenson.) Os quatro críticos viajam, então, ao México na esperança de conhecerem finalmente o jamais visto Archimboldi. Já na cidade de Santa Teresa (mix de Nogales e Juárez), aos quatro se soma Oscar Amalfitano, professor chileno ali exilado, que lhes serve de guia. O segundo volume de 2666 se chama “A parte de Amalfitano” e, ao tratar deste personagem em detalhe, o retira da galeria dos menores de “A parte dos críticos”. A vontade de compor um romance por personagem acarreta, por um lado, o desinteresse em concebê-lo como exercício curto de escrita lúdica, na esteira de Jorge Luis Borges e de epígonos como Enrique Vila-Matas. E acarreta, por outro lado, a retomada da narrativa por biografia(s) explícita(s), característica saliente e nobre da ficção inglesa setecentista de Daniel Defoe e Laurence Sterne. Em 2666, o personagem só garante o direito à trama romanesca se trouxer às costas a própria e original biografia. À semelhança de Sísifo, cada personagem tenta levar o rochedo da vida até o alto da montanha, para vê-lo rolar precipício abaixo. O detalhe torna o romance de Bolaño herdeiro do célebre final do já citado O tesouro da Sierra Madre, de John Huston, inspirado por sua vez em Greed, de Erich von Stroheim. A originalidade da narrativa global está na soma das existências trágicas ou tragicômicas. E não estou me referindo apenas à composição de romance por cinco personagens de primeira plana. Em 2666, à semelhança do que acontece em ficção de Honoré de Balzac ou em fala de motorista de táxi no nosso cotidiano, a multidão de personagens secundários também destila parte essencial de suas vidas. Sem ser indagado, o desconhecido que aborda o italiano
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Morini no Hyde Park aluga seus ouvidos com a narrativa dos lances que o levaram a ser um desempregado a mais. Atente-se, ainda, para o pintor Edwin Jones. Pela alta qualidade de seus autorretratos, ele enobrece um bairro londrino até então entregue às mãos de pobres. A gentrificação é parasita do destemor do pintor genial que, sem motivo aparente, decepa uma das mãos. A conta do retorno do personagem ao romance do novo milênio é paga pela representação em nada baralhada e pouco caprichosa do tempo narrativo. O tempo se desenvolve pela horizontalidade. É linear-evolutivo, como em romance flaubertiano. Fato saliente é a volta de personagem menor ao núcleo estável da narrativa, ou o momento em que um deles, o Almafitano, por exemplo, domina o segundo dos cinco volumes. Até então incompleta, a biografia do personagem menor se arredonda por nova perspectiva espaçotemporal. Ao reaparecer, o personagem menor interrompe o tempo narrativo horizontal pela sua verticalização e obriga o leitor a reconsiderar a linearidade temporal tomada de empréstimo ao romance realista-naturalista. O narrador subordina o recurso à onipresença de Deus e o nomeia como “a coincidência”. O recurso à coincidência é teorizado pelo romance na passagem em que o pintor Edwin Jones, então enclausurado em manicômio suíço, retorna ao núcleo estável. Esclarece o texto: “A coincidência é a liberdade total a que estamos expostos pela nossa própria natureza. A coincidência não obedece a leis, […] é como Deus que se manifesta a cada segundo em nosso planeta. Um Deus incompreensível com gestos incompreensíveis dirigidos a suas criaturas incompreensíveis.” A coincidência alvoroça todo e qualquer leitor de literatura, em particular o cadeirante Morini. O crítico italiano viaja sozinho a Montreux. Quer saber a razão pela qual Edwin decepou a mão. Instado, o pintor automutilado a diz ao ouvido do paraplégico. As palavras não ganharão letra de imprensa. O incompreensível permanece incompreensível na própria coincidência. Na estética romanesca, Gustave Flaubert tornou indispensável o uso da elipse. Em A educação sentimental (1869), o narrador não descreve as várias viagens de Frédéric Moreau. Só diz que “Ele viajou, conheceu a melancolia dos navios…”. O narrador de Bolaño é também econômico. Atente-se para a passagem em que a narrativa evita o longo diálogo entre Pelletier e Espinosa, ou o jogo de campo e contracampo, como se diz em linguagem cinematográfica. O leitor não tem acesso ao texto integral da conversa sem-fim. O narrador diz: “Os vinte minutos iniciais tiveram um tom trágico em que a palavra destino foi empregada dez vezes e a palavra amizade vinte e quatro. O nome Liz Norton foi pronunciado cinquenta vezes, nove delas em vão. A palavra Paris foi dita em sete ocasiões.” Belíssimo exemplo de elipse na transcrição de diálogo. Pena que a morte aos 50 anos tenha roubado de Bolaño a possibilidade de aprimorar o texto de 2666. Na falta do tempo hábil para a busca da perfeição, os traços formais levantados podem às vezes se esfarinhar. Guardam a atualidade, no entanto.
Os caninos de animal predador
êxito da coletânea Entre parênteses é uma incógnita. Publicada na Espanha pela Anagrama, ela reúne os textos críticos curtos do romancista chileno Roberto Bolaño, escritos entre 1998 e 2003. A primeira edição é póstuma e data de 2004 e a quinta, de 2011. Romances de sucesso não chegam a cinco edições em sete anos. Publicados em jornal, os artigos de Bolaño não se dirigem aos pares e ainda menos ao público universitário. Passam por cima dos autores, dos professores e dos pós-graduandos, para baterem papo com o compulsivo leitor contemporâneo de literatura. Se ele sobrevive hoje em número reduzido, como Bolaño conseguiu sensibilizá-lo aos montes e seduzi-lo em cinco edições sucessivas? Se o bate-papo com o leitor de literatura se dá no lugar e na data em que ele naufraga, há que analisar a habilidade do crítico ao dobrar o Cabo das Tormentas. Entre parênteses prova que o leitor de resenha de livro não é o bom-moço disciplinado que sai em busca de um acessível manual de história da literatura universal, oferecido em conta-gotas. Como se estivesse na plateia de filme que dramatiza briga entre gangues rivais, o leitor singular dos textos críticos de Bolaño arregala os olhos, deliciando-se com os atritos e pendências que caucionam e avaliam a barbárie da competição na vida literária, enquanto, à vista de tapas e raros beijos, a saliva verde e raivosa lhe escorre pela boca. A escrita crítica de Bolaño reduplica a trama ficcional em que ele se fez mestre no romance 2666 (Companhia das Letras, 2010), repovoando-a com personagens e objetos reais − os escritores e seus livros. Cativa e arrebata o leitor por ter sido escrita por personalidade pública e versar sobre personalidades públicas. Semelhante ao narrador de ficção, o crítico reivindica liberdade absoluta e dá trela à língua de trapos. Esta mobilia a república das letras com tiradas e metáforas que desmancham os prazeres insuspeitos da moçada. Observações irônicas e rascantes atiram pedras nos cidadãos conscritos e liberam alguns poucos do suplício. O texto crítico de Bolaño não é gratuito, incapaz de subscrever a boutade “não li e não gostei”. Na falta de adjetivos melhores, direi que é, ao mesmo tempo, subjetivo e ideológico, e lembra, entre nós, os exercícios de Oswald de Andrade. Nos anos 1920, quando a Escola da Anta quis metralhar o movimento antropófago, Oswald divulgou um panfleto hilário contra os verde-amarelos. Analisa-o Haroldo de Campos: “Num estilo paródico arcaizante, o texto é todo construído na base de trocadilhos em torno da palavra Anta, que é incrustada no bojo de outros vocábulos, permitindo associações bufas.” Exemplos: pedanta, agravanta, antanho, garganta etc. Nos anos 1940, quando o “palhaço da burguesia” decide duelar com Otto Maria Carpeaux em Ponta de lança (Globo, 2004), vale-se de defeito de fala do crítico vienense, a gagueira, para esculachá-lo. Jogo sujo? Ah! os caninos de animal predador… É cruel o modo como Bolaño data o início da crítica que exercita. Data-o de 1986, ano em que morre Jorge Luis Borges e em que os pósteros devem ser obrigados a reler o defunto para
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aprender. Tão desproporcional é a altitude do marco inaugural, que a atualidade da literatura hispano-americana cheira a pó de traque. Ao destacar a obra do romancista Roberto Arlt, compara-a aos aposentos duma casa: “Se considerada como cozinha, a literatura de Arlt nos promete envenenamento; como lavabo, acabará nos passando sarna; como biblioteca, a garantia de destruição da literatura.” O aprendizado das letras por Arlt “se desenvolveu na desordem e no caos, na leitura de péssimas traduções, nas cloacas e não nas bibliotecas”. Arlt é russo, personagem de Dostoievski; Borges é inglês, personagem de Shaw ou Stevenson. Quanto ao discípulo de Arlt, Ricardo Piglia, teria sido melhor que “tivesse se enamorado do polonês Gombrowicz”. No entanto, é Piglia quem resgata o ataúde de Arlt, levando-o a sobrevoar a cidade de Buenos Aires. Continua. Com Oswaldo Soriano “os escritores argentinos se deram conta de que podem ganhar dinheiro com literatura”. É fácil, basta “um pouco de humor, muita solidariedade e amizade portenha, algo de tango e de lutadores de boxe decadentes”. Outro Oswaldo, o exilado Lamborghini, “se enganou de profissão. Melhor teria sido se trabalhasse como matador de aluguel”. Ele deixa como discípulo César Aira. Pensem num rato que deixa como testamento literário um gato com fome. Não é do mentor que o bichano vai arrancar a comida. Essa veia anárquica e desarrazoada tem o coração crítico alimentado (pasme-se!) pelos poetas hispano-americanos, únicos salvos da carnificina. Cita poema do chileno Nicanor Parra: “Os quatro grandes poetas do Chile – são três: Alonso de Ercilla e Rubén Dario.” Quatro, três, dois. Ercilla (1533-1594) foi o soldado espanhol que participou da guerra colonial contra os índios chilenos e, de volta à Espanha, escreveu o épico La araucana. O nicaraguense Rubén Dario (1867-1916) é o genial introdutor do simbolismo na América espanhola. Cita, ainda, versos de Vicente Huidobro: “Os quatro pontos cardeais / são três / o sul e o norte.” Ambos os poemas, comenta Bolaño, “fazem indagações na quarta dimensão da consciência cidadã”. E acrescenta: “Ainda que à primeira vista pareçam piada, e o são, num segundo olhar se nos revelam como uma declaração dos direitos humanos.” Conclui que o poema de Nicanor Parra nos ensina que “o nacionalismo é nefasto e cai pelo próprio peso”. Explica-se: “Não sei se se entende a expressão ‘cair pelo próprio peso’; imagine-se uma estátua esculpida em merda que se desmorona lentamente no deserto.” Releiamos nosso Murilo Mendes: “O Uruguai é um belo país da América do Sul, limitado ao norte por Lautréamont, ao sul por Laforgue, a leste por Supervielle.”
Apreendendo a apreensão
m Blanco nocturno (Alvo noturno. Companhia das Letras, 2011), último romance do argentino Ricardo Piglia, a narrativa dos acontecimentos apreensivos que magnetizam os moradores duma comunidade rural dos pampas, nos anos 1970, resulta do esforço do artista para revelar tudo o que é tido como corriqueiro na província. Ao apreender o clima de apreensão por que passa a cidade depois da chegada dum forasteiro gringo, Tony Durán, o texto retrata o comum e o torna inteligível. Por olhar o dia a dia pela ameaça do forasteiro, a escrita ficcional evidencia isolamento, atraso e os delírios induzidos pela especulação imobiliária e a industrialização no campo. A partir dum desenho, onde se pode ver ou o bico proeminente de pato ou as orelhas longas de coelho, o romance teoriza: “Descobrir é ver de outro modo o que ninguém percebeu.” Se o espectador atentar para o bico, descobre o pato no desenho de coelho, para as orelhas, o coelho no desenho de pato. Por escapar ao ramerrame da comunidade, os acontecimentos apreensivos são saltitantes e descontínuos e tornam o comum romanceável. Autoritários, questionam o senso comum. Não o deixam arvorar-se em bom senso comunitário. O fato apreensivo é o pizzicato revelador da monótona e viciada melodia dos pampas argentinos. A vida comum é, pois, uma “farsa”. Só receberá o estatuto de ficção, se se desdobrar em realidades paralelas. Uma delas, a hegemônica, é visível a olho nu e enrustida, e o será até o dia em que for bombardeada pelo seu avesso melodramático, os acontecimentos apreensivos. Já o título do romance acentua o disparate do avesso que atesta sobre a inautenticidade do lado aparente. Como aconteceu durante a guerra das Malvinas, o branco se deixou ver à noite pelos óculos infravermelhos dos soldados ingleses. Os óculos “permitiam ver na escuridão e disparar num branco noturno”. Não teria sido a reaparição súbita na comunidade dum “zambo” (mestiço de índio e de africano) que ateia o fogo entre os pacatos europeus enraizados no campo argentino? Tony Durán, o forasteiro norte-americano, não é ianque, é porto-riquenho. Latino e mulato, Tony fala com sotaque caribenho, mas parece nascido em Corrientes ou no Paraguai. Sem ser da região, Tony o é, como o são os irlandeses da elite nativa. Suas amantes argentinas, Ada e Sofia Belladona, são irmãs gêmeas e ruivas. Por elas deixa a boa vida na Costa Leste dos Estados Unidos para se embrenhar pela província de Buenos Aires. Foram elas que naturalizaram apreensivamente nos pampas os ganhos comportamentais metropolitanos (minissaia, pílula anticoncepcional, maconha, cocaína…). No presente da ação, as gêmeas trazem Tony para os pampas e, com a ajuda dele, a valise com os misteriosos e cobiçados dólares da herança dos Belladona. É a descendência masculina dos Belladona, com destaque para Luca, o bastardo, que naturaliza apreensivamente nos pampas a modernização industrial primeiro-mundista. A
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importação do know-how técnico é salientada por processo de apreensão semelhante ao comportamental. “Copiar-adaptar-enxertar-inventar”, explicita o romance, bem na tradição brasileira iniciada por JK e o ISEB. No delírio empresarial de Luca estão também embutidos os óculos infravermelhos. Através de Tony, das gêmeas e de Luca, o leitor passa a enxergar o “branco noturno” − o enigma do subdesenvolvimento platino nos anos 1970 e suas múltiplas e delirantes versões. Os fatos apreensivos persistem. O ménage à trois que Tony o mulato compõe com as gêmeas o define sexualmente e intriga as ruivas em (incomum dos comuns!) relações incestuosas. O delegado Croce, doublé do intuitivo filósofo italiano, encontra as provas do crime e o resolve ao acaso de constatação aleatória: “Sua intuição era tão extraordinária que parecia um ato de adivinhação.” O porteiro do hotel é de origem japonesa. Filho de oficial do exército imperial, só entende o “japonês das mulheres”. Convive com o forasteiro gringo. Embora “todos tivessem motivo para matar o porto-riquenho”, ele é tido como o assassino. O que é válido para a absolvição do nissei (a culpa é de todos) teria sido para a absolvição de Tony, o gringo. Pergunta-se: “Quem vai denunciar Tony por ter trazido a valise com dólares, se todos fazem parte do negócio?” Qualquer juízo policial depende do ponto de vista. A culpa é de um ou de todos. Todos são honestamente corruptos (pato), ou corruptamente honestos (coelho). À galeria se acrescenta um velho conviva de Piglia (se me permitem, seu alter-ego), o jornalista Emilio Renzi, que deixa Buenos Aires para cobrir o assassinato de Tony Durán. Renzi surge no romance para surpreender a comunidade, revelando-a ao leitor. Entra às escondidas (ou em itálico) no texto e, já transcorrido um terço do livro, é que perde o anonimato. O antigo personagem está em vias de rejuvenescimento. Ao final, deixa-se embalar pelas palavras místicas dum ex-seminarista, Schultz. Renzi desconstrói a apreensão episódica que toma conta dos pampas. Leiam-se, para tal, as notas de pé de página assinadas por ele e por Schultz. (Assim como as notas de pé de página de O beijo da mulher aranha, de Manuel Puig, levam o texto a desconstruir o que é tido e dito como a identidade evidente e falsa da homossexualidade, aqui também as notas atestam sobre o fundo visível e ideológico da vida financeira nos pampas.) Por o fato apreensivo ser o que, ao pertencer ao comum, dele se libera para lhe dar corda, a trama do novo romance de Piglia teria de ser agilizada por um forasteiro familiar. Figura dizimada durante a colonização europeia dos pampas, o zambo (cafuz, em português) revive em Tony. Apenas episódico no campo argentino, ele é, no entanto, o fantasma da eterna apreensão. Temido e amado, dele todos fogem assustados para que o comum continue a dar sentido à província: “El pueblo siguió igual que siempre…”, assim se encerra a narrativa. No retorno da História, Tony Durán é o bode expiatório. Quem o assassinou a facadas? Alguém e todos, está dito na “ficção paranoica” idealizada por Piglia. Na vida comum provinciana, o coletivo dispensa o alguém, embora seja ele que, em última instância, enxergue o “branco noturno”.
Jovens ficcionistas em espanhol
os anos 1960, a agente literária Carmen Balcells, chamada de a Mamá Grande pelo Nobel García Márquez, descobre no porto de Barcelona o ovo de Colombo da literatura hispano-americana. Em Paris, a agente Ugné Karvalis, companheira de Julio Cortázar, o estala na manteiga quente da editora Gallimard. Em Cuba, a América Latina de Che Guevara inspira Haydée Santamaría a fundar em 1959 o Itamaraty cultural da revolução, a Casa de las Américas (a língua portuguesa e a francesa do Caribe só terão vez e voz na gestão tardia de Roberto Fernández Retamar). Carmen, Ugné e Haydée são as principais responsáveis na divulgação dos autores hoje considerados como pertencentes ao boom da literatura hispanoamericana. O já idoso e renegado Vargas Llosa recebe em 2010 o Nobel. Fecha-se o ciclo Carmen Balcells? Domiciliada em Londres e em Barcelona, a influente revista Granta acaba de conceder cidadania a 22 netos das três madrinhas, todos nascidos depois de 1975. Com direito à edição em inglês, reúne em antologia Los mejores narradores jóvenes en español. Ao retirar o foco de luz do tabuleiro dos Estados-Nações, questiona-se a organização clássica da diversidade cultural europeia e hispano-americana. Esta se representa pelo uso pessoal e literário da herança comum, a língua de Cervantes. Jovens espanhóis se misturam a outros mexicanos e argentinos. A Academia Francesa (1635) já se sujeitara ao peso pós-colonial da globalização. Nela tomam assento o argentino Bianciotti, a argelina Djebar e o chinês Cheng. Os representantes das nations unies françaises têm voto na casa de Richelieu. Ah! O fantasma incorrigível do cardeal… Os 22 convocados não compartilham os ideais dos avôs, escritores militantes na esquerda ou na direita. Desiludidos com a luta política, iludidos com as transgressões em arte, os novos transitam entre literatura e cinema, como a argentina Lucía Puenzo, que abre a antologia com narrativa onde a irreverência morde o leitor. Intitulado “Cohiba”, nome de sedutor negão cubano, o conto se passa durante a realização de festival internacional de cinema em Havana. A cidade se desmilingue na opção pelo subdesenvolvimento insustentável. A imagem engajada do filme de Michael Moore envaidece a tela do festival e é torpedeada pelos espectadores, cujas mãos selvagens atiçam o gozo sexual no escurinho do cinema. Em seminário na escola de San Antonio de los Baños, trona García Marques, figura patética e nada brilhante. Resume o cubano Cohiba: “As empresas de turismo nos vendem com quatro S: sun, sex, sand e sea.” No conto “Condiciones para la revolución”, sua conterrânea Pola Oloixarac exuma memórias de juventude e o respeito aos heróis dos anos de chumbo. O leitor volta os olhos para o verão de 1973. Na estante, Eduardo Galeano e García Márquez. Na cabeça dos personagens, slogans do Partido Comunista Revolucionário. Nas praças públicas, o som “de
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las mujeres caceroleantes” (do panelaço). “Fueron tiempos muy duros, muy duros.” Ponto para a diversidade. No conto “Un infierno propio”, de André Neuman, o passado é só literário e está subjugado aos reclamos perversos postos em cena por Pedro Almodóvar no filme Maus hábitos. Notável poetisa mexicana do século XVII, Sóror Juana Inés é musa do narrador e nos dias de hoje sua companheira de folguedos brejeiros e inomináveis. Comparado ao comportamento das “redentoras iluminadas” de Maus hábitos, o de sóror Juana no conto de Neuman não destoa. A boa prosa requer também o pagamento de pedágio pelos muitos anos vividos. Em caso de dívida, o modelo avocado pelo discípulo controla como radar o espaço narrativo. É o caso do conto “Un hombre llamado Lobo”, de Oliverio Coelho, onde o clássico Pedro Páramo, de Juan Rulfo, monitora a procura do pai, perdido numa cidade-fantasma. O realismo fantástico ainda cobra porcentagem, como no conto “De la puerta y los seres extraños”, de Sonia Hernández. Já a violência inibidora da tradição literária sobre os novos autores arma o conto/ parábola “Unas cuantas palabras sobre el ciclo de las ranas”, de Patricio Pron. Tema da atualidade é garantia de que o autor não é azarão. Oriundas talvez das velhas comédias de Frank Tashlin e Jerry Lewis, as ironias sobre o consumo desenfreado ganham corpo nas relações entre Eva e Diego, no conto homônimo de Alberto Olmos. Se o modelo não aflora, pode aflorar a angústia da criação em oficina literária. Leia-se o conto “El lugar de las pérdidas”, do boliviano Rodrigo Hasbún. Se a angústia da criação não aflora, o texto torna-se cismarento e não consegue definir o personagem a não ser pela estranheza do que faz. Vá ao conto “Olingires”, de Samanta Schweblin. Ou pode ficar no tatibitate divertido, bem escrito e meio irresponsável de “La vida de hotel”, do espanhol Javier Montes. Garanto: futuro autor de best-sellers. Uma antologia de jovens ficcionistas acende o neon de novos nomes na mente letrada do leitor. É também suporte comercial na indústria do livro. No Modernismo, a antologia de jovens foi semelhante à revista de vanguarda. Ambas serviram para avançar nomes e ideais estéticos, políticos e sociais comuns. Hoje, exibe futuras vedetes ao olhar midiático ou cibernético do leitor. Nas velhas noites cariocas, o bar Amarelinho armava a vitrine para o artista. Suas mesas são substituídas pelo site e pelo blogue do escritor. Nestes faltam copos de chope e as fofocas dos garçons. Sobram autores ensimesmados, ativos e interativos que, a trocar mensagens pelo espaço cibernético, tentam reanimar afetos, ojerizas e pactos, cimento das gerações literárias. Ao bater a inveja, fará falta a leitura da Vida literária no Brasil – 1900, do impecável historiador Brito Broca.
Sacola com dentes de ouro
uando o saber e a pátina começam a recobrir os grandes acontecimentos históricos, de que o Holocausto é exemplo, os dramas demasiadamente humanos, mínimos e sinistros ganham consistência. Eles emergem nas gretas do quadro oxidado pelo exercício da ciência histórica e o desgaste do tempo e usurpam a superfície. O momento inoportuno das aventuras liliputianas reanima e reforça o significado universal da catástrofe. Já blasés, os cientistas sociais desprezam as figuras humanas de pequeno porte e macabras. Seus dramas são apenas infames. Merecem a lata de lixo da história e não as páginas de livro. Os romancistas se encantam pelos deslocados e anônimos. Tornam-se a exceção que confirma a regra geral da barbárie humana. Com o romance Lejos de dónde (Tusquets, 2009), ainda inédito entre nós, o argentino Edgardo Cozarinsky intervém na história do Holocausto. Ao final da Segunda Guerra Mundial, uma jovem guarda em campo de concentração, de descendência austríaca, se encontra só (sua filha única estava sob a guarda dum casal de poloneses), sem abrigo, sem fortuna e sem documentos. Terá de fugir para evitar o estupro, ou a morte – alerta um companheiro de trabalho no Natal de 1944. Ela se lembra do depósito onde ficam guardadas as sacolas de pano com os dentes de ouro arrancados dos cadáveres antes da incineração. Apossa-se da pesada e macabra fortuna para custear sua fuga sofrida pelo território polaco e tcheco até Viena. De lá, viaja a Gênova, onde, ainda em 1945, toma o navio para a Argentina. Como é dito em epígrafe, o romancista se interessa pela beirada perigosa das situações, onde habita o ladrão honesto e o assassino amável. No popular brasileiro: morre o cavalo a bem do urubu. A trama romanesca abandona a refugiada no porto mediterrâneo e a revisita em Buenos Aires no ano de 1948. É, então, hóspede da pensão de Frau Dorsch. O nome judaico, Taube Fischbein, lhe é emprestado por passaporte falso. Trabalha como cozinheira em restaurante alemão e convive com imigrantes romenos e húngaros. Ninguém sabe como conseguiu escapar da Europa devastada. No pós-guerra, o universo dos emigrantes europeus na América Latina se desenha pelo silêncio oferecido pelo marco zero, como o soubemos pelo tardio caso Eichmann. O silêncio enterra o remorso a fim de que a culpa, sob a forma de apreensão diuturna, seja sonegada ao círculo dos semelhantes. Nos anos 1950, o saber e a pátina tinham banalizado em branco e inocência as variadas cores sombrias dos delitos europeus. Cozarinsky reaviva-as para lembrar-nos como, abaixo do equador, são chamativas todas e qualquer das tonalidades brancas e inocentes ambicionadas pelos feitores do Holocausto em exílio. Se Taube tinha escapado do estupro ao final da guerra, o padecerá ao voltar do trabalho para a pensão. De olhos negros e pele escura, o bastardo se chamará Federico: “o Senhor lhe havia enviado o castigo merecido por ter abandonado no passado a filha loura, de olhos
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claros.” No terceiro capítulo, datado de 1960, reencontramos a mãe e o filho de 12 anos. Ela continua expatriada na cozinha do restaurante, enquanto ele, um rapazinho de traços mestiços, busca refúgio nos cinemas da cidade. Morre a mãe atropelada. O quarto capítulo se passa em fevereiro de 1977 e é conduzido pelo filho, um terrorista que, ao trair os companheiros e obter passaporte uruguaio falso, faz caminho semelhante e inverso ao da mãe em 1945. Passadas em dezembro de 2008, as páginas finais do romance dramatizam o encontro por acaso dos irmãos. Ela é balconista de bar na estação central de Dresden. Eles não se reconhecem e a conversa fiada não leva o leitor a enxergá-los como seres humanos que povoaram as frinchas do fim do século XX. As gretas do Holocausto fecham-se modestamente em Lejos de dónde. Uma das inúmeras epígrafes do romance diz que “contos não se inventam, são herdados”. Da perspectiva do romance em pauta, a afirmação é falaciosa, pois os filhos não herdaram à altura a aventura escabrosa da mãe. São meros pingentes. Na formação do caráter, acaso e necessidade são inimigos ferozes do DNA. Irmão e irmã não têm a força identitária de urubus da desgraça alheia, que os faria ombrear com a violência da vida vivida pela imigrante Taube Fischbein, aliás, Therese Feldkirch. Se o romance Lejos de dónde é menos revelador nos dois capítulos finais, há que voltar aos primeiros capítulos e examinar três intervenções na trama, paralelas à fuga de Taube. As três passagens entrecortam metaforicamente a história. Nelas, o narrador se refere ao fotógrafo ucraniano Yevgueni Khaldei (1917-1997), de descendência judaica, então tenente do exército soviético. No front alemão, registrava as conquistas da Grande Guerra Patriótica para a agência de notícias Tass. Em maio de 1945, ele fotografa o instante preciso em que um soldado russo hasteia a bandeira soviética no telhado do parlamento alemão em ruínas. (Em termos simbólicos, sua foto, “A bandeira vermelha sobre o Reichstag”, é tão memorável quanto a de Joe Rosenthal, que retrata o hastear da bandeira americana em Iwo Jima.) De volta à pátria, Khaldei tem a rotina atormentada por acontecimento imprevisto. A criação do Estado de Israel detona uma onda de antissemitismo na União Soviética. A agência Tass dispensa seus serviços. Começam os anos de difícil sobrevivência, que só terminam quando o jornal Pravda o chama de volta. Ao ter o valor finalmente reconhecido, Khaldei desconstrói a aura que recobre a foto documental. Escolhera um negativo entre os 36 clicados. A cena fora encenada três dias depois da tomada de Berlim. A bandeira soviética à disposição não era fotogênica. Khaldei pediu a um alfaiate de profissão que a costurasse do zero. É artificial a fumaça negra que recobria a cena; no entanto, ela “contribuiu para a autenticidade da foto”. O retoque preciso do artista é a garantia da verdade poética. “É uma bela imagem, não?” – Khaldei teria perguntado a um repórter bisbilhoteiro.
Liberdade interior
m 1943, quando bombas e palavras de ordem explodiam por toda a Europa, o romancista francês Georges Bernanos ponderava: a França é capaz de se adaptar a todas as formas da guerra moderna, exceto a uma, à dos alto-falantes. Nesta guerra, justificava em seguida, “a França será sempre derrotada, exatamente porque o país existe para que não seja sufocada certa liberdade interior, que é como a parte de silêncio indispensável para se ouvir a voz simples e sincera de cada homem de boa vontade”. No dia 25 de outubro de 1977, o teórico e ensaísta Roland Barthes perde a mãe querida. No apartamento de Saint-Sulpice, em Paris, não se ouve o choro das carpideiras nem espoca o flash dos paparazzi. Alteia-se certa liberdade interior. Ela se confunde com a parte de silêncio indispensável para que o filho medite de modo simples e sincero. As palavras tomarão corpo em 330 fichas que, transcritas e reunidas, comporão o livro Diário de luto (Almedina, 2010). Qual delicado poeta lírico, Barthes ausculta, descobre e examina sentimentos e emoções que atravessam sua existência diária até a tarde em que ele próprio irá minguar em leito hospitalar, atropelado por um furgão. Na primeira ficha, datada do dia seguinte ao da morte, o órfão já ousa. Constata: “Existe a primeira noite de núpcias”, e engatilha: “Haverá primeira noite de luto?” A comparação abre o território dos afetos e da escrita, não para a posse exclusiva do cadáver (palavra, aliás, inexistente nas fichas), mas para o prazer na mortificação por que passa o sobrevivente diante da súbita “presença da ausência”. O silêncio da suave voz materna, anota, é causa duma “surdez localizada”. A morte celebra − não é para isso que existem as palavras? − a cerimônia de adeus ao corpo vivo e à fala da mãe, assim como o prazer sexual abre corpos apaixonados para selá-los no abraço definitivo. Na noite em que morre a mãe, o pesar pelo seu desaparecimento não é menos intenso nem menos egoísta que o proporcionado pela descoberta do amor carnal na madureza. A segunda ficha elucida o subterrâneo da primeira noite de luto. Afirma-se enfaticamente: “Você não conheceu o corpo da Mulher!” Contesta-se: “Conheci o corpo doente e depois moribundo da minha mãe.” Em novembro, o órfão sonha pela primeira vez. “Mamãe estava deitada, mas de modo algum doente. Vestia a camisola cor-de-rosa comprada na loja Uniprix.” Em seguida, Barthes se dedica a desbastar a linguagem de seus lugares-comuns. Severo Sarduy propõe ao amigo a “cura pela tranquilidade”. Irritado, Barthes anota: “O luto (a depressão) é bem diferente duma doença. Do que querem que eu me cure?” A Enciclopédia Larousse propõe a duração de 18 meses para a perda de pai ou de mãe. Como é tolo medir a intensidade do luto! Assevera o órfão: só a “emotividade” do luto é que passa. Ao ouvir a frase “Ela não sofre mais”, quer saber a quem o pronome ela reenvia e o motivo para o presente do indicativo. Desespero, anota, é palavra por demais teatral. Já a palavra luto é psicanalítica.
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Como Marcel Proust, prefere o termo pesar (chagrin). “O pesar é egoísta”, anota. E esclarece: “Moro no meu pesar e é isso que me faz feliz.” Nele submerso, entrega-se à “disponibilidade dolorosa”. Os desejos particulares seriam franqueados com a morte da mãe? Em viagem pela Tunísia e, mais tarde, pelo Marrocos, descobre que o luto enterra também a “impressão de liberdade”, em que se debatia quando se distanciava dela em vida. “Ali onde o mundo me diz ‘Aqui você tem tudo para esquecer’, menos atino com o que me levaria a esquecer.” Ao contrário dos moralistas do século XVIII, Barthes não se vale de abstrações para descrever os sentimentos íntimos. A sensação de abandono se autonomeia pela experiência concreta. Enterrada a mãe na cidade natal, ele volta ao apartamento. Anota: “Como é que vou poder viver ali sozinho?” Dias depois observa que solidão é monodrama. É não poder dizer a alguém, ao sair, a que horas estará de volta. O órfão convive com a ausente no reino do banal (sic). Ao dar conta da casa, da cozinha e da roupa suja, compartilha “os valores do seu cotidiano silencioso”. A presença dela se torna então palpável. Durante a longa doença, o filho agiu como “mãe da mãe”. Teria perdido a filha? Ao rever o filme Pérfida, de William Wyler, a infância revive na imagem da latinha de pó de arroz aberta por Bette Davis. Noutro filme, o foco no cordão trançado que acende o abajur entrega ao espectador a imagem da mãe às voltas com as prendas domésticas. Anota: “Inteirinha, ela saltou para o meu rosto.” Na leitura da biografia de Marcel Proust, ecoa o desejo de morte. Quando Céleste lembra ao patrão a cena da ressurreição no vale de Josafá, Proust lhe diz: “Se tivesse certeza de que reencontraria Mamãe, morreria agorinha mesmo.” Coragem significa querer-viver. A dedicação à mãe doente fora total. Anulara qualquer desejo de escrita. “Ela era ‘tudo’ para mim.” Morta, a mãe se torna opaca e aflitiva: “Sempre a sensação dolorosa de que as tarefas, as pessoas, as solicitações etc., me separam de mamãe.” No entanto, o luto rememora e torna o órfão atento à antiga e silenciosa lição materna. Irrompe uma ideia que o assombra. “Nem sempre a mãe fora tudo para ele.” Ela “se fazia transparente para que eu pudesse escrever”. A eficácia no trabalho intelectual tinha sido atingida na disponibilidade mínima. Manifestação do Bem Soberano, a transparência passageira torna a Mãe presente em todos os seus escritos. Busca reproduzir a bondade materna na própria vida. Só consegue imitar traços menores da sua personalidade. Por exemplo, as falhas de memória. Esquece as chaves, as frutas compradas no mercado. No reinício do ano letivo, Barthes fica à espreita do dia 10 de março (domingo da Páscoa), “não para entrar em férias, mas para reencontrar a disponibilidade onde mora a mãe”. Na noite fria de inverno, permanece só na casa aquecida. Há que transformar o “trabalho no sentido analítico − do luto e do sonho, em trabalho real – o da escrita”. Anota em seguida: “Perder o medo agora que a perdi.” Não há por que temer a catástrofe que já aconteceu (apud Donald Winnicott).
Dentro da perda da memória[1]
romancista Nathalie Sarraute chamou a atenção para uma figura de retórica que era usada de maneira anônima na prosa de ficção moderna. Alertou-nos para certo tipo de diálogo sem palavras que em conto ou romance se passa entre personagens e objetos e entre personagens. À noite, um casal passeia em silêncio pela calçada e interrompe a caminhada. Viram-se os dois para a luz intensa da vitrine. Com o desejo e os olhos, um e o outro conversam com os objetos expostos. Durante o ensaio, o músico se inclina para o maestro. Em sala de aula, o estudante, para o professor. A presença do outro provoca no músico e no aluno um enxame de complexos movimentos subjetivos que, se bem descritos, desenham o perfil psicológico de cada um. O romancista moderno reproduz esse diálogo afetivo, que nada tem a ver com o monólogo interior. Nathalie Sarraute deu-lhe o nome de subconversa ( sousconversation). Para explicitar o funcionamento da subconversa na psique humana, ela recorreu a um termo da linguagem científica – tropismo. O ser humano age como a planta frente à presença imperiosa do sol. A mudança de orientação no comportamento é determinada por estímulo inesperado e externo. Lembrei-me de Nathalie e dos contos de Tropismos (Komedi, 2009) ao ler os doloridos relatos curtos reunidos pela argentina Sylvia Molloy em Desarticulaciones (Eterna Cadencia, 2010), alguns já traduzidos para o português e publicados na revista Serrote (n.9). Tomada pela doença de Alzheimer, a antiga parceira de Sylvia, M. L., perde a memória. Os relatos curtos dão conta das sucessivas visitas de Sylvia ao apartamento da ex-companheira. A pouca conversa entre as duas e a excessiva subconversa se desenrola de maneira desarticulada, vale dizer, desprovida de significado factual. No entanto, a desarticulação se arma por um ímã solar, a atração amorosa, que a acondiciona. A atração aproximou as duas e, pelo acaso da doença, as reaproxima para distanciá-las definitivamente. “Sinto que a estou abandonando”, diz a narradora na página final, e acrescenta: “De algum modo, é ela que se está abandonando.” A atração amorosa motiva a inclinação da visita, não correspondida pela enferma − um objeto cintilante na vitrine do apartamento. E persiste como pano de fundo, de onde os relatos sucessivos retiram sentido. O desencontro não é a tônica dramática do livro; propõe a “subconversa” que empurra penosamente a escrita de Sylvia para o conhecimento da doença. Sem fuga sentimental para o passado e sem esperança de futuro a dois, a comunicação entre a pessoa que recorda e a pessoa desprovida de memória se dá “no puro presente da linguagem”. Já a narradora goza de grande liberdade narrativa. Não existe mais testemunho confiável da antiga vida em comum. À semelhança do personagem Mr. Arkadin no filme homônimo de Orson Welles, só ela controla os fatos do passado. No discurso amoroso, a doença de
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Alzheimer padecida por uma é a vitória ditatorial da outra sobre a intimidade das duas. “Se decidir inventar, não há mais ninguém para me corrigir” – escreve Sylvia. Como dar significado a uma pessoa que requer atenção, pois “ainda está” (diz a dedicatória), mas já não “é”? Para apreender com objetividade o comportamento da enferma, a visita a observa e recorda. M.L. tinha horror ao tempero de alho e de cebola. Também não se servia de carne. Estranha Sylvia: M. L. leva à boca uma colher de sopa de cebola e, mais tarde, um pedaço de carne. As desmemórias da enferma são relatadas pela falta de subconversa entre ela e os alimentos: “Ela já não sabe o que come, come de tudo.” Quando tem de mastigar a comida, esquece: engole pedaços inteiros de bife. Mastiga por horas o iogurte. Apenada, Sylvia constata que M. L. tinha perdido a aversão por certos alimentos e os prazeres (gustos) do corpo. Só a narradora poderia restaurar como arqueóloga a subconversa entre M. L. e a comida. A perda do paladar – e dos prazeres do corpo − é homóloga da perda da memória. Nas relações humanas, a perda da memória se recobre por frases de cortesia a que a enferma recorre, como se as boas maneiras pudessem suprir a desrazão. A enferma diz à enfermeira em espanhol: “Estás muy linda, te veo muy bien de cara.” É a primeira vez que vê a enfermeira, que, por seu turno, não fala espanhol. A visita traduz a frase para a enfermeira, que cai de amores pela enferma. Também homóloga da perda da memória é a perda do nome. Ao ser internada no hospital, perguntam a M. L. seu nome, responde “Petra”. Boas maneiras não são privilégio da enferma. Uma das amigas que a acompanha vê na resposta surpreendente o indício de que ainda é capaz de ironia. Pensa a narradora: “Se houve ironia, e não apenas o desejo de julgá-la capaz de ironia, trata-se de uma dessas ironias a que se há de qualificar de tristes.” Perguntar pela boa saúde de M. L. é curiosidade hipócrita sobre a consciência que a enferma tem da desmemória. M. L. recorda fragmentos de Aristófanes em grego, poemas de Rubén Darío. Sylvia pergunta-lhe sobre o que a leva a se lembrar dos versos. Responde que há neles palavras que ela julgava estranhas quando criança. “É perfeitamente razoável o que me diz”, constata Sylvia. E pergunta a si: “Como pode ser essa a mesma pessoa que, logo em seguida e pela enésima vez, me pergunta se o dia está frio e se quero tomar o chá que acabamos de tomar?” M. L. inventa palavras. Numa das visitas, repete “jucujucu” e com os dedos conta as sílabas. Tem uma sílaba a menos, a do mindinho. Diz: que azar! Sylvia lhe aconselha acrescentar uma sílaba: “jucujucu-ju”. M. L. tenta de novo e dessa vez cada sílaba tem seu dedo. “Que sorte, diz, e sorri satisfeita.” Sylvia entrou na doença e na sua retórica. Já nada lhe surpreende. Para que continuar a escrever Desarticulações?
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Dentro da perda da memória
uma mulher azul estava deitada que escondia entre os braços desses pássaros friíssimos
que a lua sopra alta noite nos ombros nus do retrato. E do retrato nasciam duas flores (dois olhos dois seios dois clarinetes) que em certas horas do dia cresciam prodigiosamente para que as bicicletas de meu desespero corressem sobre seus cabelos. E nas bicicletas que eram poemas chegavam meus amigos alucinados. Sentados em desordem aparente, ei-los a engolir regularmente seus relógios enquanto o hierofante armado cavaleiro movia inutilmente seu único braço. João Cabral de Melo Neto
Ler Lolita no Teerã
título chamativo da autobiografia da iraniana Azar Nafisi – Lendo Lolita em Teerã (Bestbolso, 2009) – extraviou por duas vezes meu desejo de lê-la. Ali mencionado, o já clássico romance de Vladimir Nabokov é exemplo de obra cuja leitura seria a priori proibida em Estado religioso, já que narra evidente caso de pedofilia heterossexual. Um velho professor se apaixona por uma ninfeta, Lolita, assedia-a e a possui. No contexto da revolução islâmica, a leitura do romance de Nabokov parecia-me óbvio contrassenso. Perda de tempo. Por vontade própria, Azar Nafisi se demitira do posto de professora na Universidade de Allameh Tabatabai. No auge da revolução dos aiatolás, organizou um salão de leitura em casa, de que participavam sete ex-alunas. O grupo de estudos se dedicava à discussão semanal dos clássicos da literatura ocidental. A autobiografia narra essa experiência. Ainda por vontade própria, Azar se autoexilou nos Estados Unidos, onde é professora na Universidade Johns Hopkins. O livro estaria narrando mais um aprendizado em diáspora política, possivelmente com happy ending. Dois equívocos meus. Procuro desfazê-los publicamente. Por Azar ter aclimatado uma obra-prima da ficção ocidental no contexto político e religioso oriental, merece destaque o primeiro e longo capítulo de Lendo Lolita em Teerã . Merece-o por ter a autora orientado o Ocidente pela rotação da terra em torno do Sol, como dizem os versos de duplo sentido na canção “Oriente”, de Gilberto Gil. Sob o olhar iraniano, Lolita perde e ganha outro sentido. Não se excluem as leituras literárias feitas dentro e fora do Ocidente. Somam-se e esclarecem. A prova está no longo capítulo em que as oito mulheres iranianas debatem o romance maldito de Nabokov. As análises de dentro e de fora do Ocidente melhor se somam porque Azar sabe que, ao transformar uma grande ficção em mera cópia da vida real, o leitor a está menosprezando. O que se busca, na leitura da obra literária, é “a aparição súbita da verdade”. Mais reveladora será a verdade poética, se ela desenraizar o leitor do seu conforto doméstico. Azar cita uma frase de Theodor Adorno, que lhe serve de guia: “A mais elevada forma de moralidade é a de não se sentir em casa quando se está em casa.” A melhor ficção – continua ela por conta própria – “questiona as tradições e as expectativas quando parecem imutáveis”. À primeira vista, o que está em pauta na leitura muçulmana de Lolita é a ausência dos conceitos ocidentais de maioridade feminina e de pedofilia heterossexual. No mundo muçulmano, é permitido o casamento e a relação carnal entre um homem mais velho e uma menina, desde que já menstruada. As leituras censórias do lado de dentro do Ocidente e do seu lado de fora batem em teclas semelhantes, mas de sinal invertido. No Ocidente, o vilão da narrativa de Nabokov é o velho professor, um “predador”, segundo
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toda leitura que acolha a verdade expressa no Estatuto da Criança e do Adolescente. Em Teerã, o vilão da narrativa é Lolita. Menina e moça de grande beleza e sensualidade que, por não dissimular com tecido os encantos físicos, enfeitiça os homens à sua volta. “Depravada”, é como a qualificam os críticos oficiais iranianos. Predador e depravada, atribuídos pelos censores, respectivamente, ao professor e à ninfeta, não são suficientes para a boa apreciação do drama humano apresentado no romance. Apenas indiciam um buraco negro, inapreensível a olho nu, de que se serve Azar Nafisi para nele revelar o problema existencial da mulher, dramatizado de modo radical em Lolita – o da sua impotência absoluta. Ao constatá-la no salão de leitura iraniano, a narradora observa que o velho professor “impede Lolita de conviver com crianças da idade dela, vigia-a para que jamais tenha um namorado, amedronta-a para manter segredo, suborna-a com promessas de dinheiro para terem relações sexuais, e revoga-as depois que consegue o que quer”. De maneira mais escandalosa, alerta Azar, o drama vivido por Lolita indicia o problema existencial de todo e qualquer cidadão – homem, mulher ou criança – que tenha as possibilidades infinitas de vida confiscadas por outro. Lido em Teerã, o drama sentimental exposto em Lolita ganha dimensões épicas. Com rara felicidade, Azar Nafisi desentranha dele uma figuração política e religiosa que busca valor universal. Chama-a de solipsismo. O dicionário filosófico informa que solipsismo é a doutrina segundo a qual só existem, efetivamente, o eu e suas sensações, sendo os outros entes meras impressões sem existência própria. Observa Azar que o solipsista quer moldar os que o cercam segundo seus sonhos e desejos. Pelo drama do velho professor às voltas com Lolita, Nabokov encena o modo de ação política e religiosa de todo solipsista. Em lugar de governar os humanos, ele cria “uma massa desenraizada e inorgânica”, para usar as palavras de Hannah Arendt em análise dos regimes totalitários. O cidadão perde “o mundo”, ou seja, o sistema de referências que o ser humano constrói em torno de si, atribuindo, em função do que faz, sentido a certas coisas e a outras pessoas. Em resumo das teses de Hannah Arendt, Jorge Grespan informa que a perda do “mundo” com que dialogar implica a perda da capacidade de pensar (Pensamento alemão no século XX, Cosac Naify, 2009). Lido em Teerã e relido por nós, ocidentais, Lolita abala os alicerces de autocracias lideradas por falocratas, ou solipsistas. Seria esse abalo uma tranquila vontade universal? Não o é ainda. Não o será?
Mudando minha cabeça
institucionalização dos direitos libertários e civis acentuou a questão da pluralidade. Evito o vocábulo tolerância. Ele retém a ideia de desigualdade sob a forma de generosidade do privilegiado. Na sua reconfiguração, a pluralidade se tornou cortesã e rainha nas nações da União Europeia e nas do Novo Mundo. A exigência de respeito à pluralidade talvez seja a forma mais eficaz de contestação aos regimes no poder. Haja vista o sempre problemático caso de Cuba e da China. Coloca, também, no banco dos réus a crítica das artes, cujos fundamentos são eurocêntricos. Repudiam tanto o despreparo intelectual do artista e sua falta de originalidade quanto o clichê e a inadimplência formal. No banco dos réus, a crítica das artes recorreu a duas válvulas de escape. A fim de trazer à luz obras silenciadas pelo poder do cânone ocidental, de que Harold Bloom é o defensor nas Letras, abre espaço na história das artes para o excluído, de que Stuart Hall é teórico e a arte da mulher, dos negros e dos gays, exemplo clássico. Ao compreender a contrapelo o processo histórico de ocidentalização do planeta, os estudos culturais foram responsáveis pela segunda válvula de escape. Esta liberou a entrada da produção cultural dita primitiva ou popular, recalcada pelo primado da tradição letrada. No interior da crítica das artes, as duas válvulas repetem o processo de divisão do todo, seguido pela rejeição de certa parte do que o constituiu enquanto tal. Sob o primado das válvulas, a valorização da parte rejeitada se dá pelo avesso. O não canônico expulsa o canônico e a cultura negligenciada, a arte tradicional. Nos piores casos, as duas válvulas de escape são sectárias. Não trabalham a diferença. Eliminam o conflito pelo recurso a uma teologia às avessas. Filha de pai inglês e mãe jamaicana, a romancista Zadie Smith (1975) acaba de abrir uma terceira válvula de escape com Changing my mind (Mudando minha cabeça, 2010). Trata-se de uma coleção de ensaios sobre a literatura e as artes. Há que estar atento aos passos teóricos e analíticos da premiada romancista. O trabalho crítico elabora o estatuto do corpo feminino mestiço, antes de elaborar a teoria disciplinar. Zadie lê a escritora e ativista negra Zora Neale Hurston, que sempre recusara a ler, para questionar a formação refinada que recebeu na Universidade de Cambridge e confessar: “Ela é minha irmã e eu a amo.” O trabalho crítico não elimina a história pessoal de quem o exercita. O ensaio “Herói acidental” erige em ícone o pai britânico, jovem combatente na invasão da Normandia (1944). O trabalho crítico afirma a singularidade da voz, antes de recorrer à universalidade das ideias. No prefácio, confessa: “Para mim, a inconsistência ideológica é praticamente um artigo de fé.” Zadie busca a tradição no inglês, língua nacional em que se expressa, antes de trabalhar com o esperanto teórico acadêmico. Ela afirma que “aspira à neutralidade e ao estilo elevado de Lionel Trilling e de Edmund Wilson”.
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Antes de serem públicos, os bens artísticos são colecionados em memórias individuais, privadamente. O trabalho crítico opera uma reorganização nas mercadorias simbólicas acumuladas, que constituem as posses do profissional. Ele as energiza para montar o corpus a ser privilegiado e alimentar o julgamento. Em processo semelhante ao descrito pelo termo posterioridade (après-coup) por Sigmund Freud, a atividade crítica reorganiza os elementos soltos no regime da memória, com vistas ao seu emparelhamento por assimetria. Ressurgem aos pares, selecionados pela saliência contrastiva. A obra de teoria crítica ou de arte não se encontra solta no ensaio, embora seja individualizada. Antes de ser emissor de julgamento, o trabalho crítico sistematiza as posições teóricas opostas, em que o analista se insere por sua história e formação. Antagônicos, Roland Barthes e Vladimir Nabokov convivem em diferença. Barthes defende o autoritário leitor assassino. Afirma: “O nascimento do leitor é custeado pela morte do autor.” Nabokov acredita no privilégio único do autor. Seu leitor é apenas releitor (rereader). Sua melhor releitura não se aproxima da leitura do livro pelo próprio autor. Zadie comenta o caminho da pluralidade crítica: “A tensão entre os dois modos [de leitura] torna-se significativamente aguda quando tento ler o romancista Nabokov como Barthes recomenda.” Trair a um, sendo fiel ao outro. Por fora, enriquecem-se os dois. A figura contestadora de Katharine Hepburn, incapaz, no entanto, do casamento adulterino com Spencer Tracy, contrasta-se com o rosto etéreo de Greta Garbo, que tornou irrelevante a exibição pública do corpo. Hepburn chora lágrimas reais. Frente ao foco de luz, o rosto de Garbo recria a luminosidade. O sucesso advém do fato de que cada atriz interpreta cada vez melhor a ela própria. Anna Magnani lhes faz companhia: “Por favor, não retoquem minhas rugas. Levei muito tempo para ganhá-las.” O forte ser singular é uma ilusão – afirma Zadie. Figuras fortes e singulares são colocadas ao lado de outras figuras fortes e singulares, não importa se representantes da cultura letrada ou da pop. Cada uma tem sua forma e sua atitude, próprias e originais sem dúvida, até o momento em que, refletida no espelho da outra, se descobre tão híbrida quanto a crítica mestiça que a admira. Assim se opera o processo crítico por e para todos. Ao revisitar obras que lhe pertencem, nelas o analista se redescobre plural. O trabalho crítico não visa a um fim. Existe no movimento constante de renovação, que é dado pelo uso do gerúndio. Ele acrescenta ao verbo a ideia de início da ação. Changing my mind. Dá-se início à ação de mudar a cabeça.
Uma rosa fura o asfalto no Harlem
migrante é quem perde o solo cultural. Pátria, família e amigos abandonados, ele atravessa, qual frágil e potente jato, a zona de turbulência do anonimato. Em reação ao entorno babélico, os olhos clicam as múltiplas facetas do cotidiano, mergulhando as fotos soltas e disparatadas em lembranças de velhas experiências e de figuras familiares e amigas, formadoras da personalidade. A memória serve para esconjurar a alienação presente do corpo, adensando e colorindo seres e coisas estranhos, inventariados no dia a dia tumultuado. Imigrante é tubo de ensaio. A mente é gerenciada em dependência de substâncias químicas que ela não classifica com correção, embora as abrace e com elas comungue no escuro da dúvida e da necessidade. Da mistura in vivo resulta um híbrido, uma bricolagem de ser humano passível (ou não) de ser reconhecido e aceito pelos estranhos que o acolhem. O espaço aberto no planeta pelos grandes descobrimentos foi pródigo em imigrantes (e, hoje, em emigrantes). As várias fases das diferentes imigrações no Novo Mundo já foram historiadas e ficcionalizadas. Surge uma bela novidade. Em seu primeiro romance, Open City (Cidade aberta. Companhia das Letras, 2012), Teju Cole, que viveu até os 17 anos na Nigéria, trabalha literariamente as diásporas, ordenando-as pelo ímã de Manhattan. Ao perder o solo cultural, o nigeriano Julius, narrador/protagonista de Open city, se compensa. A solidão busca o bem-estar na música clássica, na literatura e na história do país que o perfilha. Como pesquisador na ala psiquiátrica do hospital presbiteriano da Columbia University, os rudimentos da vida gregária lhe são propiciados pela realização profissional. Instruído pela lição de Gustave Flaubert, Cole começa o romance pela vida sentimental do personagem adulto. Este parece retirado do romance Amerika, de Franz Kafka. Nas duas ficções sobressai o desejo de relatar do patamar do abandono as minúcias do cotidiano – o da rua, do trabalho, das viagens em metrô e das visitas a museus. Julius não se quer enclausurado no vácuo. Avança na turbulência. Caminha aleatoriamente por Manhattan. Pegadas preenchem o vazio da vida. Enxerga a penúria financeira a minar a prosperidade. As grandes lojas estão “out of business”. As estações de metrô são povoadas por figuras que o espelham simbolicamente. O aleijado, o cego, o surdo. A documentação que recebeu ao cruzar a fronteira não o ajuda a compreender o inventário do real. Ajuda-o a visita ao Museu de Arte folclórica. Encanta-se com as telas pintadas por John Brewster (1766-1854): “Cada retrato é um mundo lacrado, visível de fora, impossível de ser penetrado.” Descobre: Brewster é pintor itinerante e surdo. As crianças e os adultos que retrata também são surdos. Comunicam-se por sinais. Julius não quer ser mero imigrante. Uma porta se fecha, outra maior se abre, como no caso dos cegos Jorge Luis Borges e Ray Charles. Cidade aberta é a rosa de uma nova África que fura o asfalto no velho Harlem. Para compreender a condição humana rebaixada, que fere e inquieta os olhos, Julius
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recorre à lembrança da devoção iorubá. Lembra-se de Oxalá embriagado e do poder maléfico do licor de palma. Tendo recebido de Olodum o saco da criação, Oxalá lega-nos seres de barro, deformados de nascença. É devoto de Oxalá o que nasce deformado fisicamente – tranquilizase Julius. O culto que o filho do semideus lhe presta é ato de acusação, por isso se veste com o branco do licor que embriagou o insensato. Cavoucado, o solo cultural do cotidiano no Harlem se torna palpável. Palpável é também a imagem dos patos selvagens que Julius, da janela do apartamento, enxerga em “migração natural”. O imigrante é quem melhor pode naturalizar a migração, compreendendo-a como simples e rotineiro movimento dos seres humanos e aves pelo espaço do planeta. Notável em Cidade aberta é o modo como o fraseado não distingue o que é dado como real e histórico do que é artístico e religioso. Como adiantamos, cegos e mudos tornam-se inteligíveis nas telas de Brewster e deformações físicas, na devoção iorubá. A caminhada por Wall Street vira a história holandesa de Manhattan, a pesca da baleia, Moby Dick e a fundação de igrejas. A espaçosa estação de metrô é catedral gótica. Vestida em camadas de preto, como em tela de Velásquez, uma senhora se adentra pelo carro do metrô. Presente e passado são indistintos, assim como os formatos originais de pessoas e de lugares, as texturas e as cores. Pela fé na écriture artiste, a indistinção eleva a prosa sensível de Teju Cole ao absoluto da épica, destituindo-a, no entanto, da glorificação heroica ou do embasamento nacionalista. O fraseado de Cidade aberta decide também não distinguir o que é sintoma nos pacientes da ala psiquiátrica do que foi o massacre dos índios e a escravidão negra. Os fatos cruéis que construíram a nação americana se encaixam organicamente na atualidade enferma dos cidadãos. A paciente V., professora na New York University e descendente dos índios do Delaware, publicou livro sobre o holandês Van Tienhoven, o monstro da Nova Amsterdam, que dizimou tribos inteiras da região. Sobrevive à custa de tratamento psiquiátrico e remédios. No caso de Julius, Cidade aberta decide também não distinguir o que é a insuficiência educacional na Nigéria, que o levou a migrar, do desentendimento recente com a mãe africana que, por sua vez, tinha se desentendido no passado com a mãe (avó no caso do personagem) de origem belga, perdida para sempre. África, as Américas e a Europa se desintegraram pela violência, a dor e o desespero das diásporas. Híbridos, romance e protagonista deixam que o mundo entre em comunhão literária na época descrita por Carlos Drummond como “tempo de gente cortada. / De mãos viajando sem braços, / obscenos gestos avulsos”. Em suma, um romance notável, a ser lido em terra de amores expressos.
Nemesis
ntes da descoberta da vacina contra a poliomielite, Nemesis, de Philip Roth, arma sua trama em torno da incidência do vírus entre as crianças judias da cidade de Newark, em 1944. Por esse viés, ele se aproxima do Diário do ano da peste (1722), de Daniel Defoe, que descreve em estilo realista a plaga que assola Londres a partir de 1665. Aproxima-se também do romance A peste (1947), de Albert Camus, que narra de maneira ficcional o destino dos aprisionados pela epidemia bubônica em Orã, na Argélia. Acrescente-se que a trilogia diz algo sobre as pandemias que nos afligem hoje. Roth buscou autonomia dentro do intimidante quadro artístico. As comparações indicadas acima, parasitárias da história social, são extrapoladas por alusões à mitologia grega e ao Velho Testamento. Ao nomear a deusa da vingança, o título do romance esclarece a necessidade do imperativo trágico para que respeito mútuo, harmonia e amor voltem a reinar entre os humanos. A vertente mítica de Nemesis lembra a figura do padre jesuíta Paneloux, de A peste, às turras com o médico, Dr. Rieux. Em dois sermões, o padre justifica a epidemia como expressão da vingança de Deus frente ao estado de pecado, prevalente na cidade. Se o religioso busca a cura pela salvação da alma, o médico, a cura pela saúde do corpo. Em contradição com a vocação religiosa de Nemesis, seu personagem principal, Bucky Cantor, de porte atlético e exímio no arremesso do dardo, é o consciencioso diretor do playground no bairro judaico, onde as crianças praticam esporte. No entanto, fora ele o portador saudável (“healthy infected carrier”) do vírus. Nemesis revira pelo avesso a oposição entre salvação e saúde. No sacrifício dos inocentes, Deus contou com o auxílio de um ser humano que deveria tê-los salvado. A originalidade temática se enriquece com uma pirueta retórica. Roth entrega o ato de narrar a epidemia a Arnie Mesnikoff que, ainda menino, fora contaminado com o vírus da pólio no playground. Arnie é judeu ateu e sua versão da experiência por que passaram na infância reflete e visa a ultrapassar os limites meramente sentimentais do drama vivido pelo atleta. No capítulo final de Nemesis, “Reunião”, Arnie (narrador) e Bucky (protagonista), já velhos e cadeirantes, dialogam sobre culpa, inocência, acaso, doença e vingança divina. De modo menos evidente, a longa conversa remete o romance à questão da culpabilidade inocente, dramatizada na peça Édipo, de Sófocles, e ao tema da in/consciência no mal, poetizado por Charles Baudelaire.
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Desconstruindo o gênero conto
djetivemos a polivalente Lydia Davis. Ela foi casada com o conhecido romancista norteamericano Paul Auster. Tiveram filhos. Traduziu para a língua inglesa obras de Gustave Flaubert, Marcel Proust, Maurice Blanchot e Michel Foucault. O prefácio dela para a tradução que fez de Madame Bovary foi republicado pela Penguin Companhia em 2011 e é notável por ser preciso e conciso. Recomendo-o. Saltemos para o lado substantivo da polivalência. Nascida em 1947, Lydia é, no campo do conto (short-story), a figura mais destacada de sua geração. Para considerá-la como tal, o leitor deve desconstruir a tradição do gênero conto que é garantida, na língua inglesa, pelo adjetivo short. Deve só prestigiar o substantivo story, que se lhe segue. Ela já publicou quatro coleções, atualmente reunidas em The collected stories of Lydia Davis (Farrar, Straus and Giroux, 2010).[1] Ao pé da letra, Lydia não escreve short-stories, escreve stories. Não escreve contos nem poemas em prosa. Não escreve textos, abomina a palavra; tampouco escreve fábulas, teme o perigo de o leitor sair em busca da moral. Escreve estórias, daí o caráter excêntrico da sua produção literária. Afirma que a etiqueta “conto” perdeu o sentido. Significa um gênero de texto literário a que nos acostumamos ao crescer. Explica-se: “Cresci admirando conto definido por personagens, diálogo e cenário; cresci admirando Tchecov, Flannery O’Connor e Guy de Maupassant.” Hoje, continua ela, não estou mais interessada em criar um relato composto de cenas que retratam personagens dialogando em dado ambiente. Tais cenas lhe parecem artificiais, embora admire alguns prosadores que deixam a artificialidade criar cenas que ela julga artificiais. Sua poética não é um prêt-à-porter. É dela. Em contexto de mistério, suas estórias narram até à exaustão um acontecimento isolado. Imaginem uma bailarina. Traz a perfeita técnica da dança na ponta dos pés. Esqueceu a coreografia. Quer recuperá-la com classe e dignidade. Faz rodopios endiabrados num espetáculo em que o enigma do drama agarra o espectador pela comicidade involuntária. Seus narradores, na maioria mulheres, seriam obsessivos? São, e talvez mais que isso. Críticos os qualificam de autistas. Não procuram entusiasmar o leitor com a intenção de leválo a desejar apreender o cerne emotivo da trama (the emotional heart of the matter). A estória que empresta título ao livro Samuel Johnson está indignado (2001) é bom exemplo. Ela se compõe de título, o mencionado na capa do livro, mais dois pontos e uma frase: “Por haver tão poucas árvores na Escócia.” A frase não foi inventada por Lydia; foi tirada da famosa biografia de Samuel Johnson escrita por James Boswell. A frase é dos dois; a estória, dela. E esta sugere ao leitor que a indignação de Johnson não é a que está expressa por célebre tirada, “O patriotismo é o último refúgio de um canalha”, mas a que se transmite pela discrição e a
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visão de futuro. Transforma o rabugento autor clássico num bem-humorado indignado, favorável à melhoria do meio ambiente. Tamanho da estória não é, pois, documento. Estilo e humor de Lydia têm a ver com a atividade de deixar a inteligência descascar a linguagem, tal como na prosa e nas peças de Samuel Beckett, seu ídolo. “Samuel Johnson está indignado:” é uma estória que não perfaz um conto; é uma frase/pensamento do biógrafo sobre a indignação do biografado, descascada como laranja pela leitura. Um nutriente puro é dado ao leitor. A inteligência governa a criação, afirma Lydia, mas na origem da escrita, se se quiser chegar a uma boa estória, tem de haver um sentimento forte. Este − esclarece ela − pode ser uma curtição (delight) com a linguagem. O aspecto exterior da experiência vivida também não é documento. Não é o mundo que é real, é a vida. Na condição de tradutora, Lydia habituou-se a trabalhar com livros alheios e em língua estrangeira. O fato de viver dia sim, dia não com outra língua, outra gramática e outra sensibilidade literária, somado à tarefa de ter de redigir na língua materna dentro das constrições determinadas pelas escolhas estilísticas de um Marcel Proust, por exemplo, tornaram-na hiperconsciente do que pode ser feito de original em prosa inglesa. Numa estória, Lydia pode combinar um trecho de tradução livre com as suas digressões, ou as próprias digressões com dois ou mais textos alheios. A trama da estória nasce e respira entre as linhas da tradução de textos alheios e das digressões pessoais. O todo nunca é o factual. Aprende-se mais lendo a correspondência de um escritor que sua biografia. Das cartas escritas por Flaubert à amante, Louise Colet, ela retirou dez passagens curtas e autossuficientes. Traduziu-as livremente (ao contrário do que tinha feito com Madame Bovary) e enquadrou cada uma. Deu-lhes outra forma estilística, emprestando vida e atualidade à velha estória de outro. Na última coleção de estórias, Variações de perturbação (2007), Lydia passou a trabalhar mais com a própria invenção. As estórias são longas ou continuam curtas. “Depressão primaveril” tem duas linhas: “É uma sorte que as folhas cresçam tão depressa. Em breve, estarão escondendo minha vizinha e o bebê chorão do filho dela.” “Diário de Cape Cod” é composto de dois diários de viagem que se tornam cúmplices no desejo de escrever um ensaio. Durante as férias, a narradora retoma os passos e as anotações de um viajante estrangeiro de passagem por Cape Cod para escrever um ensaio, que se transforma noutro diário. A solidão e a hostilidade do ambiente marítimo de ontem produzem hoje tempestades novas, fatos estranhos e encontros inesperados. Alertaram os cinco sentidos do viajante e alertam os da sua leitora e ensaísta. Os diários são pulsantes e vivem em ritmo de prontidão.
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Contos completos. Lisboa: Relógio d’Água, 2012. Os livros da autora não foram publicados no Brasil.
Para que escrever literatura?
o dia em que morre, 7 de outubro de 1849, Edgar Allan Poe renasce como único responsável pelo bom funcionamento do farol de Viña del Mar, na costa chilena. Sob a forma de diário íntimo, o defunto autor (é inevitável a referência a Machado de Assis) começa a anotar o seu dia a dia de faroleiro. Lembranças da inesquecível Virginia, a esposa que foi cedo desta vida, se misturam com o doce companheirismo proporcionado pelo cão Mercúrio. Ao percorrer o diário, o leitor descobre que o contista americano revive personagens de sua própria obra. Está tomado pelo meticuloso desespero de viver e de registrar pensamentos, leituras e reflexões na total solidão dos dias e das noites no farol. Edgar Allan Poe é escritor notável porque ainda em vida quis ser um defunto lido pelos pósteros. Assim começa a primeira das cinco histórias que a romancista, contista e crítica Joyce Carol Oates, forte candidata ao Prêmio Nobel, inventa e reúne em Wild nights (Noites selvagens, 2008). Edgar Allan Poe, Emily Dickinson, Mark Twain, Henry James e Hemingway – cada um dos cinco foi retratado de forma alegórica: como aparece, ou reaparece, ao desaparecer desse mundo pela morte. Carol Oates reaviva a agonia e a sobrevida de cada escritor com a letra morta dos seus respectivos livros, numa linguagem fantasmagórica, crítica e atual que beira a genialidade. A escrita biográfica é pastiche da legítima escrita do biografado e, com engenho e arte, a escritora esbanja cinco estilos e cinco tramas diferentes em cinco estórias. Leiamos duas delas. O velório em Baltimore não deu por finda a vida de Edgar Allan Poe. Sob a forma de holograma, os dias póstumos no farol estavam programados pelos seus escritos. O raio laser de Carol Oates incidiu sobre os personagens e a linguagem dos contos e poemas dele, a fim de propor ao leitor a imagem virtual do artista como a real, ou a verdadeira. Banal, a morte em carne e osso perde o brilho diante da complexa e fulgurante imagem captada por Carol Oates. Paradoxalmente, a agonia vivencial do escritor está holograficamente descrita na obra. Sendo holograma de personagens seus, o Poe defunto encontra no farol de Viña Del Mar o pouso final para as noites e os dias alucinados, avivados pela escrita e entorpecidos pelo álcool. O pronome inglês I (eu) tem a pronúncia do substantivo eye (olho) e poderia ter a pronúncia − acrescentaria o leitor brasileiro − da interjeição ai! Subjetividade, olhar e dor se fundem no conto. A subir e a descer os degraus da torre, Poe “fica encantado” no farol. À noite, orienta naves e marinheiros extraviados com a lucidez transparente e incisiva da luz. Durante o dia, seduz os leitores com a escrita fria e calculada, joão-cabralina, que dá continuidade ao pensamento de Descartes, Pascal e Rousseau. Com o correr dos meses, as sentenças do diário perdem a sintaxe e a lógica implacável. Em lascas de frases, anotadas à beira do delírio e povoadas de grotescos e poderosos animais marinhos, adentram-se pelo nonsense sob a forma de arabescos. Ao final da história de Carol Oates, amores frustrados,
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solidão, álcool excessivo e criação desarrazoada em Baltimore têm cenário adequado nos confins do Chile e à beira-mar. Holográfica, a escrita estilhaçada e poética do Poe póstumo está mais próxima de Stephanne Mallarmé que do retrato conhecido dos leitores. É tragicômica a vida póstuma da poeta lírica Emily Dickinson. Ela renasce numa casa pequeno-burguesa do estado de Nova York, onde marido e mulher, depois de nove (ou dezenove?) anos de casados, se distanciaram e buscam um brinquedo poético para acalentarlhes a vida sentimental desencontrada e insípida. A imagem holográfica de Poe é substituída por uma réplica de Emily Dickinson. Sua réplica, ou as de outros famosos, todos esculpidos em tamanho menor a fim de evitar que algum órgão real do corpo humano seja transplantado, pode ser comprada pela internet ou na loja. No mostruário, a réplica de luxo de Emily Dickinson convive com as de Babe Ruth, Teddy Roosevelt e Van Gogh. Por causa de direitos autorais, não está à venda a réplica de Sylvia Plath. Devido à pouca procura, Walt Whitman está em oferta; não é réplica para se ter em lar burguês. Há para todos os gostos. A escolha é do cliente. Estamos lendo o delicioso e bem-humorado conto “Edickinsonrepliluxe”. Quando lhe deu “a coceira dos sete anos de casado”, Tom Ewell teve melhor sorte que o casal Grim na compra duma réplica de Emily. Em noite solitária e cálida do verão novaiorquino, Marilyn Monroe despenca-lhe no colo. Lembram, não? Já os Grim têm de se acostumar a uma espécie de manequim, alimentado, explica o narrador, por programa de computador que extraiu o sumo do indivíduo esculpido. Ao apertar o botão “ativar”, Emily Dickinson reganha a vida como geringonça. É ela! Mal sabiam os Grim que, com o correr dos dias, a réplica lhes iria explicitando, através de silêncios sedutores e de enigmas poéticos luxuriosos, a identidade enganosa e mistificadora que encobria a vida em comum. Na réplica, a senhora Grim encontra a companheira que tinha perdido na adolescência, quando escrevia poesia. Os múltiplos afazeres diários de Emily não tolhem o fazer poético e levam a esposa a retomar a inspiração literária. Distancia-se do marido. Este, por sua vez, depois de experimentar ódio pela agregada e de fazer valer o título de propriedade que tem da figura que empesta seu lar, passa a manifestar o desejo de possuí-la, literal e alucinadamente. A tentativa é fracassada, pois ele encontra algo de postiço no local do desejo. Em desespero, despedaça a réplica. Diante do quadro macabro, a esposa atende ao pedido final de Emily: “Liberte-me.” A esposa a liberta do jugo doméstico e, em companhia dela, encontra a liberdade que busca.
Proust por outro viés
eclosão da Primeira Grande Guerra interrompe a publicação dos três volumes previstos originalmente para Em busca do tempo perdido, obra-prima de Marcel Proust (1871-1922). Em 1913, a Editora Grasset entrega ao público apenas o primeiro dos três, Du côté de chez Swann. Nele se anunciam dois outros, À l’ombre des jeunes filles en fleur e Le temps retrouvé. Seriam, no total, 1.500 páginas. Ao final da guerra, a Editora NRF retoma a publicação do romance. Proust tinha inserido episódios e mais episódios no já avultado projeto. Modifica e corrige generalizações prévias e desatentas, consolidadas no desenvolvimento prematuro do romance. Sucessivos e atropelados manuscritos comandam as novas edições. Em 1919, é entregue ao público um dos títulos anunciados, À l’ombre des jeunes filles en fleur. Seguem-se os novos Côté de Guermantes (1920/21), Sodome et Gomorrhe (1921/22) e os póstumos, La prisionière (1923), La fugitive (1925) e Le temps retrouvé (1927). Dobrou-se o número de páginas previsto. E m Comment Marcel Proust a composé son roman (1934), Albert Feuillerat torna-se o primeiro crítico a analisar o “inchaço” do romance pelo lado de dentro. De posse dos manuscritos que perfazem a obra impressa, Feuillerat disseca com habilidade as várias fases da gênese da obra – antes e depois da guerra e durante − e o anárquico processo por que passam invenção e redação. Apesar das discordâncias suscitadas, o “pioneiro e competente” estudo continua modelo para a crítica genética (Alison Winton, Proust’s additions, 2008). Desde 1962, os manuscritos de Proust estão depositados na Biblioteca Nacional em Paris. Pierre Clarac e André Ferré estabeleceram e anotaram o texto do romance para a Bibliothèque de la Pléiade (1973/7). Jean-Yves Tadié se responsabilizou pela segunda edição Pléiade. A primeira tradução para o português do romance segue a edição primitiva em 13 volumes e foi publicada, ainda nos anos 1950, pela Editora Globo. Contou com bons tradutores. Sobressaem Carlos Drummond e Manuel Bandeira. Sorte nossa. Ao incorporar a leitura do manuscrito à análise da obra impressa, Feuillerat abriu as portas da crítica genética. Ele divide em duas partes o todo de Em busca do tempo perdido, e atribui narradores diferentes para as partes. Teoricamente bifurcadas, as partes servem-lhe para salientar a discrepância de tom no texto global (romance e narrador passam do estilo poético ao psicológico). E servem também para deixar transparecer na avaliação estética do conjunto certa homofobia prevalente na burguesia parisiense de então. O romance A prisioneira (intitulado inicialmente Albertine disparue) é associado a Os moedeiros falsos, de André Gide, e são ambos julgados manuais (sic) de perversão sexual. Feuillerat abona a alcunha de Proust dada por Paul Claudel, “judeu sodomita”, e demonstra que o autor de Em busca do tempo perdido tinha deixado o porto seguro do relato sobre a educação sentimental de Marcel (bildungsroman) para, minado pela tragédia da guerra, levar o romance a navegar de
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forma errática pelas águas clandestinas das preferências sexuais dos demais personagens, dadas como sórdidas. Dois romances, dois narradores. A metáfora “tumor maligno” torna-se recorrente na crítica proustiana dos anos 1940 e recobre o inchaço da obra. Tomado por excrescências doentias, que contaminam forma e integridade narrativa, o corpo antigo e sadio resulta desfigurado. Coincidentemente, as partes excessivas são as que os primeiros críticos de Proust julgaram mórbidas, escabrosas e perversas. Levada a cabo pelo frescor da alma quase infantil do narrador, a escrita poética de sonho acordado é corrompida pelo tom seco e analítico das digressões barrocas de Sodoma e Gomorra, decorrentes da descrença e do amargor provocados pela guerra. Os descaminhos da escrita ficcional traduzem o desvio sexual do escritor. Feuillerat conclui que Proust tinha sido tomado por “bulimia intelectual”. A voracidade tiraniza sua mente insaciável e leva o barão de Charlus, sodomita, e Albertine, lésbica, a usurparem a “história de uma vocação”. Nesta, “ordem, proporção e harmonia” tinham imperado. Nos fins dos anos 1940, a “teoria da transposição dos sexos” foi sintetizada por Justin O’Brien em artigo seminal, “Albertine the ambiguous” ( PMLA, 1949, 64). Gilberte, Andrée e Albertine são formas femininas de nomes masculinos. Em 1924, um obscuro jornalista suíço quis desmascarar a falta de verossimilhança de Albertine, causada pelos excessos, e dera o pontapé inicial: “Ao se perceber que Albertine é um rapaz, um amigo jovem, pobre e pouco escrupuloso, essa anomalia se explica maravilhosamente.” Por capricho o autor mudara o sexo do personagem. No romance Mon corps et moi (1925), o escritor surrealista René Crevel lança o bordão: “Proust fez do Alberto uma Albertine.” Justin O’Brien não sucumbe à explicação maliciosa e mecânica. Como alertaram críticos do porte de Arnaud Dandieu e Emeric Fiser, a transposição dos sexos trazia à cena outra metáfora, agora simbólica, revelada pelo próprio narrador, Marcel, ao apreciar as aquarelas do pintor Elstir. O personagem masculino pode se apresentar como feminino por uma operação de “correspondances” (tomando o conceito no sentido que lhe empresta Charles Baudelaire em conhecido soneto). Ou seja, por efeito de sobreimpressão de retratos, como acontece na montagem do filme O tempo redescoberto (1999), de Raoul Ruiz. Para Saint-Loup, o rosto de Charles Morel é metáfora da face de Rachel. Os gêneros se superpõem na obra de arte. Justin O’Brien lembra a passagem em que o narrador aprecia uma marinha de Elstir: “Uma das metáforas mais frequentes nas marinhas que [Elstir] tinha ao seu lado era exatamente aquela em que, ao comparar a terra ao mar, suprimia entre eles toda demarcação.” (Continua.)
Atualidade de Proust
m texto anterior mostramos o modo como inesperado viés na leitura de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, veio a constituir uma apreciação alternativa da obra-prima da literatura francesa. Centrada na discussão sobre tempo e memória, a leitura canônica do romance foi sendo relegada ao segundo plano pela leitura alternativa, segundo plano que coubera a ela no passado. Ao destacar os manuscritos do romance, cuja redação foi atropelada pelas atrocidades da Primeira Grande Guerra, responsáveis por sua vez pelo inchaço descrito pela metáfora do “tumor maligno”, a leitura atual de Proust os prioriza para livrá-los da pecha de lastimáveis e sórdidos. Lembremos a máxima antiga: “Nada do que é humano me é estranho.” Bafejado pelas recentes pesquisas na área da literatura gay ou queer, o antigo leitor de Em busca do tempo perdido foi convidado a avaliar − com interesse crítico semelhante ao dispensado ao primeiro volume da obra, publicado antes da Primeira Grande Guerra − a perspectiva aberta. O filme O tempo redescoberto, de Raoul Ruiz, exibe a imagem da leitura alternativa. A tela se abre para o espectador por tomada panorâmica em que, sobre a mesa, repousam manuscritos compostos à maneira de ininteligível colcha de retalhos. Acamado e à beira da morte, Proust dita à fiel Celeste algumas linhas, que logo serão corrigidas por ele. Como o crítico Feuillerat na década de 1930, Ruiz filma o romance pelo lado de dentro. Ao contrário de Feuillerat, concede primazia aos personagens que vivem o erotismo à flor da pele, como o barão de Charlus (John Malkovich) e Albertine (Chiara Mastroianni). Dentro dos estudos de gênero (gender, em inglês) que abordam a temática lésbica, há acentuado interesse pela literatura escrita por, entre outras, Gertrude Stein e Virginia Woolf. O volume Sodoma e Gomorra, de Proust, era uma pedra no meio do caminho. Em crítica literária, a visibilidade lésbica negligenciara um aspecto importante da história das relações entre mulheres: a representação do homoerotismo feminino nos textos de autores masculinos. Para sanar a “negligência” na bibliografia crítica, a professora Elisabeth Ladenson (Columbia University) escreve Proust’s lesbianism, ensaio que passou batido entre nós. No entanto, sua tradução para o francês traz prefácio de Antoine Compagnon, aclamado especialista em Proust e emérito professor no Collège de France. Previne Compagnon: o ensaio não deixará de perturbar (troubler) os proustianos franceses. Em seguida, afiança que também os convencerá da acuidade e da qualidade crítica da leitura de Ladenson. As cidades emblemáticas de Sodoma e Gomorra são objeto da curiosidade de Marcel, narrador de Em busca do tempo perdido. A dissimetria entre elas – e não sua simetria bíblica – parte dum ponto comum: o voyeurismo do narrador. Ao mesmo tempo que ele representa a homossexualidade masculina (Sodoma) como se em “salão transparente” (a expressão descreve o bordel de Maineville, frequentado por Charlus e Morel) e a dá como “segredo
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conhecido de todos”, ergue barreira concreta (a cortina que baixa) e textual que cerceia a representação da homossexualidade feminina (Gomorra). A senhorita Vinteuil e sua amiga acreditam que “serem vistas acrescenta perversidade ao prazer” e, por isso, interditam o voyeurismo do narrador. Amam-se em segredo. Marcel sofre pela proibição, que lhe causa angústia. Não pode ver o casal amar, não pode descrever “a palpitação específica do prazer feminino”, entrevista por ele apenas na “dança de seios contra seios” de Albertine e Andrée. Segundo Ladenson, a dissimetria entre Sodoma e Gomorra se afiança pelo segredo a ocultar − ou não − o prazer sexual entre semelhantes. No texto de Proust, a cidade das mulheres “é a versão única de uma sexualidade capaz de guardar o controle de sua própria representação”. Ao interditar o olhar de Marcel, a lésbica escapa ao modelo fálico. No entanto, o falocentrismo domina a cidade dos homens, cujo vocabulário não toca o lesbianismo proustiano. Domina ainda a inversão: busca-se um homem-homem, depara-se com um homem-mulher. Domina também as representações pornográficas (v. os filmes do canal GNT à meia-noite) do lesbianismo. Nestas, o prazer entre mulheres se representa para a lascívia masculina. A modelagem das cenas é direcionada pelo desejo fálico. No romance Em busca do tempo perdido, o lesbianismo é, segundo Ladenson, pedra de toque a avaliar a verdade do desejo do semelhante pelo semelhante. Não há inversões, não há modelagens fálicas e, assim sendo, a cidade das mulheres é “modelo único do desejo recíproco”. Pela narrativa não falocêntrica de Gomorra, vaga “o impossível fantasma do desejo recíproco”. Esclarece a ensaísta: “Começaremos a compreender o lugar da feminilidade e, portanto, da sexualidade em geral, se considerarmos os personagens lésbicos como estão descritos na obra de Proust.” Por outro lado, acrescenta ela, o modo como o lesbianismo é representado nos textos dos demais autores masculinos só serve para nos dizer como se constroem, na cultura atual do Ocidente, os “estereótipos” de masculinidade e feminilidade. A mulher não é, pois, definida por uma “falta” (lack), como acreditava Freud. É antes dotada de “plenitude autossuficiente”. Na economia sexual de Em busca do tempo perdido, o sodomita, por ter sido representado em transparência e pela figura da inversão, acaba por afundar-se e se reconhecer na dramatização heterossexual do desejo e do amor. Por estar fora do ponto de visão de Marcel (narrador do romance, insista-se), o lesbianismo representa, na qualidade de “ponto cego epistemológico”, a verdade da homossexualidade. O romance Em busca do tempo perdido modela-se por uma “sensibilidade erótica fundada numa estética da mesmice [sameness], cujo modelo único é o do desejo recíproco”.
Mathieu Lindon
influente romancista Mathieu Lindon lança sua autobiografia, Ce qu’aimer veut dire (POL, 2011). Mathieu é o filho caçula de Jérôme Lindon, fundador das Éditions de Minuit, que publica Samuel Beckett, Alain Robbe-Grillet e outros notáveis autores de vanguarda. Ao trabalhar as reminiscências do pai biológico, Jérôme, e do pai intelectual, Michel Foucault, Mathieu insere o relato na tradição dos “romancistas moralistas”, clássicos modernos franceses publicados pela família Gaston Gallimard, concorrente da Minuit. Parente próximo de Mathieu é o cruel Raymond Radiguet, amigo de Jean Cocteau. Na vida e em literatura, Jérôme e Mathieu trilham caminhos paralelos, daí a necessidade de o adolescente buscar o filósofo Michel Foucault para ocupar o lugar real e amoroso da paternidade. Na escrita literária de Mathieu, os petardos da fala alternativa parisiense são atirados contra a austeridade e a litotes da análise psicológica francesa e evidenciam a insubordinação da juventude burguesa, prevalente nos anos 1970. As filigranas dos sentimentos abstratos, como o amor e o ódio filial, o desejo e o gozo carnal, o esquecimento e a lembrança, a rebeldia e a devoção, são expostas em frases como fios elétricos desencapados, ou seja, em frases tão lembráveis quanto máximas. “Ainda hoje, estou mais preparado para o impudor que para a indiscrição”, lemos e retemos. Na leitura da narrativa francesa típica, a graça está no clarão que ilumina a discordância entre o afirmado e o descrito. O bom leitor abre a brecha da contradição interna que rejuvenesce o texto e robustece a riqueza enigmática do relato, haja vista nosso Machado de Assis. Diante de narrador a se vestir com as flores convenientes da retórica, o leitor as despetala para encarar o personagem recoberto pelos espinhos dos propósitos camuflados. Ao refletir sobre o impudor, assumido pelo narrador já avançado nos anos de vida, o leitor realça a roda-viva das várias celebridades que cercaram e encantaram o futuro romancista e crítico. O forte do autobiográfico Ce qu’aimer veut dire não é tanto o despudor, mas a indiscrição. Quem o afirma é o crítico Jérôme Garcin, da revista Le Nouvel Observateur. Garcin é agudo e penetrante: “Seria preciso ler a longa narrativa de Mathieu como se assinada por desconhecido e povoada de personagens anônimos.” E acrescenta: “Ao risco de cair na listagem das celebridades, seria necessário poder resistir à tentação da indiscrição.” O necessário se impõe. Se a intenção da autobiografia foi a de se submergir na nostalgia despudorada, tal não acontece exatamente. Reconhece-se na topografia do relato um “cemitério onde repousam os principais personagens do livro”. E Garcin passa a enumerar os famosos já falecidos: Michel Foucault, Jérôme Lindon, Hervé Guibert, Samuel Beckett (aliás, Sam), Gilles Deleuze, Roland Barthes, Alain Robbe-Grillet e William Burroughs. Narrador desconhecido e personagens anônimos? Temos o corajoso, pungente e perturbador
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depoimento de sobrevivente dos anos 1970. Nesse sentido, a autobiografia precoce de Mathieu (n. 1955) dá continuidade a esses romances geracionais franceses, antes escritos à clef, cujo primeiro e intrigante exemplo moderno é Les Mandarins (1954), de Simone de Beauvoir, companheira de Jean-Paul Sartre. Não menos fascinante é o romance da psicanalista Julia Kristeva, Les Samouraïs (1990). No site de Philippe Sollers, marido de Kristeva, o leitor abelhudo encontrará quem é quem no livro. Mathieu não se insere na tradição pelo gosto da metáfora autodepreciativa (intelectuais mandarins em tempos de pós-guerra, intelectuais samurais nos tempos chineses pós-1968), mas pela análise do sentimento intraduzível em vulgar – o amor. A indiscrição do narrador não é maledicente, mas já o despudorado personagem recebe, como em filme de Jean Vigo, zero em comportamento. Voulezvous coucher avec moi (ce soir)? – seria o bem-humorado título para a autobiografia, agora tomado de empréstimo ao libertário John Lennon dos anos 1970. Lido com discrição, Ce qu’aimer veut dire lembra o filme Gruppo di famiglia in un interno (Violência e paixão, 1974), de Luchino Visconti. O velho professor e perito em arte, interpretado por Burt Lancaster, quer e não quer se liberar da solidão ao vê-la ameaçada pelos avanços de um jovem guerrilheiro, drogado e sedutor, vivido por Helmut Berger. Se lido com indiscrição, o personagem de Burt é o inapreensível Michel Foucault que, durante as viagens a trabalho no estrangeiro, libera seu “interno” aos mais talentosos e alucinados rebentos da novíssima geração. A ação da autobiografia se passa no apartamento da rua de Vaugirard, que vira parque de diversões para um inusitado “gruppo di famiglia”. Oculta-se a versátil Paris. Escancara-se a repetição do gozo instrumentalizado pelo desejo homossexual flutuante e enclausurado entre quatro paredes. O sexo casual campeia entre amigos e estranhos e se soma à vida anárquica e sonâmbula das drogas e das bad trips de LSD e de heroína. No relato autobiográfico, pesam mais as relações íntimas entre os ambiciosos artistas da cena jovem parisiense e menos as relações entre estes e os adultos já profissionais, que os acolhem. Exceção para as figuras paralelas de Jérôme Lindon e de Michel Foucault. O filho caçula oscila. Fica entre o arbítrio do pai biológico que, por exemplo, só publicará o romance de estreia de Mathieu se ele aceitar ter o nome substituído por pseudônimo (Pierre-Sébastien Hedaux), e a generosidade do pai mentor que, com a graça e a astúcia de arlequim fugidio, acoberta os interditos comportamentais do adolescente. O reencontro amoroso de Jérôme e Mathieu se dá tardiamente, em 1984, no enterro de Michel Foucault: “Meu pai comparece e, sem dizer uma só palavra, me abraça, creio que é a única vez em que toma tal atitude.”
A sociedade secreta dos biógrafos
ntendamos a constatação de Jorge Luis Borges, autor de História universal da infâmia: “Em todas as partes do mundo há devotos de Marcel Schwob que constituem pequenas sociedades secretas.” Essas sociedades secretas têm lugar e data de fundação, Paris, 1896. Naquele ano, o escritor Schwob enfeixa 22 minibiografias no volume Vidas imaginárias (Hedra, 2011) e rouba do historiador a função exclusiva de biógrafo. Rouba-lhe o fardo da biografia para que o artista o carregue às costas, não discriminando os grandes homens dos medíocres e até dos criminosos. Vidas imaginárias reúne minibiografias de filósofos e políticos do mundo antigo (destaque para “Crates cínico” e “Eróstrato incendiário”), de artistas do Quattrocento italiano (destaque para “Paolo Uccello pintor”) e de piratas e bandidos modernos. No prefácio ao volume, Schwob estabelece a premissa: no desenho do caráter, a ciência histórica transformou o detalhe biográfico incomum em muleta do fato social e da ideia. A embriaguez de Alexandre, o Grande, serve para justificar o assassinato do amigo Klitos. O respeito pelo relógio explica o rigor da filosofia de Kant. Por que o historiador camufla a fístula anal de Luís XIV nas decisões estabanadas do monarca? No entanto, continua Schwob, é o detalhe esdrúxulo em si que esclarece o indivíduo. Os grandes gestos e as ideias geniais são patrimônio comum da humanidade, mas cada indivíduo, biograficamente falando, só possui de fato a própria singularidade. Ela monta e narra a biografia escrita pelo artista. A ciência histórica deixava o leitor na incerteza acerca do indivíduo enquanto tal. Continua Schwob: o artista trabalha com o avesso das ideias universais, descreve apenas o particular. Deseja o único. Não classifica. Desclassifica. Schwob pede que se examine uma folha de árvore com suas nervuras caprichosas e seus matizes fixados pela sombra e pelo sol, com o edema causado pela queda duma gota d’água ou com o rastro prateado desenhado pelo caracol… E lança o desafio: procure-se uma folha igual em todas as florestas da terra. Tarefa vã. A biografia registra a esquisitice, o inconfundível: o nariz torto deste homem não tem igual no mundo, também o olho mais alto que o outro desse, ou o hábito daquele de comer a tal hora carne branca de frango… Schwob proclama: “O livro que descrever um homem em todas as suas bizarrices será uma obra de arte, qual estampa japonesa em que se vê eternamente a imagem de uma pequena lagarta entrevista certa vez em determinada hora do dia.” A alusão à estampa japonesa não é gratuita. No citado prefácio, Schwob glorifica o trabalho do pintor, desenhista e gravador Hokusai (1760-1849), famoso pela série 36 vistas do monte Fuji. Hokusai esperava chegar aos 110 anos, quando então “todo ponto, toda linha traçada pelo seu pincel seriam vivos. Por vivos, entenda-se individualizados”. Schwob infere que o ideal do artista/biógrafo “seria o de diferençar ao infinito o aspecto de dois filósofos que
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inventaram praticamente a mesma metafísica”. Ele “cria em meio a um caos humano”. Dali parte a eleição: “Diz Leibniz que, para fazer o mundo, Deus escolheu o melhor dentre os possíveis. O novo biógrafo, qual divindade inferior, saberá escolher aquele que é único dentre os possíveis humanos.” Conclui: infelizmente o antigo biógrafo queria ser historiador e nos privou de retratos admiráveis. Presumiu que só interessaria ao leitor um universo humano superior, povoado pelos grandes homens. Assinala: “Aos olhos do pintor, têm igual valor o retrato de um homem desconhecido pintado por Cranach e o retrato de Erasmo de Roterdã.” Transpõe: têm igual valor a vida de um ator qualquer e a de Shakespeare. O prefácio a Vidas imaginárias é evangelho para os devotos. Dele diz Jules Renard: “Todos os artistas deveriam sabê-lo de cor.” A leitura de Vidas imaginárias proporciona a Albert Samain o prazer do haschich. Cada página bota fogo na imaginação e, em vapores violáceos e nuvens de ouro negro, faz aparecerem e desaparecerem mundos, povos e cidades. Afirma Jean-Marie Lassus que a América hispânica foi tão sensível a Schwob quanto a França de Charles Baudelaire a Edgar Allan Poe. Jorge Luis Borges e o chileno Roberto Bolaño dão as mãos. Borges confessou que devia a Schwob sua História universal da infâmia (1935), essa “irresponsável brincadeira de um tímido que não se animou a escrever contos e se distraiu em falsear e tergiversar histórias alheias”. Para escrevê-la, acrescentou, lia vidas de pessoas conhecidas a fim de deformá-las a seu capricho. Em 1996, ano do centenário de Vidas imaginárias, Bolaño lança o provocador La literatura nazi en América (inédito em português), série de minibiografias imaginárias de escritores americanos que bandearam para as ideias fascistas. No livro de Bolaño não se busquem as minibiografias do argentino Leopoldo Lugones, do boliviano Alcides Arguedas ou do mexicano José Vasconcelos, escritores que ao final da vida se associaram a ideais ultraconservadores. O livro não é panfletário. O nome de batismo não identifica a figura biografada. Ações e atitudes singulares do personagem é que levam o leitor a adivinhar o nome e a nacionalidade desse e daquele e a deslindar a complexa trama romanesca composta de minibiografias. José Miguel Oviedo assinala que o livro é movido “por uma intenção paródica, instrumentada por jogo erudito cheio de piscadelas irônicas e de gozações, às vezes encarniçadas, às vezes benevolentes. Como Borges, Bolaño mistura com frequência o fictício com o real a fim de criar a sensação de verossimilhança no disparatado”. Trinta anos atrás, ao publicar o romance Em liberdade, assinei ficha de inscrição na sociedade secreta a que Borges se refere.
Homens partidos ao meio
F – as iniciais de Ramon Fernandez (1894) estão inscritas no caixão que, em agosto de 1944, é velado na Igreja de Saint-Germain-des-Prés, em Paris. Colaboracionistas e intelectuais envergonhados, como François Mauriac, velam o defunto. As iniciais do brilhante crítico literário dos anos 1920 e 1930 são uma paródia de outras, as da República Francesa, que ele repudia publicamente a partir de 1937. Naquele ano torna-se membro ativo do PPF, partido fascista liderado pelo medíocre e corrupto Jacques Doriot. Colaboracionista, RF faz parte da comitiva de intelectuais franceses que viaja em outubro de 1941 a Weimar. Goebbels é o anfitrião. Ramon morre vinte dias antes da liberação de Paris. A embolia libera-o do pelotão de fuzilamento, que dá por findos os dias do jornalista Robert Brasilach, e do suicídio, que leva a vida do companheiro Drieu de la Rochelle. Assim se abre Ramon (2008, hoje em livro de bolso), biografia do pai escrita pelo filho, o acadêmico e romancista Dominique Fernandez. Aos 80 anos, Dominique tenta compreender o pai que se quebra em dois e vive duas vidas sucessivas e contraditórias. Primeira vida. A do ensaísta apresentado por Marcel Proust ao grupo responsável pela NRF, revista publicada pela Gallimard. Intelectual de esquerda e quase comunista em 1934, é autor de livros indispensáveis sobre André Gide (de que me vali com proveito quando escrevia tese de doutorado), Marcel Proust e Molière. Seus artigos são admirados e citados por escritores como T. S. Eliot e Wallace Stevens. Segunda vida. Ramon vira a casaca. De 1940 até a morte, passa a emprestar o prestígio do nome e das palavras à política da Colaboração. Ao lado de Georges Montandon, teórico do antissemitismo francês, discursa em estádio desportivo de Paris. Desde então, sua obra crítica mora no baú da inconveniência. Só agora está sendo recuperada. O capítulo da Ocupação é confuso, lembra Alice Kaplan, autora de The Trial and execution of Robert Brasilach (2000), e muito lixo foi varrido para debaixo do tapete. Sartre tem duas peças (Huis-clos e As moscas) encenadas com a permissão das autoridades alemãs. Na plateia, oficiais germânicos. Para ter O mito de Sísifo publicado, Albert Camus aceita a supressão do capítulo sobre Kafka. Antes de se casar com o resistente Dionys Mascolo, Marguerite Duras, née Donnadieu, mora no andar de baixo dos Fernandez e trabalha como secretária para o comitê de censura ao uso do papel, montado pelo governo de Vichy. Enquanto esconde o marido judeu, Colette lança dois livros identificados com a Colaboração. Dominique torna o capítulo da Ocupação menos confuso e, por refrear o sentimentalismo barato que corroeria as melhores páginas da biografia, mais duro e mais asfixiante. O narrador se exaure nas contradições paternas e se libera em julgamentos abruptos. Ao contrário de Alice Kaplan, professora na Universidade de Yale, Dominique opta por não fazer pesquisa em biblioteca e arquivo público. A Antoine Compagnon, professor do Collège de France, confessa que “o livro foi escrito sem esforço”. Valeu-se principalmente da memória e de documentos
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familiares, entre eles os diários (carnets) recobertos cotidianamente pela letra da mãe, jansenista de formação e amante da literatura. Dos vários cadernos, Dominique retirou a cronologia e parte da trama. Confessa ainda que, retrospectivamente, a figura ambivalente do pai está por detrás de muitos dos seus livros, em especial dos que versam sobre o músico Tchaikovsky, o pintor Caravaggio e o cineasta Pasolini. Sem se dar conta, ele tinha escrito um único livro: o fracasso ao final da vida joga o artista glorioso no despenhadeiro. No caso da biografia paterna, a mãe castradora e a esposa rica e generosa transformaram o filho e o marido no pai Ramon. Sem profissão definida, cheio de caprichos mundanos e alcoólatra, Ramon passa por um caráter débil, que não estava à altura das ideias que defendeu. Na revista Commentaire, Jean-Thomas Nordmann julga que o filho, por ter usado cores berrantes na pintura da esquizofrenia política do pai, tenha subestimado a importância do ensaísta literário. Viajemos até o presente. Em corajoso filme biográfico, outro filho, Carl Colby, resolve retirar da sombra o pai que foi Chief of Station em Saigon durante a guerra do Vietnã e, entre 1973 e 1976, diretor da CIA e responsável pela Operação Phoenix. À semelhança da atriz Nathalie Wood, Colby morreu em condições misteriosas no ano de 1996. Refiro-me a The man nobody knew: In search of my father, CIA spymaster William Colby (2011). O filme leva algumas vantagens sobre o livro de Dominique. O narrador aparece com a família paterna em fotos e filmecos caseiros, mas o forte são as apropriações das imagens e sequências sangrentas e apocalípticas difundidas pelo noticiário dos jornais e da televisão. Sobram-lhe os fatos que faltam à trama psicológica de Ramon. E m The man nobody knew o filho comparece sob a forma de voz em off, um tanto expositiva. Ele “escreve” o filme, contrastando as imagens familiares com as chocantes da espionagem e da guerra. As imagens gritam por ele. Católico fervoroso (duas filhas são batizadas na Basílica de São Pedro), o pai serve na Itália pós-fascista que se inclina ao comunismo. No Vietnã, o homem-família, acompanhado da esposa Bárbara, torna-se amigo íntimo do presidente Diem e dos seus. O Senado sabatina o militar pela condução da Operação Phoenix. Mea-culpa. O religioso incrimina o militar. Acrescente-se que, à semelhança de Um método perigoso, novo filme de David Cronenberg, The man nobody knew reafirma o peso da religião nas discussões ideológicas e intelectuais. Um colaboracionista católico? Um católico na CIA? A psicanálise nas mãos de Jung, ariano suíço?
Pecado original da tradução
traditore” – o adágio italiano é conhecido de todos. Menos divulgada é a “Traduttore metáfora “bela infiel”, cunhada no século XVII por Monsieur Ménage. Usou-a para desancar a infidelidade na tradução em francês dos diálogos satíricos de Luciano de Samósata, de responsabilidade de Nicolas Perrot d’Ablancourt (1654). Assim se justifica: “Apelidei a tradução de a ‘bela infiel’. É a alcunha que eu, na juventude, atribuía a uma das minhas amantes.” Caminhe-se pelo corredor que leva do jogo de palavras em italiano à metáfora francesa. Durante o percurso, perceba-se que a tarefa de verter o texto de uma língua a outra se despersonaliza. O tradutor é desculpabilizado de traição. Esta é da natureza do texto traduzido, como o é das belas e elegantes mulheres. A desgraça passou a recair sobre algo de intrínseco à tradução exemplar – sua beleza e a elegância do estilo. Não são os tradutores que traem o autor e mistificam o leitor. É o recurso ao registro nobre. Chama-se Eva o pecado original da tradução. Tidas como próprias do tradutor, beleza e elegância de estilo não são na verdade dele. Elas foram tomadas de empréstimo a quem de direito adquirido as abona, o autor. A sedução do leitor pelo belo e elegante estilo da tradução terá de ser punida pela crítica. Com a ajuda do Dicionário da Academia Francesa (1694), atente-se para o fato de que a “fidelidade” ao texto original não correspondia naqueles tempos ao conceito atual de “literalidade”. Associada à beleza e à elegância da mulher, a infidelidade ao original era então julgada como qualidade estilística usurpada pelo tradutor dos autores clássicos gregos e romanos, que nos ensinaram a exprimir em frases corretas, claras e puras. Tanto mais elegante a tradução (isto é, tanto mais correto, claro e puro o texto traduzido), tanto maior o potencial da infidelidade ao original, infidelidade que estará sendo delicada e sutilmente transmitida ao leitor. Atribuída por Monsieur Ménage à tradução de Luciano, o pecado de Eva se perpetua no século XX pela contradição expressa por George Bernard Shaw: “Mulheres são como traduções. As bonitas não são fiéis. E as fiéis não são bonitas.” A metáfora amorosa francesa é o fundamento do título − As ‘belas infiéis’ (Lisboa, Pedago, 2012) − de excelente antologia de textos sobre a tradução francesa no século XVII, com introdução, tradução e notas de João Domingues. A ela recorri. Dela continuo a falar. A antologia apresenta qualidades salientes. Por um lado, preenche uma lacuna. O minguado conhecimento das traduções e dos tradutores gauleses no século de Racine não possibilitava que o historiador da literatura francesa os promovesse frente à exuberante e notável produção do humanismo renascentista. Lacuna aberrante, porque se desconhecia o bom número de profissionais que na França clássica se apresentavam − nos prefácios, nas
introduções e nas advertências ao leitor − como teorizadores da tradução. Ao complementar o saber atual sobre o trabalho de verter livro de uma língua a outra, a antologia, por outro lado, repudia definitivamente o adágio italiano e põe em xeque a verdade da metáfora francesa. À semelhança de Manuel Bandeira ou dos irmãos Campos, os franceses do século XVII são “exímios críticos literários”. Na época de Boileau, “a própria arte de traduzir revela, de forma intrínseca e inextricável, uma profunda atividade de análise e de crítica literária”. Ao desconstruir a metáfora “bela infiel”, João Domingues realça o valor da crítica literária prévia à tradução que, paradoxalmente, se patenteia nas “infidelidades conscientes” ao original. Elas visam não a “deformá-lo, mas antes a eliminar defeitos, melhorar expressões, tornar mais claro o sentido, ou eliminar elementos com os quais se não concorda”. O já citado d’Ablancourt escreveu que só depois de o texto original ter sido bem assimilado é que se pode traduzi-lo; de tal modo assimilado, que o nome do autor a ser traduzido nada mais seria que parte do título de uma obra que já então seria de sua autoria. Para eles, traduzir não é só obra de erudição. É também “ato de patriotismo”, visto que “desde a época do Humanismo, afirmar e confirmar as qualidades da língua francesa foi sem dúvida um dos motores da classe dos tradutores”. À efígie da moeda nacionalista contrapõe-se o reverso cosmopolita. Dublê de romancista e de historiador literário, Charles Sorel ousa incluir livros traduzidos na sua famosa Bibliothèque française (1664). Explica-se: “Elegi obras que quanto à origem são espanholas. Elas podem encontrar espaço neste livro porque se transformaram em francesas pela tradução.” Outro tradutor da época, Régnier-Desmarais, afirma que os diversos graus de exatidão exigidos na tarefa são determinados pelo tipo de livro a traduzir. A maior exatidão é requerida na tradução dos textos sagrados, “uma vez que, sendo Palavra de Deus, contêm o mais alto grau de verdade que a linguagem humana pode albergar”. As constrições (contraintes) políticas e religiosas agiam de modo considerável sobre a prática da tradução no século XVII francês. Eram maquinadas tanto na Academia Francesa quanto entre os jansenistas de Port-Royaldes-Champs. Contraditoriamente, as constrições seriam sacudidas pela tradução de obras espanholas e inglesas, que aportavam novas ideias em Paris. Às obras sagradas seguem-se as relativas às ciências e à teologia. Domingues fecha a escala descendente: “Menos exatas podem ser as traduções de obras de eloquência e de poesia, bem como tudo o que pertence, em geral, à literatura de ficção.” No século XVIII francês, o remorso toma de assalto a “bela infiel”. Jean-François Resnel decide submeter ao inglês Alexander Pope, autor, sua tradução de An essay on criticism (Essai sur la critique, 1730). Tradutor, traidor.
Elogio da literatura
omamos partido. A favor de Mário de Andrade. Contra Carlos Drummond. Isso nos anos 1924, quando eles trocaram cartas definitivas. Mário queria que Drummond se abrasileirasse. Drummond rejeita o processo de abrasileiramento proposto. Julga-o artificial. Opta por ter Manuel Bandeira como escudo, repetindo-o: “É preciso incorporar-se ao movimento universal das ideias.” “Sou”, acrescenta o mineiro, “acidentalmente brasileiro” e “hereditariamente europeu”. Reconhece: “Não sou ainda suficientemente brasileiro.” Bem antes de Sérgio Buarque e à maneira do albatroz de Charles Baudelaire, Drummond será um “exilado” (a palavra se repete na carta) na pátria. Drummond queria ter experiência de vida no Brasil e no estrangeiro; queria ser semelhante a Bandeira, que saíra de Pernambuco para o sanatório em Clavadel, na Suíça, onde conhecera o jovem poeta Paul Eluard e aprendera línguas. Queria ter a experiência que Joaquim Nabuco tivera em incontáveis viagens ao norte do globo. Drummond os inveja, e, marcando passo na província das Gerais, viaja pelas asas do livro. Lê e treslê obras da literatura universal. Anos depois, trabalha a metáfora da bruxa solitária, que dá voltas e mais voltas em torno do globo de luz, para poder, em imitação dela, expressar o dolorido e único “sentimento” do mundo, que faltava aos dois mentores, apenas “experientes” do mundo. Desde a coleção Alguma poesia (1930), posterior à proposta andradina de abrasileiramento, o mundo – e nele o Brasil − se apresenta a Drummond como livresco, caso se tome a palavra no sentido positivo que lhe dá Jorge Luis Borges. O mundo é a materialização dele, que é oferecida ao leitor pelo arquivo universal das tragédias e comédias humanas valorizadas desde sempre pela literatura. Por não ser um globe-trotter, o planeta Terra de Drummond se enreda na leitura da grande literatura universal, como já está no poema “Biblioteca verde”, biblioteca que tinha sido exigida do pai quando ainda criança em Itabira. Atentem-se às palavras que se sucedem ao verbo ler e o metaforizam. “Mas leio, leio. Em filosofias / tropeço e caio, cavalgo de novo / meu verde livro, em cavalarias / me perco, medievo; em contos, poemas / me vejo viver.” E encerra: “Tudo o que sei é ela que me ensina.” Não é por acaso que, no poema “Infância”, Drummond aponta para a história narrada por Daniel Defoe em Robinson Crusoé (lido, repita-se, no interior de Minas Gerais). Aponta-a para privilegiá-la. A camaradagem entre Robinson e Sexta-Feira na ilha deserta contribui para o menino ganhar outros olhos em Itabira. Não só se distancia dos valores patriarcais e escravocratas da família fazendeira, sua herança real, como endossa carinhosamente a herança perceptível e imaginária que recebe dos vários serviçais na casa e na fazenda paterna. Tinham feito a viagem da África ao Brasil e, depois da Abolição, eram apenas e pobremente colonos, como a Siá Preta. Eram colonos africanos mais desclassificados que os outros colonos, os de origem europeia, que sofriam a desclassificação social apenas na falta de títulos de nobreza,
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como Antonil já anotara em Cultura e opulência do Brasil. Drummond escreve a Mário: “Confesso-lhe que não encontro no cérebro nenhum raciocínio em apoio à minha atitude. Só o coração me absolve. E isto não basta. Há sempre o caquinho de lógica procurando intrometer-se entre as nossas contradições.” Parece-me, hoje, que certos poemas de Alguma poesia foram escritos por esse caquinho de lógica, em resposta à carta em que Mário garante ao jovem que ele não tinha provado “peraltice, vida, vitalidade, fraqueza juvenil”. Leia-se, entre outros, o definitivo “Iniciação amorosa”, cuja ação se passa na rede estendida entre mangueiras, no local em que o menino lera a aventura de Robinson. O adolescente não aprendera ousadias com Anatole France. Saber e permissividade coexistem em Drummond e são pilares em nada antagônicos. Mário é um neorromântico, a empinar o papagaio de Macunaíma na Pauliceia. À semelhança de José de Alencar, prega um “nacionalismo universalista” que funda a linguagem-Brasil na taba dos tupis. É preciso analisar com coragem a metáfora musical de que se serve Mário para explicar a concorrência de raças que compõem o mundo. Afirma: “As raças são acordes musicais”, para em seguida sonhar: “Quando realizarmos o nosso acorde, então seremos usados na harmonia da civilização.” É preciso ter coragem e dizer que na metáfora de Mário a harmonia apresenta uma forma de eurocentrismo às avessas. A utopia musical também se centra em valor étnico único, o indígena, centramento que é desmentido pelo movimento da história social brasileira, que vinha entrelaçando, hibridizando as várias etnias que compõem a nossa realidade humana e o nosso imaginário ensaístico e poético. À centralidade na falsa tradição portuguesa Mário opõe, pelo avesso, a centralidade na verdadeira tradição indígena. Escreve: “Os tupis nas suas tabas eram mais civilizados que nós nas nossas casas de Belo Horizonte e São Paulo. Por uma simples razão: não há Civilização. Há civilizações.” Mário estava a favor da diversidade, correto. Mas de uma diversidade onde certos brasileiros eram mais brasileiros que outros. Neorromântico. Drummond pontua. O debate entre Mário e ele “gira menos sobre a necessidade de ser brasileiro que sobre os meios de vir a sê-lo”. O discípulo não se perturba com o poder de persuasão e o peso da inteligência do mestre; segue avante com a ironia corrosiva que mais tarde será peça-chave da sua genialidade. Afirma e pergunta: “Não sei se haverá bom ou mau nacionalismo principalmente em literatura. Como fazer com esta o que se já fez com a pesca: nacionalizá-la?” Literatura não tem mar territorial.
A utopia verde-amarela modernista
ão admiráveis estes quatro versos de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor, / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente.” O paradoxo desconfia da lógica da razão e diz que, ao mascarar a dor autenticamente sentida com o fingimento poético, a voz do poeta se cola à verdade. Esta não tem o percurso pavimentado pela espontaneidade do sujeito e, sim, pela sua predisposição salutar ao fingimento retórico, que escreve a boa poesia. Ao divergir do senso comum, o poeta distorce a emoção da dor sentida para guardá-la no coração e fingi-la com letras na página em branco. Ali a sente mais realisticamente, revela-a e a transmite ao leitor. Alquimia da arte. O escritor modernista brasileiro também tem o fingimento como alicerce da poesia. No entanto, de Fernando Pessoa se distancia por colocar como epicentro da escrita poética não a distorção da dor sentida, mas a desconfiança em relação ao nível de exigência formal requerido do adulto no uso da língua nacional e da linguagem poética. Em rebeldia contra o saber escolar que o constituiu como cidadão e contra a tradição literária eurocêntrica que o constituía como artista da palavra, o modernista finge observar o mundo com olhos de criança e finge imitá-la na redação. Contraditória e autenticamente, estaria escrevendo poesia de e para cidadão adulto brasileiro. Leia-se o livro Primeiro caderno do alumno de poesia Oswald de Andrade (1927), ou entenda-se a docência às avessas no poema “3 de maio”: “Aprendi com meu filho de dez anos / Que a poesia é a descoberta / Das coisas que nunca vi”. Ao distorcer o saber proporcionado pela formação educacional em vigor e ao rejeitar o ouvido poético afinado pela métrica e a rima, ao fingir-se de criança e escrever como ela, o poema modernista se cola ao autenticamente pensado e vivido. O fingimento evita que a escrita poética caia em outro e nefasto sistema de fingimento – o do artista comprometido com o artesanato de ourives e o da retórica, com a estética parnasiana. O caderno do aluno Oswald não se assemelha ao carnê em que o viajante europeu anotou observações e pensamentos à espera da versão apurada e definitiva. Tampouco é metáfora para versos que traduzem a experiência subjetiva da desigualdade negra sentida pelo martinicano Aimé Césaire em terras metropolitanas (Cahier d’un retour au pays natal, 1939). O caderno escolar de Oswald tem em comum com os dois exemplos o trato com o desconhecido, que se expressa pelo desejo de “ver com olhos livres” e de sentir a “alegria dos que não sabem e descobrem” (como está no Manifesto da poesia pau-brasil). Bem acabada, a linguagem poética do caderno de Oswald é, no entanto, mal torneada por ser fingidamente inocente e ingênua, decidida a desconcertar o leitor pela varinha de condão do humor e da surpresa. O poeta não está onde você acredita que ele deveria estar. O poema se arrisca quando acopla ao artista da palavra a voz crítica do intelectual. Unidos, escancaram em escrita o jogo político-social e econômico dominante na jovem nação. O povo
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brasileiro abre alas na poesia e pede passagem. Pelo seu tosco e autêntico modo de sentir e de pensar e pelo seu linguajar precário, é semelhante à criança. Um denominador comum sela o encontro – “a contribuição milionária de todos os erros”. O dado e tido como certo para o Brasil é errado. O dado e tido como errado é certo. O adulto poeta finge ser criança e o intelectual maduro finge ser povo. Ao apadrinhar (to patronise, em inglês) criança e povo, o poema se quer força de resgate da nova geração e da nova cidadania. Desenha utopias verdeamarelas. O paradoxo poético de Pessoa se expressa pelo erro correto, moeda que, desvalorizada pelo senso comum europeizado, financia a futura e boa cidadania brasileira. Leia-se “Pronominais”: “Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro.” No cenário poético da infância, Manuel Bandeira sobrepõe ao erro correto o sabor e o saber da experiência proporcionada ao cidadão brasileiro pelo linguajar do povo. Lê-se na “Evocação do Recife”: “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / Vinha da boca do povo na língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil.” Na mesma cena infantil do sabor/saber popular, Carlos Drummond afina pelo afeto a voz da empregada doméstica e, acertada e contraditoriamente, a situa em etnia e classe diferentes. Leiamos trecho do poema intitulado “Infância”: “No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu / A ninar nos longes da senzala – e nunca se esquece / Chamava para o café. / Café preto que nem a preta velha / Café gostoso / Café bom.” Em todos os poemas citados a (quase total) ausência de pontuação reitera a necessidade de a sintaxe modernista ser fonética. Em “Pontuação e poesia”, Drummond observa: “A pontuação regular, iluminando igualmente todos os ângulos da superfície poética, impede que se destaque algum de seus acidentes mais característicos.” Em outro texto da época, Drummond afirma que “o [indivíduo] preconceituoso procura o acessório, que não interessa e foi removido”. A alquimia poética do Modernismo é nitidamente pós-colonial, fingida e realisticamente utópica. Deveria ter sido relegada à década de 1920 em virtude das várias etapas de modernização política, social e econômica por que passou a nação brasileira depois dos anos 1930. A polêmica em torno do livro Por uma vida melhor, de Heloísa Ramos, demonstra que, no Brasil, a educação das massas ainda é uma utopia verde-amarela. Diz o mundo e lamenta o projeto do pré-sal.
Os três Quincas
ram dois os Quincas. Na época, ainda se estranhavam. A eles se juntou um terceiro Quincas, que irá aproximá-los definitivamente. Anos mais tarde, os dois primeiros Quincas se tornariam bons amigos e confrades. Um seria eleito presidente e o outro secretário-geral da Academia Brasileira de Letras. Atrasemos o relógio do tempo. Estamos no primeiro ano da década de 1880. O mais velho dos Quincas, o Machado, era carioca e, com a esposa Carolina, vivia confortavelmente instalado num casarão do Cosme Velho. Graças aos cinco romances publicados, granjeara posição de destaque na vida literária do Rio de Janeiro. Repercutia a publicação do inusitado e genial romance Memórias póstumas de Brás Cubas. O sangue paterno lhe dava motivo para se afirmar como franco lutador a favor da causa da abolição da escravidão negra. Optara por ser cidadão cumpridor, delicado e afável. De avoengo também herdara o petit mal, que ele contrabalançava com o amor à vida. O pestanejar dos olhos luxuriosos suspirava libido como um passarinho gorjeia na gaiola. Dez anos mais moço, Quincas Nabuco dera os primeiros passos na vida política ainda em Pernambuco. Depois de viagem pela Europa, se transferira para o Rio de Janeiro, onde seria eleito deputado geral pela província de origem. A seu favor estava a defesa em 1869 de um escravo que assassinara o senhor. Defendia com destemor a causa abolicionista e, de quebra, os indígenas do Xingu. Era também contra a mongolização do Brasil, expressão que cunhou para combater os que queriam importar mão de obra barata do Oriente. Mais esplendorosa seria a imagem pública de Joaquim Nabuco se ela recobrisse a personalidade fugidia de Joaquim Maria Machado de Assis. Algo, no entanto, os confundia num só. Eram ambos mulherengos. Recatados e ambíguos, disfarçam o olhar pecaminoso com que festejam a beleza feminina que vem e que passa pelas ruas do centro e se exibe nos festivos salões da Corte. Caíra doente Mariana Teixeira Leite Cintra da Silva, née Leite e Sousa, segunda esposa do terceiro Quincas, o Arsênio. Doença gravíssima, praticamente fatal. Seu marido era comendador e cônsul-geral da Bolívia, do Paraguai e da Venezuela junto à Corte. O correcorre caseiro ecoava pelas ruas e salões aristocráticos. Bela e cativante, gentilíssima senhora, Marianinha sucedera a Laura Rodrigues no solar de Joaquim Arsênio Cintra da Silva e antecederia a Guilhermina Reis, a terceira esposa do senhor cônsul-geral. Os dois Quincas não eram íntimos do casal Arsênio nem médicos de profissão. Ao ouvirem, no entanto, as notícias desoladoras sobre o estado de saúde da angelical e doce Marianinha, não conseguiam esconder dos respectivos amigos a fisionomia preocupada, plena de tristeza e de compaixão. Apesar de morarem na mesma cidade, os dois Quincas trocaram as primeiras cartas.
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O terceiro Quincas da história, o Arsênio, conhecia de vista e de chapéu o Quincas Machado, mas não era próximo do Nabuco. A má fortuna somou a beleza digna e estonteante da moça Marianinha à doença prematura e corrosiva e aproximava os três Quincas. O encanto e a enfermidade da encantadora senhora os foram aproximando até o dia em que a morte triunfou sobre a vida no cemitério de São João Batista. Na ocasião funesta, Quincas Machado escrevera ao Quincas Nabuco: “O que V. não sabe, mas pode imaginar, é o estado a que ficou reduzida aquela moça tão bonita. Nunca supus que a veria morrer.” Antes do dia fatídico, Quincas Nabuco não tinha contido o apreço pelo encanto da distinta e formosa senhora. Sob o pseudônimo de Freischutz, predissera o infausto acontecimento e manifestara sua desolação em comovido folhetim, publicado no Jornal do Commercio. Distante do leito de Marianinha, o Franco-atirador juntava às orações e às preces da família os próprios e ardentes votos de pesar. No dia 21 de agosto de 1881, os leitores da coluna “À margem da corrente” foram despertados pelas palavras que traduziam a dor e a esperança do belo Quincas: “Se a vida triunfar da morte e recompuser na sua perfeição os traços que representam para nós a fisionomia a que me refiro, saiba ela que muitos que apenas a conheceram fazem os mais ardentes votos e os misturamos às orações e às preces de sua família para que lhe seja poupada essa tristeza […] – a tristeza de ver morrer o que é belo na mocidade, na plenitude da vida, arrebatada como os anjos da Bíblia nas vestes deslumbrantes que mal tocaram a terra.” Quincas Arsênio não tinha o Quincas Nabuco entre os próximos, por isso pediu um favor muito especial ao Machado. Queria inscrever na pedra da sepultura da Marianinha algumas das delicadas e pungentes palavras do folhetim publicado no Jornal do Commercio. Será que o Quincas Machado poderia intermediar esse desejo? Esta crônica seria pouco machadiana se, em 1896, ao morrer Guilhermina Reis, Quincas Arsênio, nosso eterno viúvo consolável, não solicitasse um novo favor ao Quincas Machado. Queria que a pedra na sepultura de Guilhermina também acolhesse as palavras que Freischutz tinha escrito quinze anos atrás para celebrar a deslumbrante beleza da moça Marianinha, ceifada precocemente pela morte. Não poderia ele intermediar o novo pedido junto ao Quincas Nabuco? Ao serem inscritas no jazigo, as palavras de 1881 embelezaram em 1896 a terceira esposa defunta. Dessa prosa teria emergido um quarto Quincas, o Borba, cujo herdeiro foi Rubião. Diante de Sofia, que tinha “os mais belos olhos do mundo”, Rubião “trazia sempre guardado, e mal guardado, certo fogo particular, que não podia extinguir”. [Fonte: Graça Aranha. Machado de Assis & Joaquim Nabuco, Correspondência. Prefácio de José Murilo de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.]
Mecânica dos trens e da literatura
e apresentar problema mecânico, trem de ferro descarrila. O desastre é noticiado em todos os meios de comunicação de massa. Em fins de julho de 2011, na China, dois vagões de um trem saíram do trilho e despencaram lá do alto do viaduto; 32 pessoas mortas. Semelhante a escultura de José Resende, a foto do acidente é trágica e bela. No entanto, desacreditou em parte um bem montado programa de modernização do país asiático. Quando a obra de artista ambicioso bamboleia na bitola estreita da mesmice, ele deve darse conta de que a locomotiva que conduz apresenta sérias avarias. O maquinista tem de assumir ou não o risco do desastre regenerador. A assombrar o planejamento do futuro livro, o descarrilamento estético pode revigorar a obra literária à beira da insipidez. Tramas e personagens criados em obras anteriores morrem no acidente anunciado, que gera a fagulha propulsora da criação ousada, cuja escrita será um risco. Já tomados pela malícia em virtude do ramerrame em que a locomotiva vinha sendo conduzida, os olhos do crítico são atraídos pelo novo lançamento. O julgamento sairá estampado nos jornais. Dando continuidade à comparação, adentremo-nos por estimulante desastre ocorrido em 1881 na literatura brasileira. Machado de Assis era o festejado autor de quatro romances escritos segundo os conformes do movimento romântico. O último deles, Iaiá Garcia (1878), viaja bamboleando na bitola estreita da mesmice. O crítico Urbano Duarte não titubeia: “O cantor das Americanas, que acatamos e apreciamos, deve apimentar um pouco mais o bico de sua pena, a fim de que seus romances não morram linfáticos.” Linfáticos: a que faltam vida, vigor e energia. Alertado, o autor inspeciona a locomotiva e se dá conta das avarias. Entre 15 de março e 15 de dezembro de 1880, Machado escreve os sucessivos capítulos das Memórias póstumas de Brás Cubas. O maquinista está exausto pelo excesso de trabalho e doente dos olhos. Sua esposa lhe serve de foguista. Nas crises, ele dita mais de seis capítulos das Memórias póstumas à doce Carolina. Brás Cubas como que diz ao crítico Urbano Duarte: Repare, estou a apimentar a escrita. Escrevo o novo romance “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. O vagão está prestes a descarrilar. E descarrila em janeiro de 1881. Sacrificam-se trama e personagens linfáticos para que o narrador romântico renasça defunto das cinzas. No dia 30 de janeiro, Capistrano de Abreu faz a pergunta do assombro de todos na Gazeta de Notícias: “As Memórias póstumas de Brás Cubas serão um romance?” Em seguida, responde-a: “O romance aqui é simples acidente.” E toca a louvar o livro: “O autor é o primeiro a reconhecer a filosofia triste, e por isso põe-na nas elucubrações de um defunto, que nada tendo a perder, nada tendo a ganhar, pode despejar até as fezes tudo quanto se contém nas suas recordações.” Produto de descarrilamento, as Memórias desnortearão a sensibilidade do leitor. Capistrano dirige-se a ele ao final da crítica: “Se entenderes o romance, há de passar algumas horas únicas – misto de fel, de loucura, de
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rictos. Se não entenderes, tanto melhor. É a prova de que és um espírito puro, consciencioso, firme, ingênuo, isto é, um pouco tolo.” A ingenuidade tola do leitor é o anteparo do acidente literário, Capistrano dixit. Graças à lenha queimada pelo arlequinal foguista Mário de Andrade, Carlos Drummond vinha conduzindo em meados da década de 1930 o trenzinho caipira da escrita poética modernista. Já tinha publicado Alguma poesia (1930) e Brejo das almas (1934). O título do segundo é tomado de topônimo de cidadezinha mineira e traduz, ironicamente, o enfado do poeta, que se patenteia na epígrafe escolhida. Ela diz que a cidade exporta toucinho, mamona e ovos para Belo Horizonte e Montes Claros e que não se entende por que, tão próspera, continue com o nome de Brejo das Almas, que “nada significa e nenhuma justificativa oferece”. O descarrilamento é iminente e fatal. E o trenzinho caipira descarrila em 1940 com o livro Sentimento do mundo. O mundo – o sentimento que dele tem o poeta – pode ser uma abstração, como, aliás, o foi no poema que abre Alguma poesia. Ali, o mundo aparecia sob a forma risonha de sortilégio da vontade individual, bem ao gosto das vanguardas do início do século. Recordemos: “Mundo mundo vasto mundo. / Se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima não seria uma solução.” Já o sentimento do mundo − no livro que leva por título a expressão − é objetivo e material. Ele está na imanência do corpo solitário e rebelde do poeta (“Tenho apenas duas mãos”), na solidariedade entre os homens (leia-se o poema “Mãos dadas”), na emergência do operário como ator social (“Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão”), na violência da guerra contra Hitler (“O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos”) e na ardência da utopia socialista (“Aurora, / entretanto, eu te diviso, ainda tímida, / inexperiente das luzes que vais acender / e dos bens que repartirás com todos os homens”). Nos anos 1940, Mário Neme entrevista os jovens talentos brasileiros para montar o livro Plataforma da nova geração. Um dos entrevistados é Antônio Cândido, que admira a sobrevivência do poeta mineiro no acidente fatal: “Carlos Drummond é um homem da outra geração, da tal que você quer que nós julguemos. No entanto, não há moço algum que possua e realize o sentido do momento como ele. Representa essa coisa invejável que é o amadurecimento paralelo aos fatos; o amadurecimento que significa riqueza progressiva, e não redução paulatina a princípios afastados do Tempo. Por isso, acho que tem mais sentido a maturidade de um homem como Drummond do que o verdor quase desnorteado e não raro faroleiro de todos nós.”
A Jorge o que é de Jorge
o panorama da prosa de ficção nacional, Seara vermelha (1946), de Jorge Amado, apresenta proposta estética original e é, numa perspectiva de exigência crítica, seu romance mais bem construído e acabado. Escrito após a debacle do Estado Novo, segue as prerrogativas radicais da literatura político-partidária de esquerda, interessada em enaltecer a força dos movimentos sociais primitivos que, se desqualificada politicamente, não se encaixa nas insurreições operárias e socialistas. Para qualificá-la, Jorge burla o cientificismo eurocêntrico. Em 1965, Eric Hobsbawm redesenhará a cena camponesa de Seara vermelha. Leia-se Rebeldes primitivos (Estudo sobre as formas arcaicas dos movimentos sociais nos séculos 19 e 20). O romance vem dedicado a, entre outros, Luís Carlos Prestes, “amigo dos camponeses”. Seu valor é reconhecido pelo Prêmio Internacional Stalin (1951). Tomada de Engels, a epígrafe sintetiza: “A liberdade é o conhecimento da necessidade.” Seara vermelha mapeia a identidade fragmentada de três dos principais setores rebeldes do mundo camponês brasileiro, a fim de retirar cangaceiros, beatos e soldados da condição de pré-políticos. O mapa programa um upgrade artístico da rebeldia popular, contrário à tradição letrada brasileira e útil ao partido político internacionalista. Sem rede de proteção, Jorge rompe com a herança criminalista positivista, proposta pelo médico psiquiatra Nina Rodrigues e observada por Euclides da Cunha. Os dois emprestaram à rebeldia primitiva a condição de fenômeno psicopatológico. Do primeiro, leia-se “A loucura epidêmica de Canudos” (1897), ensaio publicado na Revista Brasileira. Do segundo, os subcapítulos de Os sertões (1902) que se seguem a “Antonio Conselheiro, documento vivo de atavismo”. Detectase a posteridade de Jorge em análise do universo de Glauber Rocha (em particular, os filmes Deus e o Diabo na terra do sol e Antonio das Mortes). O corte epistemológico efetuado por esse romance político é paradoxalmente de fundo estético. Jorge trabalha de maneira inédita o processo de caracterização do personagem de ficção. Esvazia as figuras dramáticas do recheio psicológico (ou psiquiátrico). Arrisca-se a ser julgado superficial por zombar da tradição criminalista positivista e da tradição do romance burguês oitocentista. O narrador de Seara vermelha não se vale do tratamento psicológico para conduzir os irmãos José, João e Juvêncio para o cangaço, o messianismo e a Polícia Militar. Independentemente da própria vontade e do amadurecimento como homem, cada um encontra seu lugar no mundo. José, João e Juvêncio tornam-se, respectivamente, jagunço, beato e soldado. O objetivo da vida adulta independe dos traços de caráter afetivo-sentimental que relacionariam a gênese da opção à infância (memória pessoal), à criação familiar (afetos) ou à formação (educação). O desprezo pela análise psicológica dos três irmãos ludibria a decantada diferença entre sujeitos (sentimentos, afinidades, ideais etc.) e torna pouco problemático o processo político-
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partidário de afiliação do indivíduo e de união dos bandos rebeldes e divergentes. Na atualidade cinematográfica, os três rebeldes primitivos correspondem aos “replicantes” do filme Blade runner. Se interrogados e submetidos ao detector Voight-Kampff do DOPS, não emitiriam respostas empáticas. Desmemoriados e convictos, seriam traídos pela íris. Para o contraste, assista-se ao filme O homem de mármore, do cineasta polonês Andrzej Wajda, crítico ferrenho da mitificação do herói operário pelo regime soviético. Como exemplo da despsicologização, tome-se um dos J − Juvêncio. Ele “teria sido cangaceiro se encontrasse Lucas (chefe do bando) na sua ansiosa busca pela caatinga. Se o beato Estêvão já houvesse iniciado sua pregação quando da sua fuga, ele seria talvez um dos seus homens. Mas Juvêncio em vez de encontrar o bando de Lucas, deparou com a estrada de ferro e o apito do trem”. Seu destino é selado pelo apito do trem, como o de José e de João o foi pelo encontro com Lucas e com Estêvão. “Entrou para a Polícia Militar quase por acaso.” A razão política não conduz os irmãos a buscarem lugar entre jagunços e beatos, ou no engajamento partidário. Não são tampouco psicopatas. São rebeldes por necessidade. Buscam a liberdade. De modo “anárquico”, “acaso” e “inconsciência” lhes ditam o norte. De volta ao personagem e ao texto: Juvêncio “nada sabia de política, mas se metia nas discussões no quartel e, por uma inclinação natural, era pelos revoltados contra o governo. Sentia-se contra a ordem estabelecida, mas de maneira inconsciente e anárquica”. Sem “direção justa” e “por sorte”, a rebeldia de Juvêncio bate à porta do engajamento político. “Por vezes, na cadeia, Juvêncio pensava no sertão, nos camponeses, em Lucas Arvoredo e em José, seu irmão que acompanhara o jagunço. Fora o mesmo impulso de revolta, a mesma sede de justiça que o arrancara da roça. Apenas ele tivera mais sorte e em vez do grupo de cangaceiros, encontrou o Partido e a direção justa para sua rebeldia.” Romances são considerados úteis à pesquisa nas ciências sociais porque trazem intriga que se lê pelo conhecimento já acumulado por elas. A linguagem artística exemplifica o saber. São considerados menos úteis aos amantes da arte porque não requerem uma reflexão íntima do leitor desejoso de questionar o saber objetivo, já codificado. Útil no processo de amadurecimento da reflexão político-partidária sobre a rebeldia popular, Seara vermelha funciona como divulgação de ideias sociais revolucionárias. O leitor pouco afeito à discussão complexa da literatura é levado a considerar problemas socioeconômicos pertinentes à sua condição, que não lhe passariam pela cabeça se instruído apenas pela indústria do entretenimento, a que se dobrará o romance de Jorge a partir de Gabriela.
Três meninas cariocas
ssim Ligia Fagundes Telles teria intitulado a coluna e, com a verve que lhe foi dada de presente pelos deuses, narrado as vidas paralelas das irmãs Celina, Mary e Elsie, entrelaçando-as ao sabor dos grandes acontecimentos do século XX. São filhas da carioca Arinda de Malta Galdo e do dentista norte-americano James Franck Houston, aclimatado ao Brasil desde 1891. O irmão delas faleceu ainda criança. Celina Houston casa-se com o industrial Nelson Veloso Borges que, logo depois da queda do Estado Novo, recolhe nos anos 1930 a experiência política da Liga Comunista Internacionalista (LCI) e, ao lhe adicionar a crítica ao stalinismo, funda com Mário Pedrosa e Hílcar Leite o jornal trotskista Vanguarda Socialista (1945-1948). Nelson, que assina a seção de Economia, adota o pseudônimo Pirajá e cabe-lhe o financiamento da empresa. Patrícia Galvão (Pagu) se incumbe da crítica literária. Em perspectiva histórica, a intenção política do jornal torna-o precursor do grupo e da revista Socialisme ou Barbarie (1949-1965), de que participam, entre outros, Cornelius Castoriadis e Claude Lefort. No editorial de Vanguarda socialista , salienta-se a proposta original do grupo brasileiro: “Não é um jornal de agitação para a massa; é um jornal de vanguarda. Isso significa que não visa a lançar uma ideia, ou um objetivo exclusivo para uma multidão, e bater e rebater na mesma tecla, até que a massa aja em consequência dessa agitação; queremos lançar muitas ideias, disseminar um corpo de ideias para os indivíduos, os pequenos grupos a fim de que esses, organizando-se e orientando-se por elas, se reúnam e se preparem para uma ação sistemática e esclarecida sobre o que se chama de largas massas.” Mary Houston casa-se com o crítico de artes plásticas e nosso mestre Mário Pedrosa, companheiro do concunhado no Vanguarda socialista . Pesquisadora independente, Mary trabalha nos anos 1970 com os manuscritos e as cartas de James Joyce, depositados na State University of New York, em Buffalo. Durante 15 anos, pesquisa os originais de Finnegans Wake, tendo concluído, em 1981, uma das várias edições do romance. Hélio Oiticica, então em Nova York, me falava de suas viagens e de seu trabalho. De Joyce, Mary traduz e publica Cartas a Nora Barnacle (Massao Ohno, 1988), missivas onde “até nas próprias letras”, escreve o amante à mulher amada, “há qualquer coisa de obsceno e de libidinoso”. Pena que o livro esteja esgotado. Em carta a Nora, datada de dezembro de 1909, lemos: “Vou dar-te também de presente um livro encantador e é um presente do poeta para a mulher amada. Mas, lado a lado e no âmago deste amor espiritual que tenho por ti há também um desejo bestial e bruto por todos os pedacinhos de teu corpo, todas as partes secretas e vergonhosas dele, pelos cheiros todos dele e por tudo que ele faz.” Das cartas à futura esposa não se excluem as confissões autobiográficas: “Como poderia gostar da ideia de lar? Meu lar era simplesmente um negócio
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de classe média arruinado por hábitos perdulários que eu herdei. Minha mãe, creio, foi morta aos poucos pelo mau trato de meu pai, por anos de tribulação e pela franqueza cínica de minha conduta. Ao olhar para o rosto dela quando posta no caixão – rosto cinzento devastado pelo câncer – tive consciência de estar olhando para o rosto de uma vítima e amaldiçoei o regime que fizera dela uma vítima.” Elsie, cantora lírica e musicóloga, casou-se em primeiras núpcias com o surrealista francês Benjamin Péret. Ao lado de Bidu Sayão, foi das primeiras intérpretes internacionais de Villa Lobos, Jaime Ovalle e do repertório popular brasileiro. Em 2003, por ocasião do centenário de nascimento e dos 60 anos de sua morte prematura e trágica em Nova York, Emanoel Araujo e Grégoire Villanova se uniram para homenageá-la e publicar, com o patrocínio do Grupo Takano, A feminilidade do canto. Desde então, a plaqueta é duplamente preciosa. O texto vem acompanhado de CD, onde se reproduzem 14 gravações (as originais estão em 78 rotações). Elsie era sensível ao desequilíbrio etnomusical que está no cerne do Modernismo brasileiro. Capital na sua formação foi o encontro em 1924, na cidade de Buenos Aires, com a soprano francesa Ninon Vallin, que se esmerava na interpretação de canções em quíchua e aimará, recolhidas no Equador, Bolívia e Peru por Marguerite Béclart d’Harcourt e por ela harmonizadas. Em abril de 1923, Marguerite as tinha apresentado com sucesso no teatro Vieux Colombier. Em 1925, de volta ao Brasil, Elsie estreita as relações com Mário de Andrade e de novo parte. Agora para Paris, onde conhece a mestra Béclart d’Harcourt. Depois de se apresentar em casa dela, retoma a carreira de intérprete lírica, com concerto na Salle Gaveau. Sem se distanciar do canto, Elsie segue os passos de Marguerite e, com o marido Péret, faz pesquisa em etnomusicologia no Brasil. O resultado é o livro Chants populaires du Brésil (Fondation Musée Guimet, 1930). O livro é composto por melodias populares em que a influência africana é dominante, como em emboladas, cocos, lundus, ou nos pontos de macumba. Seguem-se os gêneros de origem ibérica, como a cantiga de desafio e a modinha, e por fim os cantos indígenas. Poucos estes. Daí ter sido a musicóloga arguta observadora do desequilíbrio no estado da arte no Brasil: “Parece inverossímil que nenhum músico culto tenha percorrido as regiões habitadas pelos Índios brasileiros a fim de recolher sua poranduba musical. Estou convencida de que aquele ou aquela que o fizesse nos surpreenderia com suas revelações. […] Os únicos exemplares de música indígena pura que chegaram até nós são os três cantos recolhidos por Roquette Pinto durante sua excursão entre os Índios do Mato Grosso, na missão do General Rondon.”
Soroche, o mal das alturas
m agosto de 1942 o Brasil declara guerra aos países do Eixo. Desde 1938, Guimarães Rosa era cônsul adjunto em Hamburgo. Não se espante que já tivesse sido segregado em Berlim na companhia de outros diplomatas e de funcionários do consulado. De lá, seriam todos conduzidos a “campo de internamento” em Baden-Baden, onde ficariam confinados por cem dias, até o momento em que fossem trocados por alemães, então detidos no Brasil. Seguem-se viagem de regresso à pátria em navio, sob a ameaça dos torpedeiros alemães no Atlântico, e nomeação para secretário da Embaixada em Bogotá, cidade incrustada nos Andes colombianos, a 2.640 metros acima do nível do mar. Ao se instalar na Colômbia em 1942 e lá viver em “degredo” até 1944, o secretário sente “os pés frios do mundo” e padece a tirania do soroche, para usar a palavra boliviana que expressa o mal das alturas. Ainda desconhecido do grande público, o escritor redige o conto “Páramo”, inédito em vida, hoje em Estas estórias. Ali, ficcionaliza a viagem do diplomata a Bogotá e os anos nela vividos. Traços dos cem dias de internamento do cônsul em BadenBaden sobressaem na asfixia sofrida pelo personagem em virtude da rarefação do ar nas alturas dos Andes. Coação marcial e pressão atmosférica se somam e levam o prosador a dramatizar em ficção simbólica a angústia existencial por que ele passa e que toma conta do mundo em guerra. Inesperada citação do verso “no sono rancoroso dos minérios”, extraído do poema “A máquina do mundo”, de Drummond, indica que a segunda viagem a Bogotá, feita em 1948, levou-o a rever o texto. Também reitera a ambição filosófica da ficção sugerida pela dupla e perigosa experiência vivida. Bogotá é seu “Aleph”, para lembrar o conto de Jorge Luis Borges. Tomada a Platão, a epígrafe de “Páramo” emoldura o trágico aprendizado de vida: “Não me surpreenderia, com efeito, fosse verdade o que disse Eurípides: Quem sabe a vida é uma morte, e a morte uma vida?” Os opostos retornam no discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, quando se harmonizam: “… a gente morre é para provar que viveu.” A comprovar visualmente a epígrafe, dois quadros do pintor Böcklin (1827-1901) − A ilha dos mortos e Vita somnium breve − são descritos em “Páramo”. Tomadas pelas cores frias e pela fantasmagoria, as duas telas levam o macabro a dialogar com a placidez da natureza e a inocência das crianças. Releia-se o poema “Lembranças do mundo antigo”, de Drummond. Naqueles anos, foi lançada no Brasil a tonificante Emulsão de Scott, cuja publicidade mostrava um homem carregando às costas o bacalhau pescado, de onde seria extraído o óleo de fígado reconstituinte da força humana. No conto, o protagonista se traveste e se colore por duplo seu que ele, durante todo o desenrolar da trama, carrega às costas como a um bacalhau. O duplo é produto da condição psicótica do personagem e, como réplica, é pulsão de morte fatídica e revigorante. Sob o jugo do duplo o diplomata vive a sensação diuturna da “morte
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imperfeita e temporária” causada pelo soroche (e pelo internamento). Em reação ao duplo – e com a ajuda de “médico judeu exilado” − sobrevive à morte. Vida é morte, é ressureição. “O apalpar imenso de perigos”, lemos no conto, “é um falecer no meio de trevas”. Continuemos. Surge depois “o renascido, um homem mais real e novo”. Define-se o renascido: “Cada criatura é um rascunho, a ser retocado sem cessar, até a hora da liberação pelo arcano.” O duplo, “seu companheiro por decreto do destino”, é apresentado ao leitor como “o homem com a semelhança de cadáver” e sua alcunha será retocada por sinônimos durante o desenrolar do conto (o homem com o ar de cadáver, com fluidos de cadáver, o homem frio como um cadáver etc.). Esse duplo é objetivado no conto através da rememoração pelo narrador/personagem de episódio verídico acontecido em Bogotá e narrado, como descobre Bairon Oswaldo Vélez, no livro Reminiscencias de Santafé y Bogotá (1899), que reúne crônicas de José María Cordovez Moure (1835-1918). No primeiro número de Tusaaji (2012), revista eletrônica canadense especializada em tradução, Bairon transcreve o texto de Cordovez Moure, sem dúvida fonte da versão rosiana. O conto “Páramo” a retoma: por maldade misteriosa uma mulher conservou uma mocinha emparedada em um cubículo de sua casa. Depois de mutilá-la de muitas maneiras, vagarosa e atrozmente, dava-lhe comida emporcalhada e servia-lhe água poluída. Não havia motivo para a maldade. Quando descobriram a vítima – “restos, apenas, do que fora uma criatura humana, retirados da treva, de um monturo de vermes e excrementos próprios” – e a libertaram, o ódio da carcereira aumentou ainda mais. Na singeleza de parábola sobre tempos de campos de concentração e de internamento, o episódio de “Custodia, o la emparedada”, devidamente circunscrito pelos terríveis acontecimentos que norteiam a vida de Guimarães Rosa naqueles anos, abre o conto a uma leitura sem precedentes de sua literatura. O jogo entre poder e sujeição, entre mal e bem, entre ódio, prisão, liberdade e ódio maior, entre morte, esperança e ressurreição, entre dor física, soroche mental e alegria, se deixa circunscrever por uma pegada concreta e cosmopolita que, sem se desviar dos anseios por geografias mineiras ou por abstrações filosóficas, granjeia as alturas poéticas em que se asfixia Cruz e Souza no pungente poema “Emparedado”. O poeta negro padece a maldição de Cam na própria pátria. Como o diplomata em Bogotá, carrega cadáveres às costas. Leiamos trecho do poema: “Eu trazia, como cadáveres que me andassem funambuslescamente amarrados às costas, num inquietante e interminável apodrecimento, todos os empirismos preconceituosos e não sei quanta camada morta…”
Verdade poética
oética é a verdade que se depreende da leitura da obra de arte que ficcionaliza (e não apenas registra) a realidade. Ao contrário, por exemplo, do filme documentário, a ficção não entrega ao leitor os fatos nus e crus, de responsabilidade dum indivíduo ou dum grupo que tenha passado pela experiência concreta de situação dramática específica. Entrega-lhe uma fabulação original, cujo epicentro apenas toca, e muitas vezes de modo metafórico, na experiência pessoal do artista. Eventualmente, os pormenores do drama humano a ser ficcionalizado podem ser tomados da vida concreta de outro. Pelo uso literário da linguagem, que estiliza pessoas e fatos, compete ao autor ser convincente na sua fabulação. Pelo artesanato, investe o drama representado na obra de alta taxa de verossimilhança. Daniel Defoe, autor do romance Robinson Crusoé (1719), nunca passou pela experiência trágica do naufrágio em alto-mar. Isso não o impediu de escrever um notável romance sobre os riscos que correm os marinheiros e suas caravelas em viagens intercontinentais. Ao navegar pela vida, ele conheceu outro tipo de naufrágio, o financeiro, e outro tipo de agruras, as por que ele e outros 18 “merchant insurers” passaram em mãos dos credores. Em 1692, Defoe ficou a ver navios por causa de bancarrota no ramo de seguros. Por ter garantido os riscos de embarcações britânicas em guerra com a França, a pequena fortuna amealhada foi por água abaixo. A história dum europeu solitário, arribando por obra da Fortuna em longínqua ilha deserta, lhe foi sussurrada pela experiência dum compatriota, Alexander Selkirk. Em setembro de 1704, depois de altercação com o comandante da caravela, Selkirk foi desembarcado em Más, ilha do Pacífico, situada a 640 quilômetros de Valparaíso, no Chile. A ilha que enfrentou o recente tsunami é hoje conhecida, por ironia da arte, como a de Robinson Crusoé. Em 1709, Woodes Rogers, comandante de outra caravela britânica, desencavou Selkirk do exílio consentido e o levou de volta à pátria. Woodes narra por escrito a vida do marinheiro numa ilha deserta do Pacífico. Nessa história, ninguém passa pela experiência do naufrágio. Este foi certamente sugerido a Defoe pelas mil e uma narrativas de viagem marítima que se tornaram imperiosas no período áureo de colonização do mundo pela Europa, de que é bom exemplo a História trágicomarítima (1735), de Bernardo Gomes de Brito. Só a pequena fortuna de Defoe é que naufragou com os navios em guerra na Mancha. A originalidade de Defoe está na fabulação, ou seja, no modo como ficcionaliza as aventuras de Selkirk, ou de qualquer náufrago. A natureza em revolta expulsa Robinson da vida material europeia. Vive só na ilha e em penúria, mas é livre. Desprovido das benesses da civilização, tem de partir do zero e do próprio trabalho para sobreviver. Sob a forma de drama singular, sua aventura coloca à prova a verdade filosófica defendida por René Descartes:
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“Penso, logo existo.” A figura de Robinson se soma à de outros individualistas ficcionalizados em prosa e verso, como Don Quixote, Don Juan e Fausto. Na verdade, é com os três – e não com os eventuais protótipos reais – que a ficção de Defoe dialoga em profundidade. E dialoga em diferença, como afirma o crítico Ian Watt, em Ascensão do romance (Companhia das Letras, 1990): “Por acaso a ilha oferece a Daniel Defoe a melhor oportunidade para efetivar três tendências associadas da civilização moderna – a absoluta liberdade econômica, social e intelectual para o indivíduo.” Ainda em diferença, a verdade poética dialoga com a verdade científica. Sensível aos enigmas propostos pela ficção, um cientista político descobriria as ramificações da narrativa do náufrago britânico entre as ideias sistematizadas por C. B. Macpherson no clássico A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke (Paz e Terra, 1979). Não é Macpherson quem detecta que a noção niveladora de liberdade apresenta implicações para o conhecimento do aspecto possessivo do indivíduo, que Hobbes negligencia? Em teoria econômica, as robinsonnades [sic] são postas abaixo por Karl Marx nos Grundrisse (1858). Em diferença, finalmente, é que a prosa de Defoe dialoga com um náufrago contemporâneo nosso. Em 1924, o jovem Carlos Drummond escreve a Mário de Andrade: “Nasci em Minas, quando devera nascer (não veja cabotinismo nesta confissão, peço-lhe!) em Paris. O meio em que vivo me é estranho: sou um exilado.” A experiência do naufrágio em Itabira está descrita no poema “Infância” (1930): “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia. / Eu sozinho menino entre mangueiras / lia a comprida história de Robinson Crusoé.” Os náufragos se confundem na aventura da leitura. Entre mangueiras, Robinson ajuda o menino solitário a melhor se conhecer a si mesmo. Emerge um futuro e singular universo poético. Ao sair em busca da verdade poética o artista cria o real. Em leitura da obra de Marcel Proust (Cosac Naify, 2003), Samuel Beckett sublinha o momento em que o homem mundano se assumiu como artista. Beckett cita então uma frase de Francesco de Sanctis, historiador da literatura: “Chi no la forza di uccidere la realtà non ha la forza di crearla.” (Quem não tem a força de matar a realidade não tem a força de criá-la.)
Sol da meia-noite
sol se põe no horizonte. O poeta se põe no livro de versos. Poeta poente (Perspectiva) é o título da coleção de poemas de Affonso Ávila, autor do já clássico Código de Minas (7 Letras, 1997). O sol e o ser humano se consagram ao ocaso dos respectivos percursos. No entanto, a poesia e as artes foram solares no século XX. Em 1922, no poema “Cemitério marinho”, Paul Valéry abre o périplo do sol pelo meio-dia. Firma o astro na abóboda celeste e o reafirma no momento exato em que põe em evidência a completa ausência de sombras na terra. O sol a pino atiça faíscas de luz nos metais tomados pela maresia e na crista das ondas do Mediterrâneo. Ao cansaço causado pelo pensamento segue-se o longo olhar lançado à calma luminosa dos deuses. Entregue à luz do meio-dia e às pombas, aos esguios pinheiros e às ondas renovadas do mar, o cemitério é convite à vida. Em epígrafe, versos de Píndaro incitam o leitor a gozá-la no instante-já: “Não aspire, ô minha alma, à vida eterna, mas esgote o campo do possível.” No cemitério marinho de Paul Valéry, a vida calca os pés no leito da morte. Banhado pelas ondas que o vento agita no canavial, um diferente cemitério marinho logra poema em engenho de açúcar pernambucano. Nele, sob o inclemente sol tropical, a vida se traja de luto. Morte e vida severina. No poema “Cemitério S. Lourenço da Mata”, João Cabral de Melo Neto presta homenagem ao mestre francês e nordesteia as ondas do Mediterrâneo: “É cemitério marinho / mas marinho de outro mar. / Foi aberto para os mortos / que afoga o canavial.” Longe das águas do Mediterrâneo, louvadas pelo cineasta Manoel de Oliveira em Um filme falado, ali, os cortadores de cana são tragados pelas ondas do canavial. Não chegam vestidos de caixão. São derramados no chão. Tão da terra são, que a terra nem sente a intrusão. Em São Lourenço da Mata, a morte calca os pés na lavoura da vida em versos que rimam em ão. Cabral é herdeiro de Carlos Drummond de Andrade. Ao perder a referência ético-filosófica mediterrânea, o sol ganhou os trópicos, crestou a pele humana e adensou o vazio da vida com a sua indispensável politização. Assim o tinha anunciado Drummond no poema “Morte do leiteiro”. Ao iluminar a violência da Segunda Grande Guerra e o medo que ganha os cidadãos durante a ditadura Vargas, o sol drummondiano abre seu périplo pela aurora carioca. Pé ante pé, o dia amanhece como o leiteiro que, ao depositar a garrafa à porta da cozinha, é tomado por ladrão e recebido à bala. Leite e sangue derramados, branco e vermelho, as duas cores se procuram e se enlaçam amorosamente, “formando um terceiro tom / a que chamamos aurora”. Affonso Ávila se soma à lista dos poetas solares brasileiros, herdeiros, cada um à sua maneira, da lição de Paul Valéry. Lemos no poema “Meridiano”, em Poeta poente: “Ao pleno sol de fortuito meio-dia / não em berço de ouro e estrela na testa / o soluço de vir ao mundo foi sua festa.” Ao sol do meio-dia, a vida se abre em soluços. No entanto, o sol se põe. Não mais
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apetece ao poeta calcar a morte na lavoura da vida, embora ainda seja afeito a “acolher o pretexto para o texto”, ou “o sobe e desce da bolsa”. Poeta poente. À semelhança da crisálida, que dá título ao poema que abre o volume, Affonso Ávila se põe em expectativa de revelação. É preciso “lutar até o juiz decretar o seu tempo / e cair em nocaute só ao último assalto”. É chegado o momento em que “o após do antes infinito” é o “retilíneo percurso / incrustado de curvas e recurvas”. O vir a ser é aula de “nascer mínimo”. É “o ter por onde ir e não saber a saída”. Sobrevive-se graças às arapucas armadas à lucidez pela experiência humana: “saber que o tempo não passou / foi passado para trás”. Como esclarece no poema “Terceira estação”: “A fonte não secou mas a água está turva / e turva a palavra da antiga clara semântica.” E adiante reitera: o poeta “já pagou o check-in e aguarda a decolagem”. A esculpida companheira, “replena de beleza”, o acompanha na viagem. Em poesia que nasce substantiva, embora “cediça” (em estado de putrefação), a palavra é “aurora da última hora”. A situação (do sol na abóbada, do poeta na cidade) se expressa pelo “desfazimento do feito e do não feito”. No ajuste de contas, deve-se “pagar enfim o que foi dado / no jogo da vida ou no jogo de dados”, ou seja, “o construído o consentido o destruído”. O abatimento (“a atonia”) tomba na “calada da noite”. Confundem-se o físico, o figurado e o psíquico: “víscera, avesso, abulia”. A esperança do poeta poente é, pois, intervalar. Calar ou falar o último solilóquio, “enquanto a alma é batida de fel e não tomba / enquanto ainda muge a ovelha e despetala sua lã”. A esperança se expressa pelo tempo do enquanto. Neste, a ação verbal vem no infinitivo (calar, falar, olhar). Por ser desprovido de pessoa e de número, o infinitivo se confunde com o tempo circular, em que os 80 anos é um “amálgama de aros”. Confunde-se com o tempo mítico, onde o poeta encena Pigmaliões e Teseus. No tempo do enquanto, graças às reminiscências, passa a calar fundo o que, no calendário das ações, é conversa fiada e banalidade. A memória é algema ou liberdade? Os poemas poentes de Carlos, João e Affonso. Por não ter visto a infância passar, Carlos Drummond readquire os olhos de menino em Boitempo. Não os ressuscita para rever o tempo antigo. Em perspectiva e palavra de poeta-criança, entrega ao leitor o futuro tal como visto do tempo pretérito. João Cabral sensualiza a paisagem em Sevilha andando. Empresta-lhe coxas femininas. Da janela, “vê passar, entre as que passavam, / uma mulher de andar Sevilha”. Affonso Ávila escreve a “áspera fábula”, enquanto manhã, tarde e noite se confundem e o horizonte tarda em fechar seu ciclo. Pier Paolo Pasolini pergunta ao poeta poente: “O que o senhor ainda tem no ativo? Eu… uma desesperada vitalidade.” No dizer de Roland Barthes, a desesperada vitalidade pasoliana se confunde com “o ódio da morte”. Brilha o sol da meianoite.
As viagens de Camilo Pessanha
se o poeta entender que a viagem à distante Ásia não tem como interesse maior a exploração geográfica de outro canto do planeta ou o conhecimento dos muitos povos exóticos? E se ela se lhe apresentar antes como estrada real para o exílio na península de Macau e condição sine qua non para a exploração sentimental e amorosa do potencial de vida cortado rente à raiz pela foice da Lusitânia natal? E se a língua chinesa, aprendida pelo poeta e por ele adotada no cotidiano, lhe servir para neutralizar o poder imposto pela dicção poética lusitana, inspirada na tradição greco-latina? A viagem a Macau será, então, porto de desembarque. No espaço do exílio, o poeta estica o elástico da coerência íntima e secreta, experimenta a liberdade absoluta e inventa a própria e original dicção poética. Longe da pátria, o poeta se vê estimulado a avançar com proveito e prazer a vida sentimental e amorosa que, a latejar no obscuro do desejo, deve ser a sua, é a sua, legitimamente. Poemas do exílio podem não ser poemas do lá. No país onde o poeta nasce e onde deveria viver até a morte, lá, ele não pode levar a cabo a vida que julga plena para si. Lá, não está sua pátria; lá, sua pátria não é. Valho-me dessas considerações para formular o convite à leitura dos poemas de Camilo Pessanha (Coimbra, 1867-Macau, 1926) reunidos em Clepsidra (1920). Ninguém como o coimbrão Pessanha levou até as últimas consequências o conhecido lema tomado às Discussões tusculanas, de Cícero: “Ubi bene ibi patria” (na tradução de Paulo Rónai: Onde me sinto bem, lá é a minha pátria). Louvemos a Ateliê Editorial por nos entregar a primeira edição brasileira d e Clepsidra. O livro recebeu apresentação criteriosa e notas indispensáveis do professor e poeta Paulo Franchetti. A minguada e notável produção poética de Camilo Pessanha nasce, se alimenta e sobrevive das revelações que lhe propicia “a luz de um país perdido”. Pessanha viaja à antípoda Macau para desfrutar a vida e a poesia dos seus sonhos. Dele disse Fernando Pessoa: “Descobriu-nos a verdade de que para ser poeta não é mister trazer o coração nas mãos, senão que basta trazer nelas os simples sonhos dele.” A vida profissional em Macau é a mesma que teria levado em Portugal. Continua a ser o que pode ser: um pequeno funcionário a viver às expensas do Estado. Mas na prática da poesia, interessa-lhe dar vida à vida dos sonhos seus. Repete-se a si em tamanho que transgride e ultrapassa os limites existenciais e poéticos propiciados pelo cotidiano português. O biógrafo Antônio Dias Miguel observa que a vida alucinada no exílio serviu-lhe para que aprofundasse, pela repetição em diferença, traços abusivos já existentes no comportamento europeu. Em aguda percepção, Dias Miguel esclarece-nos que o uso do ópio “corresponde não a um vício adquirido [em Macau], mas à sublimação, ou melhor, à transparência de outros [vícios] que já em Portugal o caracterizavam, como o hábito de beber e o completar-se através de uma vida nova toda artificial”.
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Sob a luz do país perdido, a “lânguida e inerme” alma do poeta se recheia e transparece completamente. Ela passa a “deslizar sem ruído” e a “no chão sumir-se, como faz um verme”. O ópio suplementa o álcool, propiciando a plena realização “de uma vida nova toda artificial”. Sobre esse tópico e a contrapartida no cotidiano como “spleen”, há que buscar seu artífice na poesia ocidental, Charles Baudelaire. Em tradução de Ivan Junqueira, leiamos versos de As flores do mal: “O ópio dilata o que contornos não tem mais, / Aprofunda o ilimitado, / Alonga o tempo, escava a volúpia e o pecado, / E de prazeres sensuais / Enche a alma para além do que conter-lhe é dado.” A poesia de Pessanha toma ao pé da letra a pergunta sugerida em Baudelaire: Como encher a alma para além do que lhe é dado conter? Nos desvarios existenciais e poéticos, ir além significa permanecer aquém no plano do dia a dia. Não é, pois, estapafúrdio registrar que os chineses de Macau, segundo informação de Danilo Barreiros, tinham o poeta drogado a caminhar pelas ruas na conta de “pune-tic-iane-mean” (literalmente: homem da meia-vida). Igualavam-no ao albatroz, ave migradora moldada também em meias-vidas e figura tipicamente baudelairiana. Ao zanzar descompassado pelo convés do navio, o albatroz desperta o escárnio dos marinheiros por as longas asas brancas e celestiais camuflarem pernas trôpegas e patas grosseiras. A não ser por alguns poucos poemas, de que é destaque o díptico “San Gabriel”, Pessanha é o menos imperial dos poetas portugueses viajantes. Refiro-me a gigantes como Camões, Fernando Pessoa e Jorge de Sena. Destaca-se como contemporâneo do sinólogo Ernest Fenollosa, autor de The Chinese Written Character as a Medium for Poetry (1918). Admirado por Ezra Pound, Augusto e Haroldo de Campos, Fenollosa funda a relação entre ideograma chinês e linguagem poética moderna. A respeito de tradução de poema chinês, Pessanha escreve: “A melhor elegância manda, na poesia chinesa, suprimir quase completamente as palavras designativas das relações lógicas, imprimindo assim mais vivamente, é certo, na imaginação de quem lê […] as ideias concretas adotadas pelo autor como símbolos poéticos.” A observação crítica de Pessanha fundamenta sua inovadora composição em parataxe. Poderia ter fundamentado o paideuma poundiano e o Plano-piloto para poesia concreta. Triste Macau! Lamentavelmente, as traduções de poesia chinesa assinadas por Pessanha se perderam no tempo e no espaço. Ao final do século XX, o poeta moçambicano Rui Knopfli retoma a experiência. Em 1980, publica O livro melancólico de Tao Li . Rui nos informa que Tao Li é o mesmo T’ao Lei, a que Ezra Pound se refere. Seu perfil ilumina o de Pessanha: “Tao Li é poeta menor do final da dinastia Tang e que, tendo gozado de certo favor na corte, por mulherengo e quizilento, acabou por ser banido e desterrado, terminando seus dias no exílio.” Escolho três versos dele: “Atardo-me a olhar meu companheiro único, / o fogo, mas seu verão fictício / não se espelha no meu inverno.” O fogo, verão fictício a não se espelhar no inverno do poeta. Puro Camilo Pessanha.
Rui Knopfli
o livro O escriba acocorado, o poeta moçambicano Rui Knopfli (1932-1997) diz que, sendo “legado de palavras, pátria é só a língua em que me digo”. Em 1978, o poema “Pátria” e o livro em que ele se insere profetizam a criação no dia 17 de julho de 1996 da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), a entidade que engloba as oito nações que, em três continentes, têm a nossa língua como nacional ou de expressão nacional. Inspirados por José Aparecido de Oliveira, Portugal e as nações pós-coloniais de ascendência ibérica manifestam a vontade política de se reaproximarem com vistas ao aperfeiçoamento democrático nas relações multilaterais. Desde então, procuro a obra literária que traduza a multifacetada e atual realidade da língua que, ao partir do cais do Restelo, navegou pelo Atlântico e o Índico e se infiltrou cotidiana e artisticamente pelas terras americanas e africanas. De Os lusíadas, de Camões, a Mensagem, de Fernando Pessoa, os clássicos lusitanos carreiam o peso conflitante da mão única colonial. Já os autores nacionais se mostram excessivamente envolvidos com a geopolítica dos respectivos territórios pátrios. Historicamente indispensável, o compromisso dos escritores pós-coloniais com o país em ebulição nacionalista embotou a riqueza labiríntica da língua que foi sendo redesenhada no correr dos séculos pelos milhões de falantes inesperados. O amálgama da fala portuguesa, brasileira, angolana, moçambicana etc. se expressa por um corpus literário disparatado, à espreita e à espera duma obra que acomodasse todos e tudo. Já homenageadas, as geopolíticas literárias regionais seriam finalmente extrapoladas. A pedra de toque está em Machado de Assis e no nosso vizinho Jorge Luis Borges. No pósromantismo, eles avalizam a abertura literária das fronteiras geopolíticas nacionais. Machado pergunta se os dramas vividos por Hamlet, Otelo, Júlio Cesar, Julieta e Romeu têm algo a ver com a história inglesa, no entanto, acrescenta ele, Shakespeare, além de ser gênio universal, é um poeta essencialmente inglês. Isso em 1872. Em 1951, no ensaio “El escritor argentino y la tradición”, Borges retoma e atualiza a pegada machadiana. Lembra: Edward Gibbon observa que não há camelos no Alcorão. A primeira coisa a ser feita por falsário, turista ou nacionalista árabe, continua, seria a de prodigar camelos, caravanas de camelos a cada página do livro. Mas o profeta Maomé, enquanto árabe, estava tranquilo. Sabia que poderia ser árabe sem camelos. Restrinjo-me ao exemplo brasileiro e ao moçambicano. Sob o olhar da doce Carolina, Machado de Assis reeuropeíza a língua literária portuguesa que José de Alencar, ao lhe enxertar personagens indígenas e léxico tupi-guarani, tinha abrasileirado. Desde sua estreia em O país dos outros (1959), Rui Knopfli se beneficia do português literário atlântico, mestiço e reeuropeizado que os modernistas Manuel Bandeira (“Evocação do Recife”) e Carlos Drummond (“Consideração do poema”) lhe oferecem, a fim de inscrever o projeto identitário
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índico-moçambicano na literatura em língua portuguesa. Os versos dos brasileiros desestabilizam a combativa e pouco poética identidade nacional da colônia africana e levam Knopfli, como observa Luís Sousa Rebelo, “a escrever uma poesia sem os exotismos gratos ao gosto do leitor metropolitano”. Para escrever seus poemas, Knopfli não só se serve da argamassa drapejada pela onipresença do Índico e do Oriente, de que também se valem os que constroem a literatura de Moçambique, como também robustece essa matéria-prima com empréstimos tomados à poesia modernista brasileira, à tradição portuguesa e, na esteira de Machado e de Borges, ao melhor da tradição europeia eurocêntrica, representada em Knopfli por T. S. Eliot. Jogadas na roleta do ofício poético, as moedas de língua portuguesa amealhadas pelo moçambicano têm, desde a origem, a cara compósita e a coroa cosmopolita. Ao desbancar os detratores, confessa: “Trago no sangue uma amplidão / de coordenadas geográficas e mar Índico. / Rosas não me dizem nada, / caso-me mais à agrura das micaias.” Desdobremos o trajeto de Knopfli em suas etapas. De início, atentemos ao poema “Terra de Manuel Bandeira”. Ali é nomeado o amoroso e mítico território de Pasárgada (“Também eu quisera ir-me embora / pra Pasárgada”) para ser logo rejeitado pelo morador de país que (ainda) é dos outros: “Entanto, tudo me prende aqui / a este lugar desta cidade provinciana.” A pegada manuelina de Knopfli se substantiva no poema “Carta para um amor”: “Os nossos companheiros tiveram / a coragem de partir, / vivem nas grandes cidades, com história, / do mundo, / eu fui covarde e fiquei.” Ao pisar a terra e os versos de Bandeira, poeta e poema moçambicanos fincam resolutamente o pé na língua da pátria (ainda) salazarista. Bem ao norte da terra de Bandeira, alteia-se a terra de Gil Vicente. No poema “Contrição”, escreve Knopfli: quando chego lá e sempre que posso, “subtraio de Alberto de Lacerda / e pilho em Herberto Hélder / e furto ao velho Camões”. Não lhe escapa o Bocage “de olhar parado e face lombrosiana”. Lemos no poema “Pessoa revisited”: “Alguma vez todos os poetas / se encontram contigo. / Mesmo os menores como eu / ou o meu vizinho ao lado, / que é contabilista, não faz versos.” Já em Mangas verdes com sal (1969), o poema “Promenade dos espectros” leva o leitor a recriar um indisfarçável diálogo do português-americano-africano com o inglês angloamericano da “Canção de amor de J. Alfred Prufock”. Diálogo abnegado e profano, reverente e destemido, onde se evidencia que poeta algum, nenhum poeta deve ter medo de T. S. Eliot e de sua poesia centrada na tradição europeia, pois ali também estão os valores fortes do humor e da coloquialidade que todos sempre buscamos na boa literatura: “Vamos então, tu e eu, logo que o dia / principie a cabecear na pré-anestesia.” Em dezembro de 2010, a Editora da UFMG brinda o leitor com uma antologia de poemas de Rui Knopfli. Eugenio Lisboa os seleciona e Roberto Said os comenta.
O gato de Schrödinger
acaso de uma viagem leva-me a abrir e a examinar o livro Todas as palavras (Assírio & Alvim, 2012), poesia reunida do português Manuel António Pina, nascido em 1943, e ainda pouco conhecido no Brasil. Embora bem recebidas regionalmente, suas sucessivas coleções de poemas circulavam apenas entre os “happy few”. Era tido como autor de livros infantojuvenis e jornalista político. A produção poética ganhou destaque internacional na edição 2011 do Prêmio Camões. Os jurados a elegeram. Ao receber o prêmio, o poeta engendra trocadilho que tem graça e faz sentido: “É a coisa mais inesperada que poderia esperar.” Nuno Ramos de Almeida diz que ele “não acredita em milagres, mas faz tudo para que eles aconteçam”. Com resultado nulo ou inesperado, a reflexão durante a espera foi tema na literatura do desconcertante século XX, quando as certezas se esboroaram no chão da dúvida e da decepção. Haja vista a primazia conferida à peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, e o sentido da expectativa masoquista exposto por Albert Camus, o Sísifo. Na sala de espera do dentista, o paciente aguarda a vez e a dor simbólica. Leia-se no romance A peste: “Pergunta: O que fazer para não perder tempo? Resposta: Experimentá-lo em toda sua extensão. Meios: Passar dias na sala de espera do dentista, sentado de maneira desconfortável.” Como lugar dramático, a sala de espera incita o artista − não comprometido com a ação política – à observação da fragilidade e da precariedade do esforço humano, que lhe causam angústia existencial. Compele-o ao imperioso ceticismo frente ao homem e ao mundo. Circunstâncias dão origem a valores transitórios e a crença nestes é vista como traição ao compromisso fundador do artista e do intelectual modernos. Manuel António Pina sabe que, ao usar a palavra como ferramenta expressiva, o poeta escreve − na hesitação entre som e sentido, para retomar Paul Valéry − o verso que levanta potencialidades de significado e se robustece de novas e outras indeterminações. No poema, dobra-se o mundo “entre ser e possibilidade”. Se entrevistado sobre a construção do real pela poesia, António Pina arrasta o curioso até a antessala do conhecimento para que reflita sobre a ambivalência de significado na vida real, dando como exemplo o experimento científico conhecido como o gato de Schrödinger. Fechado numa caixa e à mercê duma ampola de veneno, que pode ou não ter sido quebrada, o gato está momentaneamente vivo e morto. Aberta a caixa e observado o conteúdo, vai-se a ambiguidade: o gato vive ou está morto. Ao se ganhar o sentido do real, colapsa-se a esperança de o bichano estar vivo e morto. Perde-se o indecidível, para citar Jacques Derrida. O cientista acondiciona o gato numa caixa ardilosa. O poeta aprisiona a palavra num poema. O potencial assassino da ampola de veneno em relação ao gato, assim como o potencial explosivo da palavra poética frente ao real, tem mera função aleatória. Afirma António Pina:
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“Nunca saberemos como é o mundo real, e até que ponto ele coincide com aquele que construímos através da observação e com recurso à linguagem.” E continua: “Nós é que construímos de fato a realidade através da observação, nós é que lhe damos sentido.” A congruência da palavra poética com as coisas – a harmonia do que é morto com o que é vivo − é metaforizada por António Pina pelo par de meias (a não ser confundido com o não coincidente par de sapatos). O poeta cita uma passagem da Mineralogia e geologia gerais: “Como exemplo de congruência / podemos tomar um par de meias / que tanto se pode calçar no pé / esquerdo como no pé direito.” É do par de meias – e das palavras no poema – o direito ao paradoxo de Schrödinger e à congruência. Já cada sapato calça seu próprio pé. O milagre da poesia consiste em fazer com que, fora da caixa, se perpetue o estado indecidível da palavra dentro dela. Após a observação do poeta e a decisão do poema, a palavra poética ainda se robustece como indeterminação explosiva, semelhante à proposta pela relação entre gato e ampola em Shrödinger. Antes de ser sentido, ela é sílaba, plenitude, e silêncio, vazio. Em “os tempos não”, poema que abre a poesia reunida, lemos: “As palavras esmagam-se entre o silêncio / que as cerca e o silêncio que transportam.” Não é pela semântica das palavras, é pelo seu “hálito” que o poeta constrói o verso. No poema “O livro”, lemos: “O que o livro diz é não dito / como uma paisagem entrando pela janela de um quarto vazio.” Em “Arte poética”, complementa: “Vai pois, poema, procura / a voz literal / que desocultadamente fala / sob tanta literatura. / Se a escutares, porém, tapa os ouvidos, porque pela primeira vez estás sozinho.” Tecido em palavras poéticas, o “par de meias” (leia-se: a vida) calça indistintamente o princípio e o fim do homem. Nascimento e morte se harmonizam. Não há milagre, mas é preciso se esforçar para que ele aconteça. Tal atitude é inspirada a António Pina por T. S. Eliot, cujos versos sobre o esforço de o poeta tornar a incongruência congruente são citados: “chegar aonde começamos / e conhecer o lugar pela primeira vez”. O par de meias de Eliot está também nos versos do próprio António Pina, que, aliás, são recorrentes: “O rio da morte corre para a nascente”, ou: “Voltamos sempre ao princípio, estamos perdidos!” Manuel ainda se inspira em texto bíblico para escrever outros e muitos poemas: “Aquele que quer morrer / é aquele que quer conservar a vida.” A hesitação entre a palavra e o real. A ressurreição do gato, a afirmar e a negar a observação. A incerteza sobre o caminhar da vida na morte. As três damas regulam o imperioso ceticismo na poesia de António Pina, dada como “falta”, falta que é construída a partir do verso “O braço que falta ao mendigo é que o sustenta”. Para culminar: “É o que falta que fala.”
ALÉM DO CAMPO VISUAL
Olhos leem, dedos pensam
m artigo publicado na revista Le Nouvel Observateur no ano de 2000, Umberto Eco profetizou que o século XXI entronizaria o computador e − arriscava-se ao afirmar − a palavra escrita. Na era do computador, a tela não preservaria o consumidor passivo de imagens. Aparência engana, alertava Eco, e puxava o tapete dos arautos da afasia, súditos da imagem divulgada mundialmente pelo cinema e pela televisão. Nos lares, nas escolas e nos negócios, a ditadura da tela seria sabotada pela presença contígua do teclado. Os dedos do usuário interagiriam com palavras, a serem enviadas pelo ciberespaço. A internet exigia a retomada do ensino e do aprimoramento de quem lê frases e de quem as escreve, ainda que estivesse sendo aberto − para desgosto dos conservadores como o poeta Ferreira Gullar e alegria dos mestres em “letramento” na Unicamp − o caminho para nova balbúrdia gráfica e sintática. Com a habilidade de mão em jogo de pingue-pongue, os dedos pensam o que os olhos leem. Reagem, interagem. Início de ampla e futura forma de cidadania? Ver a realidade virtual tornou-se hoje arte semelhante à de ler palavras e o teclado atiça o desejo de escrever. Qualquer imagem é também texto, já que tudo no mundo se representa e se escreve por signos − da Via Láctea à roupa da moda e ao DNA. E nós nos dedicamos à leitura diária de informações. O leitor de palavras passa a ser o modelo heurístico que explica o processo de leitura das imagens e dos signos. Características de um são semelhantes às do outro. Leitores de letras, imagens e signos, tornamo-nos também leitores dos familiares e da sociedade humana, do mundo animal, vegetal e mineral, do universo enfim. Qualquer leitor, se quiser, é escritor. Qualquer escritor é a priori leitor. Interagem. No universo do saber moderno, a interação é cria legítima do papel assumido pela acoplagem do teclado à tela do computador. A conversa espontânea e fragmentada entre leitor e escritor está sendo incentivada pelas variadas formas de textos eletrônicos que se encontram nos sites, nos blogues e nas redes sociais. Jornal e revista, ao abandonarem circunstancialmente o papel, abrem espaço para o comentário a ser digitado pelo leitor. Na televisão de sinal aberto, a série Você decide (1992-2000) trouxe o teclado até a praça e o entregou à opinião pública. Entre crianças e jovens, os jogos interativos vieram para ficar. A interação entre leitura e escrita continua a ser postergada pelo leitor de livros que não se contenta com a informação. Reage ao objeto-livro (mesmo no formato e-book) através de notas escritas por ele e para ele nas margens, intransmissíveis ao autor. A leitura clássica do livro recomenda que o sujeito se distancie das ideias expostas e defendidas pelo autor no papel. Se houver interação, ela se dará no oco que a reflexão escava. Suspensa a atenção da leitura, o leitor elabora ali, no oco, seu pensamento crítico-criativo. Especialista da leitura na sociedade da informação, Oliver Grau não esconde a dúvida cruel: “Uma pergunta que carece
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de resposta é se existe ainda algum lugar para a reflexão distanciada e crítica – marco da era moderna – em espaços de ilusão vivenciados pela interação.” Da interatividade do leitor com a imagem eletrônica surgiu nova forma de leitura nas décadas finais do século XX − a imersão, a que o objeto-livro é também refratário. Não há como o leitor entrar fisicamente no livro e nele imergir, como o corpo se afunda na piscina. Quem leu Arte virtual, da ilusão à imersão, de Oliver Grau, publicado em 2007 pelas editoras UNESP e SENAC, já sabe que a questão mais candente para se conhecer o observador (o leitor ou o espectador, diríamos anteriormente) é a da sua entrada física na imagem para com ela interagir virtualmente: “O observador imerge no espaço da imagem, move-se dentro dela e com ela interage em tempo real, intervindo de forma criativa.” Oliver Grau se refere a pesquisas feitas a partir dos anos 1980 sobre a interação do observador com a imagem gráfica e sua consequente imersão criativa, cujo exemplo é dado pelo hexaedro nomeado CAVE (Cave Automatic Virtual Environment). “Trata-se”, segundo Oliver, “de um cubo em que todas as seis superfícies podem ser usadas como telas de projeção, circundando o visitante com um ambiente de imagens. Usando óculos de obturadores de cristal líquido, o usuário vê (lê) as imagens em três dimensões.” Oliver Grau levanta exaustivamente os inventos técnicos que propiciaram a criação em 1995 de Osmose, ambiente de imagens da canadense Charlotte Davies. Remeto o leitor à pesquisa do historiador da arte, para dedicar atenção ao trabalho conclusivo e inaugural de Charlotte, marco nas relações entre leitura, arte e alta tecnologia. Criado por computação gráfica em 3D, com som interativo explorado sinestesicamente, Osmose é um ambiente imersivo. O usuário faz uso de capacete de realidade virtual (HMD). A solidão do interagente é intencional. Dela emerge a leitura individual do mundo como espaço sem limites. Como mergulhador exímio, o interagente desliza por uma grade de coordenadas cartesianas para logo abandoná-la, adentrando-se por doze cenários virtuais que se descortinam como se abismo oceânico. O sujeito flutua. Distinções entre figuras e terreno se dissolvem. Na ambiguidade espacial não há objetos sólidos, tudo é translúcido. Enxames de insetos brilhantes voam para dentro da vegetação florestal. No centro desse espaço de dados, domina a metáfora a ser lida − uma árvore desfolhada e solitária. Troncos e galhos cintilam como cristal. Ao olhar para baixo, do topo da árvore digital, o usuário vê a rede emaranhada de raízes, que lembram galáxia distante. Osmose se lê e se escreve como símbolo de vida, fertilidade e regeneração.
Além do campo visual
m texto anterior, falei de leitura pela imersão do espectador em ambiente de imagem criado por computação gráfica em 3D. A experiência subjetiva se dá pelo uso de capacete de realidade virtual. Vali-me então do livro de Oliver Grau, Arte virtual: da ilusão à imersão. Destaque foi dado à pesquisa de artistas em alta tecnologia, exemplificada pelo trabalho Osmose, de Charlotte Davies, a ser visto na internet. A erudição de Grau recomenda um passo atrás na história da arte. Compreende-se melhor a ansiedade do espectador em usufruir ambientes de imersão, caso sejam eles examinados à época em que existiam de maneira independente dos benefícios oferecidos pela computação gráfica. Em fins do século XVIII, o público urbano europeu ganha uma casa de espetáculos localizada no centro da metrópole. Nela é exposta representação pictural em 360° de algumas capitais do mundo ou de batalhas históricas. Apelidada inicialmente de La nature à coup d’oeil (A natureza vista de relance), a invenção da representação pictural em 360° se deve ao irlandês Robert Barker, que registra a patente em 1787. Quatro anos depois, já em Londres, Barker cria o neologismo Panorama. O vocábulo descreve tanto o edifício encimado por cúpula, quanto o conjunto circular da pintura realista, exibido ao público pagante. O preço da entrada é alto nos dias em que se inaugura o Panorama e reduzido ao final da temporada. Típico espetáculo de massa. Por escada, o visitante tem acesso à plataforma circular de visualização, que é protegida por balaustrada. Ao centro da sala, observa a pintura ilusionista que o rodeia. Por exemplo, Londres, tal como vista em 360° do telhado dos moinhos a vapor Mills. Ou a Batalha de Copenhague, vencida por Lorde Nelson. Posicionada acima da cabeça dos espectadores, a iluminação leva-os a acreditar que a pintura é a fonte da luz, efeito que mais tarde será aperfeiçoado pelo cinema, que estaria ocupando as salas abandonadas de Panorama. O público leigo não imagina que são duas novidades civilizacionais concorrentes que possibilitam o panorama. Graças a elas é que a observação começa a substituir o entusiasmo como motor da pesquisa. Uma das novidades é estética. Traduz o gosto pelas técnicas de visualização inspiradas pela perspectiva e desenvolvidas a partir dos anos 1470 na comuna de Urbino, na Itália. A outra, pragmática. Decorre do fato de que os dados apenas cartográficos não são suficientes para o bom planejamento de futuras operações pelas tropas coloniais. O pincel do artesão que pinta o panorama é orientado pelas pinturas artísticas que têm o horizonte como limite da experiência visual, pelos meticulosos desenhos militares de terreno e pela representação realista do espetáculo grandioso da paisagem. O vocábulo panorama continua a ser usado à época da fotografia, como atestam o Panorama da Baía de Guanabara (ca 1885) e o Panorama do Centro da Cidade (ca 1890), ambos do franco-brasileiro Marc Ferrez, hoje no Acervo do IMS. Ou a recente série fotográfica da
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artista Mariko Mori, intitulada Beginning of the end: past, present and future (1995-2000). A japonesa clicou belíssimas vistas em 360° de onze cidades representativas do passado, do presente e do futuro da humanidade. Desde 2009, o Departamento de Polícia de Nova York usa a câmara Panoscan para captar imagens em 360° de cenas de crime. Servem elas para imergir o perito policial no acontecimento (New York Times, 22/7/2009). Relançada por Oliver Grau, a pesquisa sobre panoramas nos séculos XVIII e XIX foi complementada em 2011 pelo livro The first panoramas: Visions of British Imperialism, trabalho impecável de Denise Blake Oleksijczuk, publicado pela editora da Universidade de Minnesota. Ao deliciar-se com os panoramas pintados, o espectador recebe um aprendizado cosmopolita. Desde o século XVIII, sua experiência de mundo passa a ser dupla: a do dia a dia (aqui e agora) e a do saber proporcionado pela imersão na cena representada (lá e então). Dessa forma, cauciona-se a formação moderna de novas “identidades”, que serão reativadas pela futura voga do cinema e da televisão. A duplicidade espacial e temporal leva Denise a se interessar por quem vê o panorama e pelo modo como é visto. A pintura estimula o espectador a produzir novos significados, com que se identifica. Ele ignora que já estão previstos pelo discurso da arte renascentista e da guerra colonial. Por o panorama representar terras e povos além das fronteiras europeias, o público incorpora ao léxico mental noções concretas sobre etnia (então compreendida pelo conceito de “raça”), sobre gênero (construção de um Ocidente masculino e de um Oriente feminino) e sobre hierarquias sociais. Por representar o uso de força militar pelo império britânico durante as guerras napoleônicas, o panorama de Barker mostra a nação como candidata ao poder mundial. A ambição colonizadora do Reino Unido se trai pelas vitórias contra as tropas de Napoleão. Ao visitar o panorama que reproduz a batalha de que sai vitorioso, Lorde Nelson diz a Barker que está em dívida para com ele. O panorama “mantém a fama de sua vitória na Batalha do Nilo por um ano a mais do que ela teria durado na estima do público”. Por o corpo do espectador responder de modo sensual e visceral ao estímulo do panorama, sua imaginação confunde ver, ler e saber. É ainda atual o depoimento de um deles, que descreve a desorientação por que passa: “eu oscilava entre realidade e irrealidade, entre natureza e não natureza, entre verdade e aparência. Pensamentos e espírito eram guiados em obediência ao balanceio de um lado para o outro, como se estivesse caminhando em círculos ou bamboleando num barco. Assim é que explico a tonteira e o mal-estar que o espectador despreparado sente face ao panorama.”
Caos e classicismo: 1918-1936
primeira metade do século XX permanecia como a época em que as vanguardas tiveram controle e domínio sobre a produção artística europeia e mundial. Gerados a partir das vésperas da Primeira Grande Guerra, futurismo, expressionismo, cubismo, dadaísmo e outros movimentos artísticos se afirmaram através de “manifestos” rebeldes ou anarquistas que, divulgados da Europa para as nações periféricas, se reproduziram em outros importantíssimos manifestos e movimentos artísticos de vanguarda, de que é exemplo o nosso modernismo. Gilberto Mendonça Teles compilou os manifestos canônicos originados nas hoje chamadas vanguardas históricas e os publicou na antologia Vanguarda europeia e modernismo brasileiro (Vozes, 2009). Consumado o clima de morte e horror prevalente durante a Primeira Grande Guerra, artistas e teóricos da arte passam a discordar do controle e do domínio exercidos pela vanguarda sobre o grosso da produção artística europeia. Jean Cocteau é um dos que mais esbravejam. Haja vista a primazia das estátuas gregas em Sangue de um poeta (1930), filme dedicado à memória de Paolo Uccello e Piero della Francesca. O “rappel à l’ordre” (trocadilho com o termo jurídico “a ordem do dia”), de que fala Cocteau, coloca em pauta o retorno à arte moderna das imagens harmoniosas e perfeitas do classicismo grego e renascentista. (Lembrese que no “Manifesto futurista”, de 1909, Marinetti havia assentado que o automóvel de corrida “é mais belo que a Vitória de Samotrácia”.) Paradoxalmente, o cubista Pablo Picasso é um dos mais legítimos tribunos na ordem do dia clássica e neoclássica. Considerem-se o quadro La source (1921) e as réplicas de Ingres. Foi essa a tese desenvolvida com talento e erudição por Kenneth E. Silver em Esprit de corps: The art of the Parisian avant-garde and the First World War, 1914-1925 (Princeton, 1992), cuja edição se encontra hoje esgotada. Em 2010, Silver energiza o fluxo da contracorrente aberta pelo livro e alvoroça os arraiais artísticos nova-iorquinos. Primeiro, amplia o campo de trabalho para a Alemanha e a Itália. Segundo, destaca o modo como a estética clássica, posterior à Primeira Guerra, é apropriada tardiamente pelos artistas fascistas e nazistas. Nela se banham a fim de realçar o cenário pomposo e civilizado que escamoteia as atrocidades que, às vésperas da Segunda Grande Guerra, estão sendo cometidas por Mussolini e Hitler. Como curador da exposição Chaos & Classicism (1918-1936), Silver povoa com mármore, metal e imagens cinematográficas a interminável rampa circular do Museu Guggenheim em Nova York e recobre suas paredes com tons vermelhos e pastéis. A exposição se abre com Guerra, quinze gravuras de Otto Dix, combatente e artista pacifista alemão. Através da lembrança de corpos mutilados a conviverem com cadáveres em decomposição, vermes, lama e armas letais, Dix expressa o lamento de testemunha raivosa e involuntária do conflito bélico. Perversamente, Chaos & Classicism se fecha com o Prólogo ao
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filme Olympia (1936), dirigido por Leni Riefenstahl. Ao final dos minutos iniciais, hoje com trilha sonora tomada a Vangelis, – a montagem sobrepõe à escultura Discóbolo, do grego Míron, imagens replicantes de atletas alemães contemporâneos. À porta do forno crematório, o Terceiro Reich e as ruínas espetaculares do Pártenon se harmonizam no elogio da performance desportiva. Já à venda nas boas livrarias brasileiras, o catálogo editado pelo Museu reproduz os trabalhos expostos. Estes se fazem acompanhar de ensaio recente de Silver e de estudos por três colegas seus. Os artistas que pregam o retorno ao ideal clássico se definem como detratores da vanguarda futurista e expressionista. Retorno ao ofício (Ritorno al mestiere), ensaio de Giorgio De Chirico de 1919, tem grande repercussão na própria Itália e na Alemanha. Nele, aconselha o principiante a ter como modelo as estátuas clássicas. Ao reproduzi-las no papel, o jovem “aprende a nobreza e a religião do desenho”. Se por acaso não tiver a oportunidade de ir a museu, aconselha o pintor dublê de ensaísta, “compre uma reprodução em gesso e, no quarto, copie-a dez, vinte, cem vezes”. A teoria se faz prática no quadro Autoritratto (1922), onde De Chirico exerce dupla e notável maestria sobre a tela bidimensional e a perspectiva. Pintado à esquerda, o busto esculpido de De Chirico olha à direita o rosto do artista também pintado, realisticamente. Este não tira os olhos do espectador. A significativa troca de olhares leva por título Se ipsum (O próprio, em latim). Ensaio e quadro servem para Silver assinalar o modo como a escultura se torna forma nobre nas artes entre as duas guerras. Em pleno domínio do espírito de vanguarda, a opção pelo ideal clássico se expressa na pintura por figuras humanas escultóricas (analisem-se as telas de Fernand Léger e Balthus), e tem o final aterrador nas imagens modelares e plácidas do filme Olympia. Se Otto Dix é testemunha involuntária do caos bélico e De Chirico, crítico demolidor do vale-tudo vanguardista, é o pintor francês Amédée Ozenfant (1886-1966) quem dá os primeiros passos em direção a uma cultura pós-bélica que, por repelir a lembrança, se afirma conscientemente a favor do esquecimento. Em companhia do futuro Le Corbusier (então Charles-Edouard Jeanneret), Ozenfant baliza a reviravolta em Depois do cubismo (1918). Ali se lê: “A guerra termina, tudo se organiza. Agora, só a ordem e a pureza iluminam e orientam a vida.” Criava-se o movimento purista e, em 1920, fundava-se a revista L’esprit nouveau , que repercutiu positivamente no Brasil. Mário de Andrade é leitor apaixonado da revista, como atestam os sucessivos cotejos analisados por Maria Helena Grembecki em Mário de Andrade e L’esprit nouveau (IEB/USP, 1969). No prefácio ao livro, Antônio Cândido reitera o papel exercido pela revista francesa na formação das ideias estéticas de Mário. Abrem-se outros caminhos na pesquisa sobre os primórdios da vanguarda brasileira.
Readymade feito à mão
m The First Pop Age (Princeton, 2012), Hal Foster revisita a Arte pop com o fim de demonstrar que a crítica deve comprometer-se hoje com uma leitura formalista daquela inesgotável produção artística. E ser menos sensível aos efeitos de conteúdo gerados por ela junto aos que lhe foram contemporâneos e eram politizados. Foster rejeita a valorização da Arte pop por ela reduplicar o fato real (sociedade do espetáculo) ou o produto industrial comercializado (sociedade de consumo), a fim de singularizar as técnicas artísticas de mediação que fundam a avaliação estética. A mediação é de responsabilidade do paparazzi e do publicitário, que clicam e liberam imagens ao público, e também do artista, que entrega a tela pintada ao mercado de arte. Segundo Foster, a Arte pop armazenou mudança significativa nas técnicas de produção da imagem que está à espera do lugar que de direito merece na história da pintura teorizada a partir da “grande tradição da arte”, para retomar F. R. Leavis. Nem criador romântico nem engenheiro racional, o artista pop é um experiente designer − alguém que se especializa na aparência (look) das coisas. Hal Foster, o crítico jovem e atuante dos anos 1970, se traveste hoje de historiador e teórico da arte. Ao pautar imagem e subjetividade como temas, o antigo instrumental sociológico cede a vez ao estético/psicanalítico. Desde a bela capa do livro, Foster destaca o britânico Richard Hamilton (1922-2011). É ele quem transita da técnica de colagem, explorada pelo Independent Group inglês, para a pintura tabular, fundamento da estética pop. Destaca-o e privilegia os experimentos intitulados Swingeing London 67, onde o artista ofusca a foto original (Mike Jagger e Robert Fraser presos e algemados por posse de droga) para se entregar ao trabalho de arte, onde afloram reminiscências do afresco A expulsão do Paraíso, de Masaccio (1424). Ao analisar Hamilton, Foster mira menos o escândalo rock & roll do que o modo pelo qual a prisão em flagrante lhe chegou e chegou a nós, mediatizada pela foto e pela arte. Acontecimento é imagem. Há uma imagem primeira a ser elaborada e transformada em várias e sucessivas imagens segundas. Foster desata os nós para, ao ritmo pop, reatá-los ad infinitum. O efeito do fato fotografado e difundido pelos tabloides explora a revolução comportamental em curso e é diferente do efeito estético alcançado pelos trabalhos feitos à mão por Hamilton a partir da foto chocante. Como mediação, a foto liberou o flagrante e confundiu o paparazzi e o artista, mas não se confunde com o trabalho singular de Hamilton. Mediação é palavra-chave e conceito ambivalente na leitura de Foster. É a palavra/conceito que, discursiva e teoricamente, desata foto e pintura para reatá-las em outro plano, onde impera o contrassenso a que Foster chama, somando Marcel Duchamp a Brian O’Doherty, de “handmade readymade” (readymade feito à mão). A mediação confunde o mecânico (foto) e o manual (pintura) para distingui-los. Boicota a
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crítica à cumplicidade ideológica da Arte para discursar teoricamente sobre a subjetividade na sociedade do espetáculo e de consumo. Descuida-se da contemplação para focar a distração. Baixa é alta cultura, sem ser de todo alta nem de todo baixa. A mediação desova híbridos, exibindo-os nas galerias e museus. O readymade feito à mão está na base do florescente mercado de Arte. Na narrativa de Foster, a mediação tem, pois, um fim que é explicitado todo o tempo: o artista pop trabalha com vistas ao quadro (tableau) como suporte para a pintura. Eis a razão pela qual, durante o transcorrer do livro, Hal Foster evoca a tradição da arte clássica e da vanguarda histórica para analisar os trabalhos dos artistas pop Richard Hamilton, Roy Lichtenstein, Andy Warhol, Gerhard Richter e Ed Ruscha. Para quem se interessa pela arte brasileira, o novo livro de Foster abre uma brecha por onde se enxerga a personalidade única de Hélio Oiticica, a lançar os Parangolés a partir de 1965. Em lugar de enquadrar a foto à estética do quadro, trabalho perseguido a duras penas por Foster, Hélio tinha se descondicionado do próprio e originalíssimo passado, onde imperou o quadro como suporte para o abstracionismo geométrico, a fim de se adentrar por propostas experimentais da cor no espaço e no corpo em movimento do espectador. Segundo o artista, os Parangolés devem ser associados à “experiência de estrutura-cor no espaço”. Eles desvencilham a arte de Hélio do quadro sem decretar a morte da pintura. Pelo contrário, o fim do quadro é “a salvação da pintura”. Esclarece ele: “a pintura teria de sair para o espaço, ser completa, não em superfície, em aparência, mas na sua integridade profunda.” E, ao se distanciar da “nova figuração”, Hélio pondera: “Na verdade a desintegração do quadro ainda é a continuação da desintegração da figura, à procura de uma arte não naturalista, não objetiva.” Duas outras brechas. Talvez os poetas concretos paulistas estejam mais próximos da Arte pop, tal como defendida por Hal Foster. Por não terem abandonado o retângulo da folha de papel, insistiram em suporte semelhante ao quadro para as palavras. A leitura do capítulo 5 de The First Pop Age, dedicado à pintura de Ed Ruscha, designer de palavras, seria de grande proveito. Já quem ganha crédito como legítima herdeira da estética pop no Brasil é Adriana Varejão. Suas apropriações em pintura das “figuras de convite”, tomadas à azulejaria senhorial portuguesa, e do “mapa de Lopo Homem”, portulano renascentista, assinalam, por um lado, uma guinada delicada na raivosa atitude antropofágica dos anos 1920 e, por outro, são exemplos redivivos da tradição pop − do readymade feito à mão. De proveito seria a leitura dos capítulos 2, sobre Roy Lichtenstein, e 4, sobre Gerhard Richter.
Memória versus esquecimento
e um desabafo confessional, em que o crítico de arte relata o terrível acidente vascular cerebral (AVC) sofrido, brota um ensaio denso e raivoso sobre seis artistas exemplares da cena contemporânea. Esse é o duplo e notável estatuto do livro Under blue cup (MIT, 2011), de Rosalind Krauzs, decana dos críticos de arte norte-americanos. Em fins de 1999, Rosalind abandona o exercício profissional. Sofre um aneurisma que desconecta sinapses e varre neurônios. Depois de três neurocirurgias, enfrenta um programa de reabilitação física e cognitiva. O intuito é o de fortalecer a memória em curto prazo. A recapacitação física requer a atleta. Tem de aprender a “saltar por cima das poças” (das lesões no cérebro). A cognitiva leva à recuperação da memória pelo uso de fichas (flash cards, no original). Nelas, estão pedaços desordenados de frase ou simples desenhos. Depois de 20 minutos, a paciente tem de se lembrar do lido ou visto. A primeira das fichas trazia escrito “under blue cup” e dá título ao conjunto das anotações críticas que visam a explorar o paradigma da memória versus o esquecimento na arte do presente. Oponente do “espetáculo de meretrício artístico chamado instalação”, Rosalind ridiculariza Catherine David e o “moralismo político” que a curadora encenou em Documenta X (1997). Ao ridicularizá-la, acata a teoria desenvolvida por Jean-Luc Nancy em Les muses (1994). O filósofo francês pergunta por que existem várias musas (várias artes) e não apenas uma. Ao optar pelo coletivo, Nancy postula que a manifestação artística se define pelo “singular plural”. Vários suportes estéticos convivem na obra e alavancam o singular arte. Cada um deles encaminha o trabalho artístico único. Sob o manto plural das musas, a arte é singular. Em mãos de Rosalind, a proposta de Jean-Luc Nancy tem alvo. Visa a dinamitar o princípio da “especificidade” de cada uma das musas (de cada meio artístico), defendido pelo crítico Clement Greenberg. Como meio (medium), a pintura teria suas regras próprias e intransferíveis, e por elas seria analisada. Também a escultura e o desenho. Ao detonar o “dogma reducionista” de Greenberg, que isola artesanal e semanticamente cada meio, Rosalind busca abrigo nas regras multifacetadas das guildas medievais, época em que os vários artesanatos eram compreendidos pela complementaridade. Os “suportes estéticos” estabilizam e reativam o diálogo entre as várias artes no objeto único que o artista produz, aliviando-o da inflexibilidade do específico. Meios diferenciados (pintura, escultura, desenho etc.) “inventam” o trabalho de arte singular/plural. Antes do “modernismo tardio”, de que é teórico Greenberg, a vanguarda já era singular/plural. Marcel Duchamp, por exemplo, recorria a suportes estéticos imprevisíveis. Põe em xeque o estatuto da arte sem examinar a especificidade da pintura, ou da escultura. Ao renegar o “modernismo tardio”, o artista atual opera também um deslocamento significativo
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no tipo de suporte eleito pelos vanguardistas. Acrescenta ao elenco dos suportes estéticos o “técnico”. Os suportes técnicos são tomados das formas disponíveis da cultura de massa: vídeo, desenho animado ou filme, automóvel ou jornalismo investigativo. O suporte técnico torna o específico de cada meio (de cada musa) sem serventia para o artista atual. A partir da especificidade obsoleta, o artista neutraliza o império teóricodiscursivo assumido pela noção ditatorial de meio (medium). Daí decorre que as obras analisadas por Rosalind trabalhem a arte pelo recurso à multiplicidade de meios. Eles se valem de “suportes técnicos” variados. Orientam a época atual e a definem como a da “condição pós-meio” (post-medium condition). O vídeo Ubu diz a verdade, do sul-africano William Kentridge, combina imagens de filmes documentários com fotografias, marionetes e desenhos do artista. Kentridge reativa o conjunto heterogêneo pela técnica do cinema de animação. Expõe um desenho animado. O alvo de Ubu diz a verdade é a Comissão Verdade e Reconciliação. Na África do Sul, a infração aos direitos humanos, se confessada, é esquecida. Como, por que e para que relembrá-la? No mapeamento da cidade, o artista pop Ed Ruscha transforma o automóvel em suporte técnico. Nas fotos reunidas no livro 26 postos de gasolina, o carro serve de dolly para o traveling cinematográfico da viagem na memória. À semelhança dos atuais DJs, o californiano Christian Marclay usa bolachas e toca-discos em busca de colagens sonoras, explorando também a sincronização das trilhas sonoras de filmes comerciais. Por 24 horas, seu filme O relógio compila cenas de filmes relacionadas com a passagem do tempo. O irlandês James Coleman apresenta suas fitas de slides (uma versão primitiva do Power-Point) em que o sujeito do trabalho não é a imagem, mas o próprio processo de ver. O sujeito é desconstruído (rasurado) e reconstruído (relembrado). Em caminhadas gravadas em vídeo, Bruce Nauman recorda o tema da promenade na arquitetura moderna. Sophie Calle parodia o jornalismo investigativo. Ao passar as páginas de um livro, o belga Marcel Broodthaers mostra imagens sucessivas de iate que navega. O vídeo do livro é história da arte: abre-se pelas marinhas de Manet e prossegue na exaltação do velejar pelos impressionistas. Os exercícios sobre imagem e som do alemão Harun Farocki têm como ateliê a ilha de edição (v. o vídeo Interface). O suporte técnico não é só um meio; é uma regra. Uma regra que se adéqua ao meio que o artista “inventa” e o fortalece. O artista comuniza as várias regras para inventar um denominador comum, um meio singular/plural. Um meio pós-meio. Under blue cup traz a proposta de uma bela e exigente curadoria, inventada pelo paradigma da memória versus esquecimento.
Ficção teórica
m dos conceitos originais inventados por Aby Warburg (1866-1929), teórico e historiador da arte germânico, é o de “ficção teórica”. Para compreendê-lo na sua complexidade é aconselhável se instruir – e nos instruímos − no estudo pioneiro da obra intitulado Aby Warburg et l’image en mouvement , escrito pelo francês Phlippe-Alain Michaud. A primeira edição do livro data de 1998. Em 2012, a editora Macula (Paris) relança-o em versão revista, corrigida e aumentada, sempre com o prefácio consagrador de Georges Didi-Huberman. O estudioso da arte da Renascença ensaia de maneira furtiva e subterrânea os primeiros passos em direção à ficção teórica, passos precursores dos dados por Jorge Luis Borges ao escrever o conto “Pierre Ménard, autor do Quixote”. Em 1895, logo depois de publicar o livro Sandro Boticelli, o nascimento de Vênus e a primavera (KKYM, Lisboa, 2012), Warburg viaja aos Estados Unidos, detendo-se nos estados do Arizona e do Novo México. Visita as comunidades Pueblo de indígenas, localizadas na região espanhola do país. Desenhos, fotos e anotações ficaram armazenados na memória do viajante por três décadas. Só comparecem em 1923, quando o especialista na Renascença florentina pronuncia uma conferência no recinto da clínica psiquiátrica Bellevue (Suíça). Desde 1921, lá estava internado como esquizofrênico, aos cuidados de Ludwig Binswanger, correspondente de Sigmund Freud. Em 2011, a editora Macula formata em livro a curta conferência de 1923 − Le rituel du serpent. Faz preceder o texto de uma esclarecedora introdução por Joseph Leo Koerner. Cada passo de Warburg em direção aos índios Pueblo corresponde a um passo atrás no calendário. Retorno da cultura à natureza e, em trânsito pelo ritual, volta da arte ao sacrifício. No sudoeste norte-americano, Warburg descobre a dança da chuva. Dela faz uma leitura que remeterá à sua própria condição de convalescente na clínica suíça. Sobreviventes em região desértica, os indígenas amansam a cascavel que, durante o ritual, trarão na boca. Domar a serpente venenosa é controlar a chuva e a morte, pois o réptil, tal como reproduzido em zigue-zague na cerâmica local, transfigura-se em símbolo eficaz a produzir relâmpagos nos céus. Sem a água da chuva não há produção de milho. As bocas morreriam famintas. No plano da dança ritual, a cascavel é veneno e remédio. Na escrita de Warburg, é doença e terapia e explicita ainda a arriscada estratégia teórica que se pronuncia na conferência tardia. O argumento desenvolvido por Warburg diz que a angústia dá origem a símbolos que, por sua vez, engendram o pensamento. Ao tomar posse deste, o convalescente atinge o estado de clareza, serenidade e distanciamento (nomeado pelos gregos como sophrosyne), que os psiquiatras de Krenzlingen enaltecem como expressão da saúde mental. A escrita da conferência leva o autor enfermo à cura pelo objeto em análise. Chega a
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perguntar se os índios são “esquizoides” e o que significaria viver num “estado misto” entre delírio e razão. Ao serem explicadas, as imagens irracionais do ritual Hopi servem de ferramenta terapêutica a Warburg, já que assentam os fundamentos duma “mestria de si mesmo” (techne tou biou), para acertar o passo com Michel Foucault. O corpo reclama os seus direitos no exercício do pensamento e é também escrita. O lance mais audacioso da conferência, ou da ficção teórica que ela desenvolve, está na passagem em que Warburg, baseando-se em fotografias que capturaram o ritual da serpente no pueblo Oraibi (Arizona), pega o trem da memória e viaja de volta aos estudos sobre a arte europeia. Observa que tanto a origem do culto dionisíaco da serpente na Grécia quanto a do culto da serpente satanizado no Velho Testamento são de natureza sacrificatória e que os povos do Ocidente – à semelhança dos índios Pueblo da América do Norte (que estão mais a oeste que o Ocidente) − exprimem a passagem do sacrifício à arte recorrendo à imagem da serpente. Warburg importa o Ocidente clássico para fotografar as imagens sacrificiais da dança da chuva no Novo México e no Arizona. Exporta o Novo México e o Arizona para fotografar as imagens artísticas do Ocidente dionisíaco e cristão. O bônus – dado de presente por Michelangelo – é a revisita à Renascença florentina. Examina no Museu do Vaticano a escultura grega em que Laocoonte e seus dois filhos são estrangulados por serpentes marinhas. São equivocados os julgamentos críticos que consideram O ritual da serpente como um documento antropológico frustrado. Escrevendo-o, Warburg não quer compreender a dança da chuva como objeto singular e específico, nem visa a estabelecer a serpente como invariante ou arquétipo. Desenvolve uma interrogação reflexiva, em aberto, sobre os mecanismos do conhecimento e do pensamento em imagens. Elabora método e estilo novos de escrever a história da arte. A ficção teórica “transforma o saber em rito de orientação”. Produz efeitos. Transmite ao leitor efeitos de superposição e de deslocamento imaginários de imagens. Leiam-se os intervalos. O ritual da serpente é a chave para entender que, no caso de Warburg, a história da arte não almeja ser discurso. Nela, afirma Philippe-Alain Michaud, a alteridade entra no coração da identidade. A teoria é o entre-lugar ficcional que reposiciona as imagens do Novo Mundo no Ocidente e as deste nas Américas. Os trópicos não são tristes. Tornaramse tristes. Na obra de Warburg, a história da arte busca a condição de cenas filmadas no espaço da biblioteca. Pouco antes de falecer, Warburg apresentou na Bibliotheca Hertziana, em Roma, o projeto duma história da arte sem texto. Um “atlas de imagens”, a que deu o nome de Mnemosyne (memória). O historiador e teórico monta (no sentido fílmico do verbo) as imagens de uma história da arte, que será exibida em folhas ao espectador.
Renascença: movimento e gestual
m texto anterior, vimos que a abertura da história da arte à antropologia leva Aby Warburg (1866-1929) a criar o conceito de “ficção teórica”. Ao acolher objetos inesperados, de que é exemplo a “dança da chuva”, ritual cultivado pelos índios do sudoeste norte-americano, a história da arte ocidental se desestabiliza. Leva-o, também, a inaugurar na teoria historiográfica a possibilidade de se franquear o conceito unívoco de tempo a tempos múltiplos e coextensivos. E ainda a propor uma ideia de história que escapa às noções evolutivas de origem e de influência. E outra, de estética, que dribla as noções de protótipo e de invariante. Desclassifica a concepção clássica de imitação e propõe a de “sobrevivência”. Datado dos anos 1920, o último projeto radical de Warburg oferece uma história da arte sem palavras. Nela, os objetos circulam como cenas de filme, ao ritmo da memória do erudito, e são lidos nas brechas abertas pela sucessão das imagens num atlas bibliotecário. Este é produto da montagem heterodoxa de reproduções fotográficas de obras, de recortes de jornais, de desenhos e anotações etc. Ao atlas deu-lhe o nome de Mnemosyne (memória). Warburg inventa uma “iconografia dos intervalos”, para retomar expressão de Freud em carta a Fliess (16/4/1896), “nosso reino é o do entre-lugar”. Para se compreender o percurso da “dança da chuva” até o atlas de imagens, recuperemos o início das análises iconográficas de Warburg sobre movimento e gestual, expostas na leitura que, no contexto da Renascença florentina, faz de duas telas de Sandro Botticelli (1445-1510). Lamentavelmente, pouco de Warburg está traduzido ao português. Em 2012, saiu em Lisboa O nascimento de Vênus e A Primavera de Sandro Botticelli (KKYM, 14 euros). A esse estudo, datado originalmente de 1893, nos reportaremos a partir de agora. Warburg privilegia como interlocutor o historiador da arte Johan Joachim Winckelmann (1717-1768). Para contradizê-lo. Winckelmann tornara-se a principal referência nos estudos renascentistas graças ao celebrado Reflexões sobre a imitação das obras em pintura e em escultura (1755). Neste, enuncia fórmula que se tornaria canônica em história da arte. O que distingue as obras de arte gregas é “uma nobre simplicidade e uma grandeza serena, tanto na atitude [das figuras humanas] quanto na sua expressão”. Para robustecer sua inclinação pelo caráter apolíneo da arte grega, tal como imitada pelos modernos, recorre à imagem marítima: “Da mesma forma como as profundezas do mar, por mais furiosa que esteja a superfície, permanecem todo o tempo calmas, também a expressão humana nas figuras dos gregos − mesmo no âmago das paixões − mostra sempre uma alma grande e igual.” A imagem marítima visa a traduzir a vitória do êthos (autocontrole racional sobre paixões, inclinações e afetos desordenados) sobre o páthos (qualidade do que é nitidamente emocional e
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transiente). Didi-Huberman detecta que, na teoria winckelmanniana, não se imitam os objetos artísticos da antiguidade. Imita-se o belo ideal. Na arte grega e na moderna, Apolo desbancava Dionísio. Influenciado talvez pelo Nascimento da tragédia (1872), de Nietzsche, e prenunciando a leitura feita por Freud da novela Gradiva, de Jensen (1907), mas certamente como resultado da sua observação erudita e aguda de detalhes originais em obras de arte florentinas, Warburg retoma a questão da antiguidade clássica pela sua “sobrevivência” (nachleben). Ou seja, pelo modo como os artistas florentinos, ao se expressarem nas suas obras pelo movimento e pelo gestual humano, ganham voz própria. Figuração e corpo humano se entregam, pois, ao páthos. E não ao êthos. Pela análise micro das obras renascentistas, pelo páthos nelas evidente, Warburg desconstrói o sentido da “imitação” winckelmanniana. Não é o corpo imóvel e bem equilibrado que leva a antiguidade clássica a “sobreviver” entre os modernos. É antes o corpo instável, tomado pelo poder incontrolável das forças da natureza e da subjetividade em crise. Daí as figuras de gestos em luta, retorcidos, ou sob o peso da dor; daí a cabeleira desalinhada e as roupas despegadas e flutuantes, agitadas pelo vento ou pela correria. Pela “sobrevivência”, o artista moderno se identifica com a antiguidade clássica em diferença. Daí o privilégio concedido por Michelangelo a Laocoonte e seus filhos. Na tela O nascimento de Vênus, destaca-se o modo como Botticelli, graças à representação do movimento, faz as aparências de cena mitológica sobreviver. Na mitologia encontrou um repertório inesgotável para representar a energia em seu devir. O modelo espacial fornecido pela escultura grega é substituído por modelo tomado à dança, que acentua a dimensão temporal e cênica da representação pictórica. A substância do quadro A primavera, ainda de Botticelli, não está associada à estabilidade da figura central, o que resultaria num privilégio concedido ao ser, em detrimento do seu devir. Ao elaborar a obra, o artista impulsiona forças que, por não invocarem a coerência da harmonia, trabalham a contradição, que desestabiliza a figura humana. Não a congrega, desagrega-a. Fragmenta-a. Estilhaça-a. A divindade serena e apolínea − cânone para a teoria que referendava a imitação pelo belo ideal − se transforma em mênade. Em bacante. Em mulheres de gestos convulsivos, tomadas por sentimentos e paixões violentos. Lê-se em Warburg: “Aparecidas pela primeira vez nas obras de Donatello e de Fra Filippo, as mênades dançarinas, conscientemente imitadas, redefinem o estilo antigo e exprimem uma vida cheia de movimento: a vida que anima Judite, o anjo Rafael que acompanha Tobias ou ainda a Salomé dançarina, ou essas figuras aladas que, dos ateliês de Pollaiulo, de Verrocchio, de Botticelli ou de Guirlandaio, ganharão as alturas.”
Maravilhas em cera de abelha
s que amam a história da Renascença florentina estão a par dos acontecimentos que cercam o atentado contra Lourenço de Médici, em abril de 1478. Durante missa na Catedral metropolitana, os dois irmãos Médici são apunhalados. Juliano, seu colaborador no governo, é assassinado por Francisco Pazzi. Refugiando-se na sacristia, Lourenço sai apenas ferido. No atentado, os banqueiros da família Pazzi, inimigos dos Médici, contaram com a cumplicidade do arcebispo de Florença e até do papa Sisto IV, figura já suspeita por ter formalizado tanto a Inquisição espanhola quanto as descobertas de terra pelos portugueses. Também estão a par da repressão levada a cabo pelos aliados dos Médici, que fecha o conflito sangrento entre banqueiros rivais pelo poder em Florença. Na tarde de abril de 1478, com o pescoço envolto em curativo e com as roupas esfarrapadas e cobertas de sangue, Lourenço, o Magnífico, aparece no balcão do Palácio dos Médici. “Meus ferimentos não são graves”, esclarece. Aconselha calma à multidão e pede clemência para os conspiradores. Os que amam a história da Renascença florentina talvez não estejam a par do fato de que familiares e amigos dos Médici encomendam ao artista Orsino Benintendi (futuro responsável pela famosa máscara mortuária do governante) três imagens votivas de Lourenço, esculpidas em cera e no tamanho natural. Três ex-votos, três “voti in figura”. Junto às massas, o realismo da efígie em cera (“pare veramente più che vivo”), aliado à eleição da mídia popular, atesta a favor das graças recebidas de Deus pelo governante. Manchadas de sangue e dilaceradas pelo punhal assassino, as roupas do Magnífico vestem um dos três ex-votos. Sabe-se que foi o que ganhou lugar no convento Santa Regina Coeli, ao lado do milagroso Crucifixo pertencente ao beato Chiarito. A segunda efígie é confiada à Igreja da Santíssima Anunciada, cujo átrio já estava entupido por uma variedade infinita de esculturas em cera, e a terceira, enviada a uma basílica de Assis. Os que amam a história da Renascença florentina não estariam a par (et pour cause…) do chocante silêncio que recobre as peças esculpidas em cera naquele período. O historiador da arte Giorgio Vasari (1511-1574) é praticamente a fonte única, só retomada em 1910/11 por Julius Von Schlosser com História da retratação (Porträtbildnerei) em cera, ensaio hoje clássico. O escandaloso intervalo de quatro séculos emudece o surgimento, o apogeu e o desaparecimento das peças artísticas esculpidas em cera. Na modernidade, Aby Warburg conjeturou que no silêncio intervalar estaria o “elo perdido”, que ata a Antiguidade clássica à sua “sobrevivência” (Nachleben) no século XV florentino. O silêncio recobriu a avaliação justa e a apreciação estética do volumoso artesanato em cera. Refiro-me a efígies, esculturas de animais, modelos para conjuntos em mármore, como
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no caso de Michelangelo etc. Sucessivos incêndios estão por detrás do desaparecimento da maior parte dos acervos em cera e do silêncio crítico. Um dos mais trágicos ocorreu em 1630 na Igreja da Santíssima Anunciada. Inventário feito naquele ano diz que lá estavam encasteladas mais de 600 figuras em cera, muitas no tamanho natural. Devido aos incêndios e ao desgaste no tempo, as magníficas esculturas renascentistas derretem literalmente. Voltam a ser cera e, a partir de 1786, alimentam definitivamente a produção de velas votivas. A ceroplastia fora expulsa do campo das belas artes. Cede o lugar prestigioso às peças vazadas em bronze. Os historiadores da arte saudaram com entusiasmo um simpósio organizado pelo Getty Research Institute de Los Angeles, no ano de 2005. O tema proposto, “Duração”, privilegia a cera de abelha, único material escultórico natural e, por isso, maleável e perecível, voluptuoso na textura e frio ao tato. E traz à baila uma notável produção florentina, em vias de desaparecimento eterno no século XX, não fossem as pesquisas de Schlosser (o ensaio seminal mencionado acima é então traduzido pela primeira vez ao inglês) e de Warburg, retomadas por contemporâneos como o francês Georges Didi-Huberman. Privilegia a cera e contempla também as esculturas que, a partir do século XVIII, comunicavam com o ensino de anatomia, obstetrícia e patologia. Nos anfiteatros das Escolas de Medicina, os simulacros das entranhas humanas, em cera e em cores, driblavam a dissecção dos corpos. Pareciam “reais” e não expunham aos olhos a putrefação da carne. Não se sentiam as exalações fétidas dos cadáveres. Contempla ainda os acervos esculpidos em cera, que retratam as grandes figuras da história oficial e criminal para expô-las ao público, como o Museu de Cera Madame Tussaud, precursor da nossa estética pop. O tema proposto tem seu contraponto na contemporaneidade. Contempla os intrigantes retratos do fotógrafo Hiroshi Sugimoto, encomendados e expostos em 2000 no Guggenheim de Berlim. Toda a série de Portraits tem por modelo notáveis figuras da política e da arte − todas esculpidas em cera. Destaco hoje o estupendo retrato de Jean Harlow. Finalmente, articula as esculturas neovanguardistas em cera − como as do inglês John Isaacs, dos americanos Robert Gober e Kiki Smith, e do brasileiro Ângelo Venosa − com a história da arte. Nossos contemporâneos dialogam, por sua vez, com o escultor barroco Gaetano Giulio Zumbo (1656-1701) que, em cera, fez da arquitetura clássica moldura para a decadência física dos homens e as representações da carne doentia e moribunda. Essa profusão de temas instigantes e afins está à espera do leitor nos vários e diferentes ensaios acadêmicos lidos no simpósio “Duração”, hoje reunidos na coletânea Ephemeral bodies (Corpos efêmeros). Sob a supervisão da historiadora da arte Roberta Panzanelli, o livro foi publicado pelo Instituto de Pesquisas Getty.
Estar vivo aqui e agora
istantes no espaço e afastadas no tempo, três manifestações da arte de esculpir em cera merecem ser associadas hoje por uma leitura que eu diria pop e artesanal. Proporei como contexto o retorno do hiper-realismo à produção nossa contemporânea. Essa é a proposta da coluna de hoje, decorrente da anterior em que, com marco inicial nos primórdios da Renascença florentina, fizemos um levantamento do uso da cera de abelha como material escultórico identificado – até no uso metafórico da palavra – com a tonalidade da pele e o aspecto do semblante humano. A não esquecer que a expressão “estar fazendo cera” significa fingir: que se joga futebol de verdade ou se namora para casar. O potencial de verossimilhança da “cera” a favoreceu para se chegar ao naturalismo ilusório em escultura. As três associações serão feitas a partir de lugar e data. Florença, 1478. Depois do trágico atentado sofrido por Lourenço de Médici e o irmão na catedral Santa Maria del Fiore, Orsino Benintendi esculpe em cera e no tamanho natural três ex-votos do governante. Privilegia um deles, vestindo-o com as roupas esfarrapadas pelo punhal assassino dos Pazzi e cobertas de sangue. A efígie de Lourenço − “più che viva” − é depositada em igreja conventual da cidade. Passa a desfrutar dos ganhos políticos decorrentes da graça divina irradiada pelo Crucifixo milagroso do beato Chiarito, a seu lado. Paris, 1782. Como se inspirado pelo ex-voto de Lourenço, o escultor alemão Philippe Curtius inaugura no Palais Royal uma grande exposição de esculturas em cera. Destaque para a representação da família real francesa à mesa no Palácio de Versalhes, e para os bustos, entre outros, de Voltaire, Benjamin Franklin, Madame du Barry e da atriz Louise Françoise Contat. O escultor conta com discípula e auxiliar, Maria Grosholtz, filha da governanta da casa e futura herdeira de Curtius. Maria casa-se em 1795 com o medíocre François Tussaud, de quem herda apenas o sobrenome. O Salão de Cera Curtius − transferido depois da Revolução Francesa a Londres − passa a se chamar Museu de Cera Madame Tussaud, hoje visitado em 14 cidades do mundo. A busca da autenticidade levou o Museu a imitar o átrio da Igreja da Santíssima Anunciada em Florença. Por exemplo, as figuras de Robespierre e dos demais revolucionários foram esculpidas a partir de máscaras mortuárias feitas no Cemitério da Madeleine (hoje Capela Expiatória, no Square Louis XVI), para onde iam os guilhotinados. Em 1857, os Tussaud adquiriram a lâmina original da guilhotina acionada pelo carrasco Charles Henri Sanson. Contextualizemos os dois exemplos com expressões tomadas à crítica da época. “A figura humana em cera parece viver e respirar, só falta falar.” (Giorgio Vasari, séc. XVI) “O visitante já imagina que a boca de Voltaire vai-se abrir e proferir palavras.” (Cambridge chronicle, 1818) Londres, 1999. O japonês Hiroshi Sugimoto, “fotógrafo do século XVI” (sic), inspira-se na
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luz de que os pintores renascentistas se valiam para apreender modelos vivos, a fim de retratar as figuras expostas em tamanho natural no recinto do Museu de Cera Madame Tussaud. São personagens antigos e modernos da História e da Arte. Com um clique atemporal, Sugimoto pinta em preto, branco e cinza – sobre fundo negro − os modelos em cera fotorrealísticos inventados por Philippe Curtius e aperfeiçoados pela discípula Tussaud e seus descendentes. Nos portraits londrinos de Sugimoto o destaque vai para a série poligâmica que retrata − à maneira de Hans Holbein − Henrique VIII e as seis esposas. Os retratos de figuras históricas e modernas de Sugimoto fazem parte de um projeto itinerante do Museu Guggenheim, que começou por Berlim em 2000. Associemos os três casos. Atualizados em 1999 pelos retratos de Sugimoto, os ex-votos de Lourenço, o Magnífico, e as esculturas em cera do museu de Madame Tussaud podem e devem ser comparados às pinturas em silkscreen do pop Lewis Hamilton, Swingeing London (1967), que reproduzem – em sete versões diferentes − uma foto jornalística de grande impacto midiático. Nela estão retratados Mick Jagger e o marchand Robert Fraser presos e algemados no banco de trás duma radiopatrulha. Visivelmente constrangidos, escondem os respectivos rostos com as mãos. Jagger e Fraser estão sendo conduzidos ao Fórum de Clichester a fim de serem incriminados pela posse ilegal de drogas. Hal Foster, em The First pop age (Princeton, 2012), compara a pintura de Hamilton ao célebre afresco de Masaccio Expulsão do Jardim do Éden (1424). No entanto, seu raciocínio é diferente do nosso, apenas acentua a vergonha do ser humano ao ser expulso. Interessa-nos assinalar que, se a pop art nos seus primórdios – ao entrar em lua de mel com a cultura de massa − se distancia da “grande tradição em arte”, tal como estabelecida por F.R. Leavis e Clement Greenberg, também as três amostras elencadas acima se ressentiriam da condição de inferioridade caso os valores destes dois críticos ainda dominassem com exclusividade. Por outro lado, se o museu (no sentido oitocentista do termo) é a moldura que garante – como quis Michel Foucault na análise de Manet – o estatuto da Arte contemporânea, já nas três amostras vemos que o átrio de igreja florentina ou o salão (cabinet) de curiosidades londrino podem ser os bastidores por onde peças esculpidas em cera se adentram fotograficamente – como o urinol de Marcel Duchamp – para o palco e as luzes do prestigiado Museu Guggenheim. Mais do que o ex-voto de Lourenço, bem mais do que as esculturas de Madame Tussaud, ainda mais que a pintura em silkscreen de Hamilton, os portraits de Sugimoto descarrilham as teorias sobre o naturalismo ilusório, de que se valem os defensores dos meios técnicos de reprodução mecânica. É sempre bom saber – diz Sugimoto em paradoxo – “o que significa estar vivo aqui e agora”.
Jean Genet
o dia 19 de dezembro de 2010 comemorou-se o centenário de nascimento de Jean Genet, falecido em 1986. Por ser universalmente festivo, dezembro inibe reinações não previstas pelo calendário religioso e pelos balanços do ano. O notável e polêmico escritor francês teve o nome armazenado no freezer da história literária. Sua obra é vasta, complexa e de exegese difícil. Fascinante, caminha em ritmo transgressor pelo romance e a autobiografia, pelo teatro e o cinema. Em vez de peneirar farinha, açúcar e fermento para bater o bolo jovial do centenário, por que não festejar escritor e obra com um discreto e amigável sanduíche mistoquente? Comentarei o imprevisível e notável livrinho em que Genet narra suas visitas ao ateliê do escultor Giacometti (L’atelier d’Alberto Giacometti , com fotos de Ernest Scheidegger, 1958). No domínio da crítica de arte, o livrinho é peça tão especial quanto, no campo da crítica literária, as cartas trocadas entre os poetas Mário de Andrade e Carlos Drummond, hoje reunidas no volume Carlos & Mário. Os valores nobres do convívio humano são postos à prova. Sobressaem os sentimentos de simpatia e amizade, colocados acima da rivalidade e da emulação. A troca de experiências embasa o exercício da crítica. Por ter seu work in progress apreciado por olhos privilegiados, o criador se interroga sobre a própria criação. Todos lucram: o artista, o amigo e o leitor. Os dois gêneros de visita são semelhantes a um terceiro. Lembro-me das flâneries de André Breton, acompanhado do infalível Giacometti, pelo recinto do Marché aux Puces, em Paris. Poeta e escultor brincam de chicotinho-queimado com o Acaso. Os fados farão chegar às suas mãos algum objeto usado e insólito (readymade), que participará do processo de criação. Em Amour fou (1937), a ser lido ao lado dos dois livros citados, Breton narra a caminhada aleatória dele e de Giacometti pelos brechós parisienses e comenta: “O elo de simpatia que une dois ou vários artistas parece que ajuda a encontrar soluções que cada um, de per si, procuraria em vão.” No texto de Genet, Giacometti é homem alegre e afável, que se confunde com o chão de terra batida, onde pisa, e a terra cinza, em que molda a peça. “Como ficaria feliz o escultor, se pudesse reduzir-se a pó, a poeira!” Todo o ateliê é cinzento. Sua esposa, Annette, recebe ordem para não limpar a sujeira das vidraças. A pele enrugada do rosto sorri. Sorriem os olhos, também a testa plissada. Riem-lhe os dentes centrais espaçados e também cinzentos. Coça a cabeça cinzenta, desgrenhada. Arregaça as calças cinzentas caídas sobre os sapatos. De repente, um corte brusco no convívio amigável. Genet observa: “Dois segundos atrás, Giacometti sorria, mas eis que suas mãos tocaram uma estátua em busca de forma. Em meio minuto, ele está por inteiro na passagem que une os dedos à argila. Já não lhe interesso.” O escultor embute a afabilidade e a alegria na solidão escavada e, dominado por elas, focaliza “a
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ferida, que é única na origem de toda obra de arte”. A ferida, escondida ou visível, guardada e preservada por cada homem dentro de si, nela o artista se refugia ao trocar a vida social pela solidão temporária, mas profunda. Conclui Genet: “A arte de Giacometti parece querer revelar a ferida secreta dos seres e das coisas, para que seres e coisas sejam iluminados por ela.” Genet esclarece: “A solidão não significa, para mim, condição miserável, mas soberania secreta, nem incomunicabilidade profunda, mas conhecimento mais ou menos obscuro de singularidade irrefutável.” A solidão não é miserabilismo. Frente à escultura de mulher, os olhos do escritor se desviam e sua mão se projeta sozinha à caça de descobertas palpáveis: pescoço, cabeça, nuca, ombros… Fecha os olhos e toca o ombro. Custa-lhe descrever o bemestar da mão, confessa. Sensações variadas confluem para a ponta dos dedos. Alguém forte os guia e os apazigua. Continua: “Meus dedos refazem o percurso feito pelos dedos de Giacometti, mas enquanto os dele procuravam apoio no gesso úmido ou na argila, os meus determinam seu andar pelo caminhar único dos dedos dele.” A mão vive; a mão vê. “Giacometti, ou o escultor para cegos” – Genet decifra o enigma da criação. Não são os olhos de Giacometti, são suas mãos que fabricam os objetos, as figuras humanas. Ele não sonha a escultura. Sente-a com o tato. As mãos do escultor, o gesso e a marcha a ré anunciada pelas labaredas de fogo, eis o que ficará subentendido no diálogo seguinte. Giacometti pergunta a Genet: “Se vazadas em bronze, essas esculturas em gesso perderiam?” Responde ele: “Não. Não perderiam em nada.” O escultor insiste: “E ganhar, acha que ganhariam?” Genet hesita. E não hesita mais: “Eu não diria que as esculturas ganham e, sim, que o bronze ganhou. Pela primeira vez na vida, o bronze acaba de ganhar. As suas mulheres são uma vitória”, continua Genet com receio de levar bronca, “do bronze. Sobre o próprio bronze, talvez.” Meses depois, ao almoçar com JeanPaul Sartre, Genet repete-lhe a fórmula encontrada para explicar o sumiço dos dedos do artista e do gesso no fogo que funde o bronze. Sartre o consola. O achado crítico foi um presente dado ao escultor. E arremata, lembrando-se talvez das escapadas de Giacometti pelo Marché aux Puces em busca do readymade: “O sonho de Giacometti seria sumir-se completamente detrás da obra. Ficaria ainda mais feliz se o bronze é que tivesse se manifestado por si mesmo.” Giacometti confidencia. Outrora tinha tido a ideia de esculpir uma figura e de enterrá-la. Não a descobririam, ou só a descobririam bem mais tarde, quando o próprio escultor tivesse desaparecido e não perdurasse a lembrança do seu nome. No entanto, ao entrar no ateliê, Genet observa que todo ele vibra e vive. Anota: “Basta a presença de Giacometti para que, sem que as toque, as esculturas já acabadas se alterem e se transformem só porque uma das irmãs está sendo trabalhada.” Sustentado por madeira carunchada, precário e sujo, o pavilhão pode desabar a qualquer hora. Mas o ambiente está tomado pela realidade absoluta. “Quando saio do ateliê e caminho pela rua”, escreve Genet, “dou-me conta de que nada que me rodeia é verdadeiro.”
Vida de artista
inanciamento. O pintor Francis Bacon (1909-1992) poderia ter sido diretor de cinema. O russo Eisenstein era referência. O desejo foi tolhido pelo modo de financiamento da criação cinematográfica. Desperdiçaria muita energia para levantar as condições materiais exigidas. Ao final da vida, comenta: “já é preciso lutar tanto com o que se quer fazer, então buscar dinheiro, batalhar por ele…” – deixa a frase em suspenso. Na Irlanda, nada obrigava o pai a ajudar os filhos financeiramente. Jovem, Bacon viaja a Londres, a Berlim e de volta a Londres. Aceita diferentes bicos. Foi decorador. Detesta a pintura que tende à decoração. “Quando se é jovem, tenho a impressão de que sempre se podem encontrar pessoas que se interessam por você e pelo que faz.” Nos anos 1920, Bacon conhece um senhor que mora em Chelsea com a mulher e dois filhos. Um dia, ele procura o pintor. Interessa-se por sua pintura. A partir daquela data e por quinze anos, o senhor o ajuda financeiramente, sem nunca falhar. Tem confiança no artista, acompanha seu desenvolvimento. Jamais intervém. Ele é quem doa o tríptico da Crucificação (c. 1944) para a Tate Gallery. O museu londrino o recusa. Tem de insistir para que seja a primeira peça de Bacon a ser aceita. Marchands não sustentam o pintor no início da carreira. Fotos. No ateliê de Bacon há fotos esparramadas pelo chão, algumas pisoteadas. Têm o valor de documento. Sabe que há artistas entre os fotógrafos, mas não se interessa por eles. Valeu-se das fotos para pintar retratos de amigos. É-lhe mais fácil retratá-los a partir delas. Trabalha sozinho no ateliê e se sente mais livre. Não tem vontade de ver pessoas, mesmo os modelos. “Não pinto para os outros, faço pintura para mim. Por não encontrar mais modelos, passei a pintar-me a mim. Foi por falta de algo melhor, e não porque achava isso em si interessante.” Influência. Bacon descobre a pintura ao visitar uma exposição de Picasso, em Paris. Dizer que Picasso o influencia não é bem o verbo correto. Nem Picasso o julgaria correto. Picasso “era como uma esponja que absorve tudo”. “Digamos que Picasso me ajudou a ver…” Não é bem isso também. Interessa ao pintor irlandês a capacidade que tem o espanhol de sempre estar fazendo algo de novo. Bacon é sensível ao visual; reage mais diante duma imagem que ao ouvir sons. “Fui influenciado por tudo o que vi, provavelmente.” Em arte, o conhecimento não é cumulativo como na ciência. Gosto artístico. “Todo mundo crê que devo gostar de Hyeronimus Bosch. Não sei se minhas telas lembram as dele, mas posso afirmar que seu trabalho nada me diz.” Impressionalhe o movimento dos seres e das coisas nos quadros de Géricault. Quando Bacon fala de movimento, não fala de representação da velocidade como nas telas futuristas. Em Géricault o movimento se encaixa no corpo. Não gosta da Guernica. Entre 1926 e 1932, Picasso faz suas melhores coisas. Pinta uma série de quadros provocados pelo encontro com Marie-Thérèse
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Walter. Entre os últimos trabalhos feitos por ele, gosta de La pisseuse (A mulher mijona, 1965). Um dos mais belos Cristos na cruz é o de Cimabue. Ele se deteriorou durante as enchentes em Florença. Pôde ver o esqueleto do que restou. Era notável. Não gosta de obras célebres como a Mona Lisa. “São telas entediantes de onde nada se tira. Tenho dificuldade em compreender a paródia que Duchamp fez dela.” Ao falar de Turner, diz que não gosta de paisagens. Pintados no fim da vida, os autorretratos de Rembrandt são soberbos. A pintura abstrata lhe parece uma solução de facilidade. Em si a matéria pictural é abstrata, mas a pintura não é só isso, é resultado do conflito entre o material e o assunto. Há uma tensão. Contemporâneos. Atualmente há muitos pintores interessantes, mas, depois de décadas de grandes pintores, talvez seja normal achar que lhes falta um pouco de força, um pouco de originalidade. “Pode ser também que o estado atual de minha saúde impeça que veja os pintores que estejam renovando a pintura, talvez.” Autocrítica e equívoco. Bacon não crê que a crítica possa ter função didática. A única crítica válida é a que o artista exerce sobre o próprio trabalho, quando está pintando. Naquilo que já está presente na tela ele busca o caminho por onde passar, a fim de chegar à melhor imagem final. “Muitas vezes, ao retomar um trabalho, ao dar-lhe continuidade, destruí um quadro que nas primeiras pinceladas era melhor que aquele a que cheguei ao final.” Cenário. Peter Brook me pediu para desenhar o cenário da peça O balcão, de Jean Genet. Tentei. Logo descobri que o teatro é totalmente diferente da pintura. Quando assisto à peça de teatro ou balé, não vejo o décor. Ele nada acrescenta ao que estou vendo. Leitura. Leio sempre a mesma coisa. Sempre tive má memória e as coisas pioram com a idade. Releio muito. Releio Ésquilo todo o tempo, infelizmente em tradução. Tudo é dito de maneira mais concisa e mais precisa com a poesia. Por isso prefiro lê-la. Samuel Beckett quis simplificar algo de muito complicado. A ideia é boa. No entanto, pergunto-me se nele o cerebral não suplanta o resto, se suas ideias sobre a própria arte não acabam por matar a criação. Há algo de muito sistemático e ao mesmo tempo de muito inteligente no trabalho dele, que me incomoda. A crítica insiste na comparação entre o pintor e o escritor. Diz Bacon que não enxerga relação entre o que o Beckett faz e o que ele quis fazer. Não gosta da pintura surrealista. Os escritores daquela escola são melhores. Bacon teve uma tela recusada na exposição surrealista de 1936. Fonte. Entre outubro de 1991 e abril de 1992, Francis Bacon concede entrevistas a Michel Archimbaud (Gallimard, 1996). O artista morre logo depois, no dia 28 de abril.
Júlio Bressane
ada vez me encanta mais o modo como a gente de cinema incorpora hoje a tradição literária e a artística com a ambição de transformar as apropriações criativas típicas do filme em modelo teórico de processo de construção e de funcionamento da Arte como um todo. Tome-se como exemplo a coletânea de artigos do cineasta Júlio Bressane intitulada Alguns (Imago, 1996). O raciocínio inicial de Júlio sobre o lugar do cinema no conjunto das artes é aparentemente simples e deve algumas barretadas teóricas aos poetas concretos Haroldo e Augusto de Campos, mas na realidade é de um poderio especulativo que assusta. Segundo Bressane, há dois processos básicos de composição. Na tradução intersemiótica, o artista transpõe a linguagem de outra arte para a sua própria linguagem artística; na tradução intrasemiótica o artista transpõe os trabalhos feitos em determinada linguagem artística para o seu próprio fazer artístico naquela mesma linguagem. No método de composição artístico pelo lado de fora (inter) e pelo lado de dentro (intra), “tout communique”, como está dito no filme Meu tio, de Jacques Tati. A obra de arte – seu fazer e sua leitura − funciona por um movimento ininterrupto de descentramento. Carlos Drummond é bom exemplo de tradução intersemiótica. As palavras do poema “Cidadezinha qualquer” pintam um quadro de Tarsila: “Casas entre bananeiras / mulheres entre laranjeiras / pomar amor cantar.” Outro exemplo é Alfred Hitchcock. Ao filmar Vertigo, ele escreve um poema de Mallarmé. Já Mário Reis, o Braguinha, desenha Betty Boop, criada por Max Fleischer, ao compor a marchinha “Moreninha da praia”. O filme Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, escreve o romance de igual nome assinado por Graciliano Ramos. No caso da tradução intrasemiótica, pode-se tomar o último exemplo levantado, o filme Vidas secas, e ler palavras do próprio Bressane. Dizem elas que seu filme São Jerônimo nada mais é que plágio original do filme Vidas secas. Ao contrário do que acontece na teoria literária, onde a noção de texto carreia consigo trama e personagens, a abordagem de Bressane os elimina. Ele embasa sua experiência de cineasta apenas no que há de “deserto” na linguagem cinematográfica de Nelson Pereira. Nos dois filmes, “deserto” não deve ser tomado como texto (com enredo e personagens), é só metáfora, passível de ser traduzida com originalidade para outra época (século IV DC) e outra trama (a vida de São Jerônimo). Pela metáfora “deserto”, o filme São Jerônimo, de Bressane, apropria, pois, a escrita fílmica da catinga nordestina. Apoiando-se nela, deserto, e no mesmo meio de expressão, cinema, o filme encena não o infortúnio dos miseráveis retirantes alagoanos, mas a ascese de São Jerônimo. Este traduz (ressalte-se a atividade do monge a funcionar como metáfora, agora do processo criativo de Bressane) a Bíblia sagrada para o latim, enquanto Júlio traduz a catinga de Nelson, traduzida de Graciliano, para o deserto da Síria ou de Belém. Tanto no filme de Nelson quanto no de Bressane, a mobilidade da escrita cinematográfica não está na trama ou
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nos personagens, ela está ali naquelas pedras, nos espinhos, na terra seca. A metáfora “deserto” se faz carne e palavra no movimento intersemiótico (livro de Graciliano e filme de Nelson) e intrasemiótico (filmes de Nelson e de Bressane). A lição a ser retirada da vida no deserto está menos nos atos dos homens e mais na presença metafórica de animais. No deserto da vida, o cabra é a cabra. No deserto dos filmes, a cadela de nome Baleia é o Leão ao pé de São Jerônimo. Todos são vida, filme e fábula (esta no sentido que lhe empresta a tradição de Esopo). Claro está que o raciocínio de Bressane não tem como alicerce a ideia de “texto”, ou seja, não funciona nas relações que a unidade-texto mantém com outras unidades-textos. Metáfora não pode ser alicerce, já que é em si movimento (etimologicamente: transposição, transposição de um sentido para outro). Seu raciocínio não admite, pois, a ideia de “alicerce”, a não ser que se pense em alicerce de edifício em área de terremotos constantes. Não sendo o texto o núcleo estável da composição-por-tradução, a metáfora é o seu elemento dinâmico. Bressane rejeita, pois, a contribuição em torno da intertextualidade para assumir o movimento e o ato de tradução como o absoluto movediço na construção do produto artístico. O tempo perde o movimento da flecha que lhe dá sentido como cronologia dos acontecimentos. O espaço perde a racionalidade do mapa que lhe dá sentido como organização geográfica do mundo. Seu método abole também as noções de limite textual e de autoria, ou a repressão crítica que transparece na noção de plágio. Glauber Rocha é o exemplo privilegiado. Deus e o Diabo na terra do sol, afirma Júlio, “é um filme tirado de alguns filmes italianos”. Mas atenção: “Ele tirou dos filmes italianos o que esses filmes não tinham.” Ao tirar do que tem o que não se tem, o filme de Glauber torna-se algo excepcional, em semelhança ao Dom Quixote escrito por Pierre Ménard, que se encontra no conto de Jorge Luis Borges. Não é outra a conclusão ad absurdum de Bressane: “Deus e o Diabo na terra do sol é a obra-prima do cinema moderno italiano.” Através de processos incalculáveis de tradução, o criador constrói um balé inconcluso e o leitor, por sua vez, apreende uma coreografia de linguagens em aberto, para retomar expressões de David Lynch ao se referir ao filme de Tati. A modernidade é a capacidade de negar o tempo da flecha e o espaço do mapa com o intuito de elevar o processo de tradução ao absoluto da Arte, levando-a a apresentar uma visão filosófica ou moral de mundo.
… e o deus do cinema comercial contra todos
uando o filme foi uma produção artística centrada na Europa e nos Estados Unidos, não era difícil escrever a história universal do cinema. A convicção ditada pela Revolução soviética embasava a escrita crítica e historiográfica. Um bom exemplo são os seis grossos volumes da História do cinema mundial (Histoire générale du cinéma), de autoria de Georges Sadoul (1904-1967). Surrealista na origem e desde 1932 filiado ao Partido Comunista Francês, não é por acaso que Sadoul também tenha sido biógrafo do poeta Aragon e do homem do povo Charles Chaplin (Casa do Estudante, 1952). Ao final da Segunda Guerra, tudo contribuía para centrar a indústria fílmica nas economias das nações vitoriosas e nos levar a crer na linha reta do progresso da humanidade. Tanto nas metrópoles do planeta quanto nas cidades provincianas, o cinema já se afirmara como arte de recepção instantânea e planetária. No início do século, no quintal de casa, Carlos Drummond lia sozinho as aventuras de Robinson Crusoé. Na década de 1940, em outra cidade do interior de Minas Gerais, a criança nascida em 1936 se sentava ao lado de centenas de espectadores e todos se empolgavam com os doze episódios de O terror dos espiões (Spy smasher, 1942). Lia os gibis gringos impressos no Rio de Janeiro. Folheava o jornal carioca O Correio da Manhã, assinado pelo pai, e, à noite, ao lado dele, ouvia as notícias transmitidas de Londres pela rádio BBC. Imagens e vozes do mundo tinham como trilha sonora o trote do cavalo que puxa a carroça. Letrada ou analfabeta, a província é o público − os olhos e os ouvidos do mundo. Na capital do país, os cinéfilos lutavam em vão pelo direito à réplica industrial. Como acentuou Walter Benjamin em 1935, a técnica do cinema requer a obrigatória e imediata difusão em massa da obra. Filme é pago pela bilheteria mundial, na bucha. Os periféricos eram cineclubistas. Nos anos 1950, quando Sadoul publica sua história do cinema, o cinéfilo procurava historiá-lo por vivê-lo de modo crítico, noite após noite. O filme europeu o enfeitiçava. Se política a preferência, olhos e imaginação se encaminhavam para os clássicos soviéticos e os neorrealistas italianos, Rossellini à frente. Se poética a preferência, se encaminhavam para os filmes de vanguarda de Buñuel e Dalí e para o hoje clássico cinema francês, René Clair à frente. O imaginário periférico existia nos limites do controle industrial exercido pelo filme euro-americano. Nos anos 1990, o imaginário periférico já alcançara o direito à cidadania industrial e hoje requer sua história. Cinema, globalização e interculturalidade (Argos, 2010) é a indispensável coleção de ensaios organizada por Andréa França e Denilson Lopes. Não se estranhe que ali se fale duma realidade fílmica recalcada e beligerante. O primeiro módulo do livro adjetiva o desrecalque: cinema intercultural. Quer avaliá-lo pelos valores defendidos pela atualidade pós-colonial, diaspórica e multicultural. Abre o volume uma citação do profeta Marshall
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McLuhan, cujo conteúdo na verdade remonta aos anos 1940: “Eletricamente reduzido, o globo não é mais que uma aldeia.” Tendo como referência a Revolução cubana, as nações africanas e asiáticas (tardiamente pós-coloniais e atualmente diaspóricas) tinham se somado às nações latino-americanas na produção de filmes comerciais. O centramento euro-americano da indústria padecia com a debandada global. O cinema perdia seu lugar físico e passava a ser um discurso em movência geográfica, linguística e econômica que, por sua vez, constituía a novidade dum entre-lugar artístico. Seu modo de ser, sua ontologia, como diria André Bazin, é a diferença. Diferença cultural e étnica, em particular. A periferia ganhava o planeta e a indústria do filme (vale dizer: as bilheterias), fragmentando-os. O segundo módulo da coleção traz ao centro do título a consequência da interculturalidade, “Cinema, hibridismo e periferia”. O artigo de abertura lembra a “onda de ensaios-manifestos militantes” escritos a partir dos anos 1960, de que faz parte a Estética da Fome (1965), defendida pelo nosso Glauber Rocha. Câmara na mão, Glauber saía pela nação brasileira e o mundo à cata do que poderia catar: “um cinema faminto de filmes tristes e feios”, em nada parecido às imagens de Doris Day e Rock Hudson, projetadas em cinemascope. Rio, Zona Norte (1957), de Nelson Pereira dos Santos, e Deus e o Diabo na terra do sol (1964), de Glauber, alicerçam o edifício da periferia urbana e rural brasileira e enraízam nosso cinema no hibridismo cultural. Intercalada nas páginas anteriores, uma questão ganha peso no terceiro módulo. Tendo o cinema chinês como exemplo, constata-se que a indústria fílmica intercultural é assimétrica: “forte em produção, fraca em exibição”. O cinema intercultural tem de inventar seu espectador, ou acatar os fluxos de capital internacional que o fortalecem. O cineasta pode optar, em detrimento da expressão artística, pelo sucesso comercial. O novo milênio será pródigo em exemplos. Esse módulo pouco se distingue do último, onde se debate recepção e audiência. Neste milênio, a movência ontológica do cinema se situa ao nível dos personagens. O imaginário periférico viaja e é “da fronteira”. Arranca o drama do espectro das identidades nacionais e corrobora a diferença entre a coleta de dados antropológica e a realização fílmica. Como acentua Bill Nichols: “A briga de galos de Bali não é projetada para viajar. O novo cinema iraniano sim.” Marginalizada na marginalidade, a cineasta Claire Denis assume posição de destaque no último módulo, que também traz questões em torno de gênero. Quer-se incorporar o desejo feminino à dialética transnacional. De modo subjetivo, Claire Denis nos fala da dificuldade pessoal em pertencer à história do cinema global e, metaforicamente, abraça convicção diferente da sentida pelo cinéfilo periférico nos anos 1950: “Mas ser marginalizada é uma forma de ser levemente protegida. Estou fazendo a minha própria história, sem que ninguém interfira, e isso é conveniente.” Cada um por si e o deus do cinema comercial contra todos, diria Werner Herzog.
Fernando Pessoa e o cinema
e um grande escritor europeu não passar nos anos 1920 pela experiência vanguardista de cineclube, que concepção de cinema orientará seus escritos? A pergunta me ocorre ao ler Argumentos para filmes (Ática, 2011), reunião dos textos de Fernando Pessoa em torno da sétima arte. Cuidadosamente pesquisada e diligentemente anotada por Patrício Ferrari e Cláudia Fischer, a primorosa edição divide-se em quatro seções. Na primeira, reproduz-se o conjunto dos sete curtos “arguments for films” (daí o título do livro) redigidos nas três línguas que o poeta domina. Seguem-se breves apontamentos críticos-bibliográficos (segunda seção), projetos empresariais em que o cinema é o fundamento (terceira seção) e, finalmente, alguma correspondência onde se faz menção à arte. No prefácio, Patrício e Cláudia acolchoam com citações poéticas do engenheiro Álvaro de Campos as ideias sobre cinema sugeridas por Pessoa e nunca desenvolvidas. No posfácio (a melhor parte do livro), Fernando Guerreiro esforça-se por resgatar o valor dos escritos especializados pela análise de frases pontuais. Ao generalizar a experiência de cinema expressa pelo poeta, Guerreiro recorre às teses defendidas pelos companheiros dele na revista presença (1927-1940). Sai-se bem teoricamente, entregando a palma de ouro ao desconhecido e influente Fernando Ferro, cujos textos críticos circularam no Brasil nos anos 1920. Embora se afirmasse como defensor de Salazar e de outros fascistas, Ferro defendia ideias afinadas com a papa-fina da vanguarda cinematográfica, haja vista A idade do Jazz-Band (1924). O livro Fazer pela vida – um retrato de Fernando Pessoa o empreendedor (Assírio & Alvim, 2005), de António Mega Ferreira, talvez forneça a chave para se compreender a relação frustrada e frustrante do poeta genial com o cinema. Dois dados apontam para o empreiteiro. O primeiro está nos títulos de filmes que constam dos diferentes recortes conservados por Pessoa ao longo de sua vida; 74 dos filmes anunciados/criticados são americanos, 33 franceses, 10 alemães, oito portugueses etc. Todos são produções comerciais. Nenhuma alusão a Chien andalou, de Buñuel/Dalí, ou a Entr’acte, de René Clair. Ivan, o terrível, único filme soviético a comparecer, não pode ser o de Eisenstein, que é de 1944. O segundo dado se encontra em anotações que Pessoa redige desde 1919. Idealizam a criação da empresa Cosmopolis, cujo modelo é o Touring Club da França (1906). O projeto grandioso concebido pelo poeta visa a promover Portugal na indústria do turismo, dispensando atenção a traduções de obras literárias e a trabalhos fotográficos. Nos esboços, ele se refere ao cinema como – e cito – “uma das maiores armas de propaganda que se pode imaginar”. Atraem-no o aspecto industrial da arte e a vertente documentarista, puxada à divulgação junto ao grande público de acontecimentos políticos candentes. Não foram alheios ao projeto cinematográfico de Cosmopolis os vários filmes sobre o presidente Sidônio Pais (1872-1918), produzidos naqueles anos pela Companhia Lusitania Film. Como se sabe,
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transformado em mártir, o presidente-rei é figura política da preferência do autor de Mensagem. O cinema pegou Pessoa pelo calcanhar de aquiles. Os argumentos para filmes não poderiam ser de teor diferente. O exímio prosador arquiteta tramas teatrais onde a máxima pirandelliana, “assim é, se lhe parece”, alça voo para o leitor. Desenroladas em ambientes fechados, as situações desenhadas pelas sinopses nos seduzem pelos jogos de ambiguidade na evolução dramática dos personagens. Não sugerem imagens que surpreenderiam ou chocariam o espectador, como acontece nos filmes de vanguarda. Se realizados, os filmes não seriam mostrados nos cineclubes. Seriam produções bem comportadas de estúdio, que visam ao sucesso comercial. Pessoa pouco se inquietou com os manifestos surrealistas de André Breton, daí que detectamos certa boa vontade no crítico Patrick Quillier quando examina duas das sinopses mais instigantes (uma delas escrita em francês). Destaca o texto em que a mudança brusca de décors e o desencontro temático nas situações anotadas “apontariam para um cinema onírico, de tonalidade surrealizante”, inspirado por Buñuel/Dalí. Desenvolvida aqui e ali na escrita poética de Pessoa, a sintaxe de inspiração cinematográfica teria origem indireta na apreciação do filme como manifestação de nova linguagem dramática. No fundo, a sintaxe fragmentada de Pessoa deriva das “palavras em liberdade” e da “imaginação sem fios”, preconizadas por Filippo Marinetti no Manifesto técnico da literatura futurista (1912). É inegável que muitas das teses desenvolvidas pelo “Sensacionismo”, movimento literário de inspiração futurista de que é figura maior o heterônimo Álvaro de Campos, propõem uma linguagem ajustada tanto ao “agitar-se do teclado de um piano mecânico” quanto, no filme, à “dança de um objeto que se divide e se recompõe sem a intervenção humana”. Tomados ao citado manifesto, esses princípios estéticos acentuam a análise nuançada dos prefaciadores da edição: “a insistência na velocidade e na vertigem, por um lado, e a multiplicidade das sensações, por outro, remetem evidentemente para as estéticas futurista e sensacionista de que está imbuída a poética de Álvaro de Campos, mas estas, por sua vez, jogam aqui com o topos da brevidade, da rapidez e da vertigem também verbalizadas no discurso vigente sobre cinema.” Na obra de Pessoa, a estética do cinema é parte de um jogo em andamento. No espelho do texto se reflete menos a estética do filme e mais a própria literatura de vanguarda e a moderna indústria do entretenimento e da publicidade. No próximo dia 13 de junho, não serão os escritos sobre cinema que acenderão a vela definitiva no bolo de aniversário do poeta.
História subterrânea e emotiva
aso emplaque, o filme Um método perigoso (2011), de Dave Cronenberg, trará à baila um tópico atual – o da história subterrânea e emotiva da psicanálise. No filme, estão dramatizadas as circunstâncias da invenção e difusão da teoria psicanalítica pelo viés da relação amistosa e conflitiva entre o vienense Freud e o suíço Carl Jung. Como a crítica literária descobriu há pouco, e o filme trabalha dramaturgicamente essa descoberta, a história subterrânea e emotiva de nova disciplina (a psicanálise) ou de novo movimento em disciplina tradicional (o Modernismo na literatura), pode ser lida na correspondência trocada entre mestre e discípulos. No caso literário, leiam-se as cartas do nosso Mário de Andrade. No caso da análise, citem-se as cartas trocadas entre Freud e seus inúmeros discípulos. A carta é texto nobre no gênero que Michel Foucault classifica como “écriture de soi”. É parente do diário e da autobiografia. Se se considerar a troca de cartas como um todo, diferencia-se dos parentes por ser texto escrito a inúmeras mãos. Ao assistir ao filme de Cronenberg, ocorreu-me prosear com o leitor sobre um livro despercebido no ano da publicação em Paris, 1976, e atualíssimo. Refiro-me a Um destino tão funesto (Timbre Tauros, 1987), cujo autor é François Roustang, ex-jesuíta analisado por Jacques Lacan. Un destin si funeste é pioneiro. Interpreta textos tomados à correspondência de Freud com a finalidade de redesenhar os traços subterrâneos e emotivos que configuram a difusão da teoria freudiana e a fundação da Associação Psicanalítica Internacional (1910). Ao redesenhar e apreender o caminhar diário e à flor da pele dos sentimentos de cientistas, Un destin si funeste se aproxima do romance As ligações perigosas (L&PM Editores), de Choderlos de Laclos, e do ensaio A angústia da influência (Imago), de Harold Bloom. Não por coincidência o romance clássico de Laclos é escrito sob a forma de correspondência amorosa. Roustang estabelece o modelo de leitura da correspondência de Freud a partir das cartas de Karl Abraham. Junto ao mestre, ele aviva as intrigas entre os discípulos (Jung, Bleuler e Rank). A carta que envia a Freud antes de morrer, em 1925, sintetiza: durante vinte anos não houve divergência de opinião entre os dois, salvo quando ele julgara justo criticar a terceiro. Afirma Roustang: a lucidez de Abraham se nutre da “paixão da exclusividade”. O terceiro traz a divergência e perturba a afeição ao mestre e o zelo à causa. Na esperança de que Jung seja “o ariano capaz de retirar a psicanálise do gueto judaico”, Freud não endossa as críticas que desde 1908 Abraham faz ao suíço. Indulgente com os insubmissos, Freud descarrega o rancor em quem é sincero e fiel. Freud apazigua à maneira de mestre. Pontua a “concorrência” entre os discípulos, ou a “rivalidade não controlada”. Contesta-lhe Abraham: “No fundo, a opinião que exprimo é a sua, que o Senhor não deixou tornar-se consciente.” O princípio de coerência da teoria não está no discípulo. Sua posição é intolerável. Se o delírio é a teoria de um, a teoria é o delírio de muitos em estágio de transmissão. Acolhido no
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círculo familiar de Freud, Abraham sente-se constrangido por “dívida de reconhecimento”. É o guardião íntegro. Como outros poderiam ocupar lugar privilegiado junto ao mestre se não se preocupam em ressarcir o creditador? Freud desembrulha o imbróglio: “Não quero sacrificar a nenhum dos senhores, mas, para dizer a verdade, não posso dizer a um a que ponto o outro me é caro.” A rivalidade entre discípulos se desdobra na luta do mestre para manter a todos como discípulos. As ligações perigosas não dissolvem a transferência. Esta relaciona o poder narcisista do mestre sobre a teoria ao seu poder na fundação da Associação Psicanalítica Internacional. Segue-se a redação de Totem e tabu (1913). Nada sela melhor a coesão da “horda selvagem” que o crime perpetrado por todos e cada um. Em carta, Freud se reaproxima de Abraham. Diz-lhe que o novo livro “deve servir para eliminar definitivamente tudo o que é religiosoariano”. E esclarece: “Jung enlouqueceu, mas não viso à ruptura; gostaria, antes, de deixá-lo perder-se. Contra minha vontade, pode ser que o trabalho sobre o Totem acelere a ruptura.” Abraham acrescenta: “O aparecimento da Contribuição à história do movimento psicanalítico levará Jung a sair de campo.” Está armado o plano para destituir Jung da direção do Jahrbuch (anuário). Na brecha, Abraham introduz Ernst Jones na correspondência e na Associação. A dívida ainda não está resgatada. Reganha força pela insistência do devedor: Abraham envia o próprio retrato “de presente” ao mestre. Informa-lhe este: “O moldureiro deverá entregar-me sua foto amanhã, e ela ocupará então o lugar de Jung.” O conhecimento do processo de transferência não evita a impropriedade do vocábulo lugar. A relação de Freud com os discípulos corresponde, no plano individual e no institucional, aos mecanismos libidinais inconscientes que fundam as “multidões artificiais”, como a Igreja e o Exército. Roustang enumera o elenco: obediência à pessoa do mestre e à causa, exigência de fidelidade, refúgio que cada um encontra na compreensão paternal, zelo no gerenciamento financeiro (quando alguém entra no círculo, se deveria encontrar-lhe pacientes), entrada na família de Freud. “Todos esses traços convergem para desenhar uma figura de Sociedade bem precisa”, afirma o ex-jesuíta. Não é outra a conclusão. “Em 1910, Freud propunha que a Associação escolhesse um chefe (ein Oberhaupt) que, depois do desaparecimento do fundador (der Führer), seria seu sucessor, seu lugar-tenente (sein Erzatz), e teria ‘autoridade própria para aconselhar e para desaconselhar’.” Na corda bamba, Abraham e Jung.
Preste atenção!
utor ainda não traduzido para o português, Jonathan Crary é o iconoclasta de plantão nas pesquisas e análises recentes sobre o “observador” (palavra que prefere a espectador). Em seu primeiro livro, Techniques of the observer: on vision and modernity in the nineteenth century (MIT, 1990), Crary questiona pela raiz o modelo humano de visualização posto em vigor nos primórdios do século XIX, que se apoiava na técnica da camera obscura, difundida pela máquina fotográfica. Segundo Crary, o modelo falhava ao estabelecer diferença exemplar entre o sujeito e o objeto, dissociando-os pela instantaneidade, ao mesmo tempo que empobrecia o observador por zerar a interação da imagem exterior com sua experiência. O modelo humano de percepção fundado pela camera obscura é, pois, metafórico. Visa a explicar a percepção humana por uma câmara vedada à luz, a não ser por orifício munido de lente que serve para focar uma imagem instantânea do mundo exterior, com a finalidade de transportá-la para o interior da mente. Crary substitui o modelo espacial posto em vigor pela metáfora, por outro, fisiológico − o de um olho humano sensível à luz e sujeito tanto às pulsações mutáveis do exterior quanto aos estímulos interiores da retina. Crary troca o espaço estável do dualismo sujeito/objeto pelo desenrolar duma cena temporal instável em que observador e objeto observado entram em constante interação física e psicológica. Leitores de Freud detectam que o novo modelo se alimenta da noção de “atenção flutuante”, configurada pelo mestre em 1912. A noção visa a questionar as motivações que, na escuta da fala do analisando, “dirigem a atenção” do analista. Graças a ela, o analista (o observador) passa a conservar na memória uma multidão de elementos aparentemente insignificantes cujas correlações semânticas são ressaltadas a posteriori. Graças ainda a ela, a atitude objetiva do sujeito (do observador) se adéqua a objeto mutável, essencialmente deformado. A atenção flutuante permite a conversa entre inconscientes. Em seu livro posterior, Suspensions of perception: attention, spectacle and modern culture (MIT, 2001), Crary retorna à metáfora oitocentista da camera obscura a fim de datar o momento em que ela se responsabilizou por nossa postura de “prestar atenção” (to pay attention). A atenção passava, então, a dirigir o nosso modo cognitivo. Ao olhar o quadro-negro, dirigir um carro, consultar a tela do computador, o indivíduo “presta atenção” e se desengaja de amplo campo de atração, tanto visual quanto auditivo. Ele foca (para usar o verbo da moda) um número reduzidíssimo de estímulos. A experiência moderna do observador requer, pois, que ele exclua da consciência muito do ambiente circundante. A vida se compõe à semelhança da colcha de retalhos. Nos últimos 150 anos, a fragmentação do sujeito não é uma condição “natural”; é antes o denso e poderoso refazer da subjetividade humana pelo prestar atenção. A “atenção dirigida” ganha tal poder nos séculos XIX e XX que, às vésperas do novo milênio, psicólogos alertam para o seu avesso − a síndrome do deficit de atenção (TDAH). A
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atividade motora excessiva é resultado do alcance limitado da atenção e da mudança contínua de objetivos a que a criança é submetida. O “transtorno psiquiátrico” (apud OMS) a desqualifica na escola, no playground e em casa. Em termos do observador em arte, Walter Benjamin foi o primeiro a compreender “a recepção em estado de distração”, opondo esta ao − em termos dele − “recolhimento”. São as pulsações mutáveis de um novo objeto − no caso, o filme cinematográfico − que levam Benjamin a propor a “distração” como modo de percepção do observador. Segundo ele, “a câmara cinematográfica nos abre a experiência do inconsciente ótico, do mesmo modo que a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente pulsional”. Benjamin privilegia a estética dadaísta porque suas obras produzem, “através da pintura (ou da literatura), os efeitos que o público procura hoje no cinema”. E continua: “As manifestações dadaístas asseguravam uma distração intensa, transformando a obra de arte no centro de um escândalo.” (v. “Dadaísmo”, em “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”) Crary não abandona a atenção para encontrar abrigo teórico na distração benjaminiana. Também não insufla – ao contrário de Benjamin – uma crítica normativa à pintura (a que convida o espectador ao recolhimento) pela oposição ao cinema (onde o espectador se abandona às associações). Crary opta por opor a atenção dirigida à atenção flutuante e por dissertar a favor de “uma intersecção paradoxal” entre as duas, cuja rentabilidade teórica e analítica passa a examinar a partir da leitura de quadros de Manet (Dans la serre), Seurat (La parade du cirque) e Cézanne (Pins et rochers). Para entrar na “dialética da atenção e da distração”, Crary vale-se da ambiguidade da prática da hipnose, dispositivo a que recorreram Charcot, Freud e William James. A hipnose abre um lugar entre, já que é fenômeno que envolve e implica dois estados mentais. Leva o hipnotizado a oscilar entre a intensa concentração focal e a relativa suspensão do conhecimento periférico. Representada pelas telas mencionadas, a arte impressionista se dá a ler na oscilação entre dois estados mentais adversos. Inaugura a possibilidade de se opor a uma poderosa atenção focada e normativa a distração que a desfoca de forma irresistível. O observador está diante de exemplos de “irredutíveis modalidades mistas de percepção”. O olhar do observador flutua entre “uma tela métrica e homogênea, sinônimo aparente do espaço clássico, e um regime perceptivo descentrado e desestabilizado”; mantém-se “entre uma operação funcional da visão e as ondulações atemporais do devaneio”.
Joyce, Tzara, Lênin – e Groucho
m pesquisa original sobre a obra crítica de Antônio Cândido, Célia Pedrosa desentranhou da revista Clima (nº 3, 1941) um manifesto literário em que o futuro mestre defende o “grouchismo”. De maneira risonha e irreverente, Cândido teoriza a partir dos filmes dos Irmãos Marx, então em voga, e das estripulias de Groucho. Tempos sombrios requerem a seriedade de propósitos; no entanto, a alegria anárquica do script vaudevilesco e a inventividade comportamental dos Marx balizam uma visão crítica de mundo, derrisória e feliz. Antônio Cândido escreve em 1941: “Nosso tempo está cheio de credos novos. Entre os seus inumeráveis pregadores, entretanto, poucos têm a profundidade e a inspiração de Groucho Marx.” Justifica: “ele compreendeu melhor do que ninguém, que a crítica ao preconceito, assim como o estabelecimento de uma nova base para a conduta, não podem estar presos à justificação doutrinária – retórica, maçante e ineficiente.” Primeiro da santíssima trindade, Groucho vem associado a dois outros heróis do século, Lênin e Freud. Cândido comenta: “Wladimir Ilyich é o destruidor que espera tudo ruir para experimentar uma nova solução. O professor Freud é mais grouchiano, pois propõe ao mesmo tempo que depõe; mas é um grouchismo interior, com repercussões lentas e incertas na conduta imediata.” Groucho tinha compreendido, continua Cândido, que “não deve haver fases distintas na transformação; que não se deve destruir para construir em seguida. O mesmo ritmo deve compreender no seu embalo a destruição e a reconstrução”. Célia Pedrosa observa que as ideias expostas em “O grouchismo” encaram determinados modelos dogmáticos de análise literária e, pelo viés da iconoclastia, tornam sérias “as formas irreverentemente inovadoras de crítica ao pensamento institucionalizado”. Cândido não poderia ter imaginado que, na década de 1970, quando novos credos e inumeráveis pregadores tinham nascido na abundância econômica, surgiria na Inglaterra um dramaturgo de origem tcheca, Tom Stoppard, que levaria até as últimas consequências o grouchismo. Para escrever Pastiches (1974), hoje incluída no volume Rock’n’Roll e outras peças (Companhia das Letras, 2011), Stoppard recorre à liberdade de baralhar autores & livros, a que tem direito o ensaísta literário, para − com recursos dramáticos tomados ao vaudevile e à comédia dita de pastelão − dar sentido à obra caprichosa do acaso. Em 1917, três exilados famosos sobrevivem soltos em Zurique. O romancista irlandês James Joyce, o dadaísta romeno Tristan Tzara e o político russo Lênin. (Tzara substitui Groucho; Joyce, Freud, e Lênin é Lênin.) “Zurique durante a guerra”, diz um personagem, “era ímã para refugiados, exilados, espiões, anarquistas, artistas e radicais de todos os tipos.” Stoppard convida Tzara, Joyce e Lênin, distantes um do outro pela imprevisibilidade do mundo em guerra, a se encontrarem no palco e a trocarem falas e farpas. Canções, dança, paródias, pastiches, citações, alusões, trocadilhos e indiretas mantêm aceso o espectador e lhe
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despertam o riso. A comicidade oscila entre o requinte e a insolência, entre o pseudodidático e o surreal, e a visão histórica proposta por Stoppard se afirma por entre as brechas abertas por grandes ideias eruditas e versos ao gosto do populacho. Em homenagem a Cândido, leia-se esta fala retirada da peça: “Eu sempre achei que a ironia entre as camadas inferiores é o primeiro sinal de uma consciência social que começa a despertar.” Stoppard concretiza o traço de união entre os três gênios pela figura de Henry Carr, funcionário medíocre do consulado inglês. Na época, trabalha como ator em peça de Oscar Wilde, encenada por Joyce, e se envolve – travestindo-se de irmão de Tzara – com o serviço de espionagem britânico. A peça precipita encontros e desencontros imaginários e verossímeis, que serão dramatizados da perspectiva errática das lembranças de Carr. Em cena memorável, Gwendolen e Cecily, secretárias respectivamente de Lênin e de Joyce, retomam de forma hilária o esquete “Mr. Gallagher e Mr. Shean” que, desde 1921, faz parte da rotina dos espetáculos de vaudevile e se torna mundialmente famoso no filme A vida é um teatro (Ziegfield girl, 1941). A graça do pastiche não fica apenas por conta das alegres secretárias. O princípio de composição da peça é dado de modo metafórico por Tzara e pelo jogo poético surrealista conhecido por “cadavre exquis”. Na cena de abertura, o dadaísta recorta com tesoura palavras de uma folha de papel, joga-as dentro dum chapéu e as baralha. Em seguida, retira osso a osso de lá e, com o “cadáver suculento”, compõe versos de sentido aleatório e absurdo. Sentido original – se houver – estaria segredado pela folha esfrangalhada. Mais tarde, na peça, Tzara “aperfeiçoará” com a tesoura um soneto de Shakespeare. Diz ele, em resumo: “Na verdade, tudo é Acaso.” Joyce, em contraste, vale-se de “limericks” (poema humorístico ou de teor chulo) nos momentos em que descansa do trabalho de pensar o romance que irá “sair de referências à Odisseia de Homero e ao Guia das ruas de Dublin em 1904”. Outro contraste: acompanhado da esposa, Lênin envereda pela redação de um catatau sobre o imperialismo (“o capitalismo sem luvas”, no dizer de Carr) e será surpreendido em meio à peça pela notícia da Revolução Soviética. O conflito entre as ideias e ideais de Joyce e de Lênin sobre política e estética se desenvolve no segundo ato da peça (o primeiro é dominado por Tzara). Em carta ao editor Lunatcharsky, Lênin escreveria (lembra sua esposa): “Você não tem vergonha de publicar cinco mil cópias do novo livro de Maiakovski? É uma bobagem, uma estupidez, uma tremenda estupidez afetada.” Comenta Carr, o espião britânico: “Não havia nada errado com Lênin, fora a política.”
UMA REVOADA DE VAGA-LUMES
Primeira pessoa do singular
magine. O romancista José de Alencar teria sido professor de Iracema. Com ele, a filha de Araquém aprende o abc da língua portuguesa e rudimentos da religião católica. Lê algum Camões e se enfronha numa visão de comunidade e de história tomada à velha Europa. Em algum esconderijo do dia a dia, ela guarda a língua tupi-guarani e suas expressões, que traduzem o amor e o temor dos tabajaras por Tupã. Incentivada, Iracema toma da pena e escreve em português suas aventuras e as desventuras do povo tabajara frente aos inimigos potiguaras. Detém-se na análise da paixão por Martim e na descrição da cena em que, sacerdotisa, perde a virgindade. Como o seu filho, o romance se chama Moacir, que em tupiguarani significa “filho do sofrimento”. Imagine. O romance teria sido escrito na primeira pessoa do singular por uma indígena letrada. Imagine. Incentivada a narrar sua experiência, Iracema teria de passar as palavras e expressões da língua-mãe para a língua do professor. Busca as equivalências, em que mestre Alencar se mostrou perito. O professor lhe diz que a tarefa não é simples e é séria. As duas línguas carreiam modos de agir e de pensar diversos e antagônicos. A transcrição da experiência tabajara em língua neolatina não se confunde com a tradução do alemão para o português. Neste caso, a translação da língua-fonte para a língua-alvo tem um fundo comum greco-latino e judaico-cristão. Iracema parte do zero ocidental para criar o híbrido da língua europeia falada no Brasil. Vale-se da Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil (1595), de outro José, o de Anchieta. A imaginação do leitor brasileiro para aqui. Só serve para acordar nosso remorso histórico. O processo de independência das colônias latino-americanas seguiu o modelo bolivariano, oitocentista, de que seria último defensor o argelino Albert Camus em O primeiro homem (Nova Fronteira, 2005), livro póstumo, recheado de ideias políticas obsoletas. No século XIX, a condução das nações livres americanas foi entregue aos brancos aportuguesados e cristãos. Vale dizer: nossa literatura de cunho nacionalista seria escrita por intelectuais como José de Alencar ou Gonçalves Dias. Fechada a janela da imaginação brasileira, abre-se a porta da leitura pelas páginas da coleção de ensaios autobiográficos do romancista nigeriano Chinua Achebe, intitulada The education of a british-protected child (Anchor Books, 2010). Dele conhecemos em português apenas o primeiro romance, O mundo se despedaça (Companhia das Letras, 2009). Nascido em Ogidi, de descendência ibo, só em 2008, ano em que se comemorou o cinquentenário do romance acima referido, é que Achebe decide reunir em livro seus ensaios. Serviriam “para iluminar o que une sua arte à sua vida”. Um convite da Biblioteca do Congresso, em Washington, consolida o desejo. O título da palestra dá nome ao livro. Este seria pessoal e eclético e, por razões que explica, não será fonte de informações históricas e
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eruditas sobre a cultura tradicional ibo. Longe dele a pretensão de ser um scholar africano. Em 1953, depois de se diplomar pelo University College, em Ibadan, onde é contemporâneo do Nobel Wole Soyinka, Chinua tenta a matrícula na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Não é aceito. Três anos depois, de posse do passaporte que o declara “British protected people”, vai estudar na escola preparatória da BBC, em Londres. Em 1960, quando se reconhece a independência da Nigéria, perde o estatuto de “protegido” para receber o de cidadão. Passa a ser o primeiro dirigente (controller) da Nigerian Broadcast Corporation. Perderá o posto quando a intolerância das armas nacionais passa a falar mais alto que a caneta. Impossibilitado de enumerar e comentar os mil e um detalhes da vida comunitária, familiar e política do escritor ibo, detenho-me em um dos traços salientes da sua escrita ensaística: a busca de equivalências entre a língua ibo e a inglesa, entre modos de agir e de pensar conflitantes. Achebe evita o discurso-feito sobre o colonialismo britânico na África por evocar, na abertura da palestra proferida na Biblioteca do Congresso, uma canção de ninar em que seu povo valoriza o “lugar do meio”, em detrimento do que vem atrás e do que vem à frente. É por uma escrita sobre o presente enquanto presente, escrita desdramatizada (undramatic) e desespetacularizada (unspetacular), que Achebe se adentra pelo notável manancial do saber ibo que retém e pela língua do colonizador, em que se formou e expressa sua identidade. O “lugar do meio” é o modo como o povo ibo evita a altissonante ameaça do Caminho único, da única Verdade e da única Vida. É “a casa da dúvida e da indecisão, do fazdeconta e do jogo, do imprevisível e da ironia”. O modelo bolivariano de independência incentivou o jogo linguístico de Alencar, mas exigia a seriedade institucional de europeizado. Em Achebe, os passos mais engenhosos dos ensaios repousam em equivalências linguísticas desafinadas. Pela surpresa, a galhofa e o riso, elas ensinam o ex-colono a escrever em inglês e a sobre/viver. A devastação colonizadora britânica, diz ele, não é matéria para humor, mas é surpreendente o modo como os despossuídos transformam o vácuo do poder em boas narrativas e riso. Graças à sensibilidade artística de um professor de matemática, a primeira geração de romancistas ibos teve acesso à literatura ocidental. Três vezes por semana o professor retirava os olhos das crianças dos manuais escolares britânicos para conduzi-los à leitura dos clássicos da ficção inglesa. Construía o alicerce em que se apoiariam os futuros ficcionistas nigerianos, de descendência ibo ou ioruba. Tomam posse da língua do colonizador europeu e se exprimem na primeira pessoa do singular. Comenta Achebe: os romances que líamos não falavam de nós, ou de pessoas semelhantes a nós, mas se apresentavam como histórias fascinantes. Chegaria o dia – acrescenta – em que ele se sentiria suficientemente maduro para ler nas entrelinhas e fazer perguntas.
Raízes do cosmopolitismo no Brasil
publicação do opúsculo Ideia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita (Martins Fontes, 2011), de Immanuel Kant, realça uma bela página do pensamento brasileiro. Refiro-me ao terceiro capítulo de Minha formação (1900), de Joaquim Nabuco, intitulado “Atração do mundo”. As nove proposições avançadas pelo filósofo germânico liberam o “fio condutor” de que se vale Nabuco para refletir sobre o modo como o brasileiro, caso perca a menoridade política, pode transformar-se em sujeito da história nacional, embora ainda fique sujeito à formação ministrada pela Europa moderna e à dependência da cultura ocidental. A ambivalência dos significados de “sujeito” (autonomia/subordinação) indica que Nabuco se aproxima de Machado de Assis e teria em polo oposto o nacionalista José de Alencar e o antropófago Oswald de Andrade. O caudal cosmopolita eurocêntrico também deságua na escrita rememorativa da vida nômade levada por Nabuco, dividida entre os dois lados do Atlântico oitocentista. Observa ele: “De um lado do mar, sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país.” Na autobiografia, Nabuco se rende ao movimento e processo de universalização da história ocidental e, cidadão letrado, se entristece com a função que o Brasil teve como colônia e se entusiasma pelo papel que o país livre pode vir a ocupar. O movimento da escrita de Nabuco retoma a Primeira Proposição kantiana: “Todas as disposições naturais de uma criatura estão destinadas a um dia se desenvolver completamente e conforme um fim.” Confessa Nabuco: “Sou antes um espectador do meu século do que do meu país; a peça é para mim a civilização, e se está representando em todos os teatros da humanidade, ligados hoje pelo telégrafo.” Se se atualizar a telegrafia pela televisão e a internet, teremos o brasileiro letrado de hoje. Por a ideia de uma história universal modelar a vida de Nabuco (e não o personagem fictício de Machado de Assis), o estudante de Kant, antes de dar continuidade à leitura comparativa dos dois autores, consultaria o ensaio de Michel Foucault intitulado “Qu’est-ce que les Lumières?”. Neste, o francês analisa dois textos sucessivos sobre o Iluminismo, assinados pelo mesmo Kant. Datado de 1784, o primeiro evita definir o que seja o Iluminismo para discorrer sobre o modo como o movimento configura o século XVIII pela questão do seu presente. Pergunta Kant: O que se passa agora? E o que é esse “agora” que define o momento no interior do qual nós e os contemporâneos somos e em que eu escrevo? O texto seguinte de Kant vem datado de 1798. O filósofo indaga sobre a causa possível para o constante progresso do gênero humano. Ela não está na trama teleológica da História, mas em acontecimento singular (a Revolução Francesa), a ser lido como “signo” da causa que assegura o progresso como tendência geral do ser humano. Como signo, a revolução rememora, demonstra e prognostica o progresso permanente do homem. Atualidade e finalismo se suplementam na ideia de uma história universal cosmopolita.
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Na leitura do primeiro texto mencionado, Foucault salienta que, ao se autodenominar Iluminismo e ganhar consciência de si, o movimento procura ser um processo cultural singular. Situa-se em relação a seu passado e a seu futuro e designa as operações políticas que deve levar a efeito internamente. O uso privado da razão se soma ao exercício dela no plano público e torna o filósofo elemento e ator de um processo crítico. Não pertence a essa doutrina ou àquela tradição nem a uma comunidade humana. Pertence a um “nós” que, no caso de Nabuco, ultrapassa o estágio da menoridade política decorrente da independência da nação. A escrita subjetiva ilumina a atualidade, que se torna para o filósofo – e para o memorialista brasileiro − objeto de análise. No texto de 1798, Kant desqualifica o modo como o pensamento tradicional enxerga a revolução para afirmar que ela não está na queda dos impérios, ou nas grandes catástrofes que levam os Estados bem estabelecidos a desaparecerem. Está em acontecimentos menos grandiosos e menos perceptíveis. Afirma Kant: “Não esperem que esse evento consista em gestos nobres ou em crimes importantes cometidos pelo homem, motivo para que o que era grande se torne pequeno e o que era pequeno se torne grande…” Significativo na revolução − infere Foucault das palavras de Kant e o leitor das memórias de Nabuco − “é o modo pelo qual ela se faz espetáculo e passa a ser acolhida pelos espectadores a seu redor. Estes dela não participam, mas a veem, assistem a ela e, para o bem ou para o mal, se deixam arrastar”. O fundamento da revolução está no transbordamento duma disposição moral da humanidade. Faz irromper no mundo, diz Kant, “uma simpatia de aspiração que beira o entusiasmo”. E continua: “A partir das aparências e dos signos precursores de nossa época, sem espírito profético […] posso predizer ao gênero humano que ele chegará a um estado tal que os homens possam se dar a Constituição que eles querem e a Constituição que impedirá a guerra ofensiva.” Voltemos agora os olhos para as páginas finais do opúsculo de Kant, ora em português. Lá lemos: “O louvável cuidado do pensador com os detalhes que escrevem a história de seu tempo deve levar cada um naturalmente à seguinte inquietação: como nossos longínquos descendentes irão arcar, depois de alguns séculos, com o fardo da história que nós lhes deixaremos.” Em Nabuco, o uso da razão no plano privado ganha a tribuna para ser força crítica contra o escravismo e requer as memórias para se escrever como reflexão crítica sobre país periférico propenso ao bem-estar da elite no atraso. Afiança Nabuco que, em sua vida, viveu “muito da Política, com P grande, isto é, da política que é história”.
Favor e voto
s estudos de Maria Isaura Pereira de Queiroz sobre o coronelismo já são clássicos. Encontram-se reunidos na coletânea O mandonismo local na vida política brasileira (1976), livro a ser reeditado nesse momento em que o retorno à regionalização do país é a novidade nas eleições de 2010. Com formação em sociologia e especialização em antropologia, ciências políticas e letras, Maria Isaura tem obra diversificada. Nela aborda questões disciplinares pelo recurso à metodologia transdisciplinar. Aí está o seu pulo do gato. Ao apreender a trajetória do mandonismo local na vida política brasileira, Maria Isaura privilegia a figura do coronel e o gestual do favor. A persistência da figura humana e do seu gestual exigiu que navegasse aquém e além da Primeira República. Para substantivar o longo percurso histórico do coronelismo, ela traz à baila um clássico da antropologia, O ensaio sobre o dom (forma e razão da troca nas sociedades arcaicas), publicado por Marcel Mauss na revista Année sociologique, em 1923 e 1924. Em análise das sociedades do oceano Pacífico e das tribos do nordeste norte-americano, Mauss mostra como a vida material e moral daqueles povos está embebida no exercício da dádiva, que acaba por formatar um abrangente sistema ritualista de dom e de contra-dom. A rivalidade entre os atores sociais ativa o dom, que denota a superioridade de um sobre o outro. Esta é logo torpedeada pelo contra-dom, que restabelece e fortalece o indispensável regime de igualdade, e assim ad infinitum. Essa é, por exemplo, a regra da troca de dons que se realiza durante a cerimônia do Kula, nas Ilhas Trobriand. Entre os índios norte-americanos o sistema de trocas torna-se paroxístico. O potlach leva os chefes indígenas a se integrarem por gastos cada vez mais pródigos. Transformam-se em esbanjadores das próprias possessões. Nos dois casos, dom e contra-dom se alicerçam num setor do caráter do doador que é (aos olhos dos brasileiros) solidária e cristã. A relação afetiva aponta para a igualdade entre as partes envolvidas pelo e no sistema e pode ser recoberta por análise ética utilitarista. Trabalho para Maria Isaura. Através das noções de Marcel Mauss, a cientista política atualiza o gestual do favor, a unir coronel e apaniguados, e o sistema de trocas por ele implicado no momento em que as urnas decidem a governabilidade do município, do estado e da Nação. Sem anular a bibliografia clássica sobre o favor, ela abstrai a noção das análises da emergente sociedade urbana, onde a literatura oitocentista de Machado de Assis é carro-chefe. Retira-a, também, das relações de compadrio, onde é a alavanca que subsume na parentela latifundiária a família nuclear campesina e reorganiza a comunidade sob a forma de “sagrada família”, para retomar a expressão de Antonio Augusto Arantes. No processo das eleições, o dom e o contra-dom são atualizados pelos primeiros
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republicanos e seus constituintes – daí sua importância imediata. Na sociedade pósescravocrata, europeizada, católica e urbana, que se monta ao final do século XIX como republicana, Maria Isaura foca o favor como o instrumento que relembra a antiga instituição do mandonismo local, que sublima as rivalidades e diferenças comunitárias. Hoje, sob o impacto do Estado de bem-estar social, o favor persiste simbolicamente nas urnas. O voto exprime um sentimento indiferenciado de liberdade e de igualdade que, sem chegar a se dar como cidadão, une o que a condição humana separa. A transdisciplinaridade permite uma lapidação do objeto bruto, o favor, que o liberou do maniqueísmo disciplinar ideológico. Parafraseando Goethe, é nosso destino ver o objeto iluminado, e não a luz. O objeto em estudo se apresenta faiscante aos olhos que o focam nas facetas quebradas e nas dobras contraditórias, oferecidas pela lapidação. Ao subscrever a leitura do dom proposta por Mauss, Maria Isaura isenta o eleitor interiorano da falta de discernimento. Escreve ela: “O voto não é inconsciente, muito pelo contrário resulta do raciocínio do eleitor, e de uma lógica inerente à sociedade a que pertence.” Essa lógica gera um “sentimento de igualdade”, continua ela, que permite ao voto se transformar em “bem de troca”. Explicita Maria Isaura: “O voto é, pois, consciente, mas orientado de maneira diversa do voto de um cidadão de sociedade diferenciada e complexa. No primeiro caso, o voto é um bem de troca; no segundo caso, o voto é a afirmação pessoal de uma opinião.” Por terem sido edificadas no terreno da solidariedade cristã, liberdade e igualdade são forças políticas desativadas pela razão disciplinar, embora continue sendo moeda que mobiliza os eleitores em favor do seu próprio bem-estar. Por isso, são forças políticas no comício em praça pública, onde predomina a retórica personalista e sentimental do líder esbanjador, para lembrar o potlach estudado por Mauss. Como o comício é hoje realizado em local onde se inaugura a moderna e exuberante dádiva do Estado ao cidadão, o esbanjador faz apelo ao ritual de dom e de contra-dom. Para melhor se discutir a retórica eleitoreira, atualizem-se as metáforas do filme Terra em transe , de Glauber Rocha. Ao som do “Luar do sertão”, tornado hino regional, a usina hidrelétrica faz o meio ambiente dançar. Aguardemos o momento em que o debate entre candidatos com plataformas políticas distintas, a ser coberto e transmitido pela mídia nacional, sirva para que se busque o voto que, por ser fruto de afirmação duma opinião em sociedade diferenciada e complexa, distinga nas urnas um eleitor do outro, ou os reaproxime.
Euforia e reflexão, a sociabilidade
m seguida ao evento maior que constitui o país colonial como nação independente, é de praxe surgir a manifestação de compatriota opositor. Este provoca os entusiastas adeptos da identidade nacional e exige o alicerce da jovem sociedade em visão mais apurada de história e de política. Por apontar para um ideário de teor ocidentalizado, o opositor causa mal-estar entre os homens de ação, ou ainda em armas. Torna desconfortável a situação privilegiada dos defensores da luta a favor da independência, que tinha sido reprimida pelo colonialismo depredador. Em romance de Machado de Assis, Brás Cubas traduz com a ajuda de metáfora o embate sem empate: “Ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem.” Válida para a história das ideias no século XIX latino-americano, a premissa será também válida para o século XX africano. Após o grito de Independência, o direcionamento cosmopolita do opositor reclama a mudança no comportamento do cidadão livre e abre a porta para o estabelecimento do responsável estatuto jurídico e político para a jovem nação. O redirecionamento vem divulgado por voz individual, isolada e empertigada, para não dizer elitista, sustentada por uma escrita da memória. Esta pode ser pessoal (caso de Joaquim Nabuco em Minha formação), ou ficcional (caso de Memórias póstumas de Brás Cubas). O importante é que a escrita “integre o processo da vida social na vida de uma pessoa” (Walter Benjamin). Antonio Candido observou que, no Brasil, “a literatura tem sido, mais do que a filosofia e as ciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito”. Ao desqualificar a unanimidade altissonante do discurso da militância política, o contraponto que se lhe opõe se exprime por uma “escrita desdramatizada (undramatic) e desespetacularizada (unspetacular)”, para retomar a sábia observação do nigeriano Chinua Achebe no ensaio autobiográfico The education of a british-protected child (2010). Entre nós, Machado de Assis foi dos primeiros a alçar a voz e o voo questionadores da política com p minúsculo que sucedeu ao grito do Ipiranga. Em 1871, no jornal Novo Mundo, editado por Sousândrade em Manhattan, publica “Instinto de nacionalidade”. A prática literária no Brasil deveria desconstruir o elã dos nacionalistas de primeira hora e lançar a necessidade de se redefinir autonomia. Escreve: “Esta outra independência não tem Sete de setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas, muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.” Lembremos que a voz isolada e provocadora não tem muitos ouvidos e leitores. Brás Cubas não espera os cem leitores de Stendhal, “nem cinquenta, nem vinte, e quando muito dez. Dez? Talvez cinco”.
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Não é apenas o evento maior da Independência que é redimensionado pela visada cosmopolita e ética de Machado de Assis. Outro evento de enorme proporção política, a Abolição da Escravidão, será interpretado por ele com distanciamento antagônico e incômodo. Em crônica escrita em seguida à assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel, Machado recusa a narrar pela ótica da militância a magnanimidade do gesto e opta por enquadrá-lo numa moldura bíblica. Ao ver ou rever o evento através da janela religiosa aberta pelo cronista, John Gledson compreende a sua atitude: “Os efeitos da escravidão eram demasiado profundos para serem ‘abolidos’ por uma lei e, se a euforia pública alimentasse essa ilusão, seria prejudicial.” A atitude antagônica de Machado é atacada pelo militante José do Patrocínio. Na Revista Acadêmica desanca o bruxo do Cosme Velho: “O país inteiro estremece; um fluido novo e forte, capaz de arrebatar a alma nacional, atravessa os sertões, entra pelas cidades, abala as consciências. Só um homem, em todo o Brasil e fora dele, passa indiferente por todo esse clamor e essa tempestade. Esse homem é o Sr. Machado de Assis. Odeiem-no porque é mau; odeiem-no porque odeia a sua raça, a sua pátria, o seu povo.” Immanuel Kant nos oferece apoio teórico para analisar o peso e o valor do antagonismo cosmopolita em sociedade recém-liberta do colonialismo e dominada por uma ideia forte e precária de liberdade e que, por isso, não pode aspirar à condição de autônoma, no sentido teleológico do termo. Refiro-me ao conceito de “insociável sociabilidade”, desenvolvido na Quarta Proposição de Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Citemos Kant: “Eu entendo aqui por antagonismo a insociável sociabilidade dos homens, ou seja, sua tendência a entrar em sociedade que está ligada a uma oposição geral que constantemente ameaça dissolver essa sociedade.” Os leitores de Kant têm insistido no fato de que a insociável sociabilidade é o meio utilizado pela natureza para a promoção do desenvolvimento de suas disposições. Norberto Bobbio lembra a importância do antagonismo. Ele “elevará a luta, a discórdia, a revolta, a concorrência, a discussão e o debate”. Gerard Lebrun afirma que a autonomia “é essa articulação que transforma um ser solitário e respeitoso, perdido na natureza, em membro de um reino feito para que todos os seres racionais possam desincumbir-se, em conjunto, da função que lhes é essencial”. A metáfora da árvore se impõe. Isolada, cresce torta, de maneira bem pouco altaneira. Ao meio duma floresta, na concorrência pelo ar e pelo sol, crescem todas retas e sadias. A filosofia da história transformaria a maneira de se encarar a ação política nacionalista. Esta seria inscrita pelos cidadãos autônomos como parte do progresso ético-político da nação.
Bons ventos sopraram de Brasília
o discorrer sobre o cordão umbilical que uniu e une a jovem nação à antiga metrópole, o intelectual pós-colonial sempre se vê em apuros. Que durante os movimentos de insurgência seus antepassados tivessem tentado cortar o cordão a espadadas, isso é sabido. Também é sabido que, no ato de Independência, o bisturi nacionalista do imperador interveio às margens do Ipiranga. Independência ou Morte. A cicatrização do umbigo colonial não deve ser objeto de desprezo. O poder educacional e cultural do país livre se robustece com unguentos ajuizados, maliciosos e milagrosos, invocados e postos em prática pelos governantes e intelectuais. Sob o título de A tradição afortunada – o espírito de nacionalidade (José Olympio, 1968), Afrânio Coutinho arrolou as idas e vindas dos processos de cicatrização do umbigo colonial. Acrescente-se que essa cicatrização é interminável. Distantes no espaço geográfico do planeta, mas interligados por séculos de colonização, Europa e Brasil convivem de modo desarticulado o tempo de maturação do Ocidente. Se entre os ex-colonos, cicatrização nacionalista e maturação ocidental não são expressões sinônimas, elas coincidem no objetivo, o de ultrapassar o atraso mundial pelo progresso nacional. E são responsáveis pelas teorias socioeconômicas que criam a noção de país subdesenvolvido ou em desenvolvimento. Defendida nos anos 1920 por Oswald de Andrade, a antropofagia minimizou o ciclo da cicatrização umbilical, ocidentalizando o país pela força das ideias de vanguarda. Ao assumir a cultura indígena destruída, o país jovem operaria o milagre da maturação: “Tupy or not Tupy that is the question.” Nas décadas de 1930 e de 1960, as relações culturais de afeto entre a Europa e o Brasil suavizam a zombeteira e guerreira antropofagia oswaldiana. Refiro-me, primeiro, à fundação da Universidade de São Paulo (1934), quando um grupo de jovens professores franceses absorve outro preceito oswaldiano, “bárbaro e nosso”, e impulsiona o conhecimento do Brasil desconhecido dos brasileiros. Claude Lévi-Strauss explorou o território indígena da nação, enquanto Roger Bastide interconectou as sociedades do Novo Mundo pela contribuição africana. Refiro-me, em seguida, ao momento em que o poeta Haroldo de Campos, inspirado pelos bons ventos soprados de Brasília, convida o filósofo alemão Max Bense a nos visitar. Desembarca no país em fins de 1961. Aos clássicos Tristes trópicos (Companhia das Letras, 1996), de Lévi-Strauss, e Candomblé da Bahia (idem, 2001), de Roger Bastide, soma-se agora o não menos instigante Inteligência brasileira (Cosac Naify, 2009), de Max Bense. Se Lévi-Strauss e Bastide impulsionaram o conhecimento do Brasil bárbaro recalcado pelas elites, Bense abre diálogo franco e fraterno com os expoentes da prata da casa. Seus interlocutores são João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector e Guimarães Rosa, Lúcio Costa
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e Oscar Niemeyer, o escultor Bruno Giorgi, o pintor Volpi e os poetas concretos. Sua presença no Brasil acoberta a fundação em 1962 da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), que atualiza a então Velhacap pela hipótese urbanística de Brasília. Diante do naipe de ases, Bense constata: “Para o Brasil as relações econômicas não são as decisivas e sim as espirituais, e o papel de agente global não é desempenhado aqui pelo comerciante e sim pelo intelectual.” Bense não teria imaginado que, na condução do país, os comerciantes roubariam aos artistas a luz dos faróis que iluminam o futuro e que, invertidos os papéis, o milênio se abriria com Brasília sendo obrigada a estender a bolsa família ao cidadão analfabeto. Quando e como o Brasil descarrilhou? A resposta não está, obviamente, no livro. Assegura o filósofo que falar por hipótese é algo inteiramente adequado ao Brasil que o empolga. Numa das teses básicas, Bense defende a ideia de que o sistema de possibilidades que permite as interpretações do passado (o humanismo) não se confunde com o sistema de possibilidades que determina as realizações do futuro (o urbanismo). No Brasil dos anos 1960, o urbanismo desbancava o humanismo: “O problema não é o ser ou o não ser do indivíduo ou das massas, mas a habitabilidade ou a não habitabilidade da Terra.” Ao se entusiasmar mais com a aventura pela realização duma ideia que, com a própria ideia, a atualidade nacional anunciava a solução de problema ecológico, hoje candente. Incita Bense: “O gesto criador não é jamais histórico, é sempre e tão somente atual.” Nesse sentido, o urbanismo não é fator de atraso político, visto que não se vincula ao fato consumado do sedentarismo burguês e proletário. Bense corrobora Clarice Lispector: “Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado.” Ao desbancar o humanismo europeu, o urbanismo brasileiro tomou como sócio o design. A ideia do desenho industrial “surge como substituta dialética daquilo que na Europa denominamos consciência histórica”. Bense afirma que o Rio de Janeiro é “a cidade como prolongamento da natureza habitável”, enquanto Brasília “é prolongamento da inteligência emancipada, onde as edificações estão dispostas à maneira de mobiliário”. Nessa linha, observa que a paisagem paulista, que recobre a região entre Taubaté e São Paulo, se lhe afigura “como uma imensa plantação de automóveis”. O jogo metafórico é sutil: as plantas industriais, onde reside a riqueza da nação emancipada pela inteligência, se sucedem criativamente às plantas de café. Conclui Bense: “Aqui, a metade, o trivial, o improvisado, o posto de lado, o começado, o aludido, a monotonia, o desvalorizado têm de se prestar à produção de originalidade, inovação, vanguarda, estilo, criação.” Através da obra e da fala dos seus artistas, a inteligência brasileira revelava então uma “essência em progresso do homem”, já perdida na Europa, a viver então a aurora dos acontecimentos de 1968.
Modos de inserção da América Latina
m célebre quadro, o artista plástico uruguaio Joaquín Torres-García (1874-1949) desconstruiu o sentido da organização do mundo por hemisférios e a hierarquia ideológica que representa, no Atlas do Mundo, o norte como origem e centro da História e o sul como colonização tardia da Europa. Progresso acima e atraso embaixo, em termos corriqueiros. No quadro citado, Torres-García inverte a imagem da América do Sul que costumeiramente encontramos nos livros e, desde a infância, está impressa na mente das crianças alfabetizadas. A escolha da imagem e a estratégia de inversão (de ponta-cabeça) servem para atestar o gesto precoce e atrevido, utópico sem dúvida, de inserção da América Latina no mundo civilizado. Atesta, ainda, a favor da preeminência da geografia sobre a história, do espaço sobre o tempo, e a ambiguidade do papel desempenhado pelas cartas geográficas numa análise das nações colonizadoras vistas da perspectiva pós-moderna. Ao analisar em Orientalismo (O Oriente como invenção do Ocidente) a biografia e a atuação política de Lorde Curzon (1859-1925), líder intelectual do colonialismo inglês, Edward Said anota ter sido ele o principal responsável pela grande transformação por que passa a geografia no mundo moderno. De algo “enfadonho e pedante”, escreve Said, a geografia se transformou na “mais cosmopolita de todas as ciências”. Sem dúvida, um dos bons exemplos da preeminência e do valor da geografia e da cartografia se encontra no processo de caracterização do aventureiro Marlow no romance O coração das trevas (1902), de Joseph Conrad. De suas palavras se serve T. S. Eliot no poema “Os homens ocos”. No filme Apocalipse now, Francis Coppola se vale da trama colonial do romance. Transfere-a do Congo Belga para o Vietnã, sem esquecer o papel relevante exercido pelo consumo de drogas nas aventuras mortíferas e paranoicas de nações e de combatentes. Proposta por Torres-García, a inversão na representação clássica do mapa mundial descondiciona e desestabiliza o saber visual eurocêntrico do mundo, levando o sujeito (o espectador, no caso) a reconsiderar, diante da imagem precoce e atrevida, as antigas coordenadas históricas, sociais e econômicas, a fim de substituí-las pela experiência póscolonial do sul. Ao priorizar objetivamente o próprio da inserção (e não mais o da formação) da América Latina no Atlas do Mundo, a inversão proposta pelo uruguaio rodopia em torno dum traço que se alonga da esquerda para a direita no quadro, a representar a linha do equador. Ensaístas e artistas brasileiros sempre se lembram da frase do teólogo e historiador holandês Carpar Barlaeus (1584-1648), desentranhada por Euclides da Cunha em À margem da história − “ultra aequinotialem non peccavi” (não existe pecado abaixo do equador). A frase foi retomada por Sérgio Buarque de Hollanda em Raízes do Brasil. Percebeu que nela se embutia a precaução contra o caráter perigosamente depravado do sul: “Como se a linha que divide os
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hemisférios separasse também a virtude do vício.” Por sua vez, seu filho, Chico Buarque, retoma a frase de Barlaeus a fim de inverter – à maneira de Torres-García – o significado dos valores morais por ela expressos. Escute-se a canção “Não existe pecado ao sul do Equador”, de preferência na voz e no corpo de Ney Matogrosso. No seu livro Universalismo construtivo (1941), Torres-García explica a solução encontrada para o famoso desenho: “Pomos o mapa de cabeça pra baixo e então temos a ideia justa da nossa posição, e não como quer o resto do mundo.” A agulha imantada da bússola funciona também de maneira invertida. O sol a brilhar serve para estabelecer oposição ao norte magnético. Desse tipo de representação, não está isento o nacionalismo, pois o Uruguai, no mapa invertido, vem marcado com o bem evidente sinal de +. O mais desembestado dos intelectuais a pôr por terra as pretensões nacionalistas ou neouniversalistas da América Latina será contraditória, ou paradoxalmente, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. Diante das paisagens não europeias entrevistas, ele salienta menos o exotismo (da vegetação, dos costumes, das vestimentas etc.) e salienta mais o que lhe parece e julga como fora de moda. Em Tristes tropiques, anota: “Os trópicos são menos exóticos do que obsoletos (démodés).” As jovens nações crescem ultrapassadas porque são cópia tardia e servil do modelo metropolitano. A substituição do exótico pelo fora de moda alimenta um retorno imprevisto ao etnocentrismo, de que o etnógrafo quer, ou deveria, liberar-se. Essa espécie particular e ambígua de etnocentrismo se alimenta da noção fundamental de pureza original. Ela é uma espécie de pecado adâmico, ou seja, valor de que o não ocidental não deveria ter aberto mão no processo por que passou de colonização pelo Ocidente. No período posterior aos grandes descobrimentos, o sentido em flecha da história do mundo ratifica a verdade lévi-straussiana. Em outra passagem do livro, o viajante cosmopolita comenta: “[…] ter visitado a minha primeira universidade inglesa no campus de edifícios neogóticos de Daca, no Bengala oriental, incita-me agora a considerar a Universidade de Oxford como uma Índia que tivesse conseguido controlar a lama, o mofo e as exuberâncias da vegetação.” Ter visitado depois da colonização britânica a universidade-cópia, em Daca, da universidade-original, em Oxford, leva-o a considerar a qualidade do que é europeu: o controle da lama, do mofo e das exuberâncias da vegetação. Por sorte dos brasileiros, ele já tinha visitado na própria França a universidade-original que dá origem à USP, objeto da reflexão de Paulo Eduardo Arantes, em Um departamento francês de ultramar. Estudos sobre a formação da cultura filosófica uspiana (1994).
Cosmopolitismo e diversidade cultural
a América Latina recém-republicana e na África pós-colonial o cosmopolitismo ganha evidência como postura crítica em fins, respectivamente, do século XIX e do século XX. A função e o significado dessa militância podem ser aferidos nos escritos de intelectuais latino-americanos que se manifestam contra os nacionalismos provincianos e de pensadores africanos que se insurgem hoje contra a tomada de poder universal pelos fundamentalistas. O brasileiro Joaquim Nabuco esclareceu sua posição ideológica em Minha formação (1900). O ganense-britânico Kwane Anthony Appiah (n. 1954) resume com brilho a própria postura filosófica na conferência Mi cosmopolitismo (Katz, 2008). Se o primeiro se inspira no ideário kantiano, sucintamente levantado em coluna anterior, o segundo emerge da agenda multicultural que, ao final do século XX, ganha foros de nobreza nos arraiais universitários. Assinale-se que ambos expõem a teoria pela escrita autobiográfica. O cosmopolitismo de Appiah é dele por ter sido gerado em terra africana e em casamento abençoado, embora disparatado. É filho de mãe britânica e anglicana, descendente de normandos, e de pai ganense e metodista, da etnia axânti. Batizado em igreja metodista, Appiah estuda em escolas anglicanas. Saint George é a igreja da mãe, no entanto o corpo dela será velado na catedral metodista. A cidade onde nasce o pai, Kumasi, “é poliglota e multicultural: um lugar aberto ao mundo”. Por ter sido educado nos confins do império britânico, o pai “se formou no estudo dos clássicos; amava o latim”. A Bíblia figurava ao lado das obras de Cícero e de Marco Aurélio, filósofos estoicos formados na escola de Diógenes, o primeiro a se proclamar “cidadão do mundo” (kosmou polites). A expressão é metafórica, pois os cidadãos formam um Estado nacional e não há Estado mundial a que pertencer. Os pais levam o filho a enveredar pela “abertura onde se instalam gente e culturas que estão além dos limites estreitos em que foram criados”. Impregnado pelo multiculturalismo doméstico, o futuro professor de filosofia direciona estudos e pesquisa por um dos ideais do estoicismo – o cosmopolitismo. Dele extrai sua concepção multiculturalista, recheando-a com os ideais do Iluminismo europeu, com o projeto de paz perpétua, defendido por Kant, e com o nacionalismo romântico explorado por Herder. Na efervescência da globalização econômica, que excita a diáspora dos povos periféricos, o cosmopolitismo se faz necessário por ter abraçado o amplo leque da legítima diversidade humana. Seu ideário se apresenta em três vertentes. 1. Não necessitamos de um governo mundial único. 2. Devemos preocupar-nos pela sorte de todos os seres humanos, tanto os da nossa sociedade como os das outras. 3. Temos muito a ganhar nas conversações que atravessam as diferenças. O cosmopolitismo atual exorta o cidadão à reflexão ética, embora ganhe corpo com o nacionalismo. Não é alternativa, é complemento, já que as diferentes comunidades humanas
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têm o direito de viver de acordo com as próprias normas. Apresenta-se como universalidade mais diferença. Ainda a Diógenes remonta o elogio da tolerância como respeito às predileções de outra pessoa e da humildade em relação ao próprio conhecimento. Pluralidade e falibilidade encaminham e balizam a “conversação cosmopolita”, que passa por entre barreiras culturais, políticas, sociais, econômicas e religiosas. A conversação não visa à conversão absoluta de um ou do outro falante; seu propósito, afirma Appiah, é o aprendizado, além do ensino, é a escuta, além da fala. A conversação global é também uma metáfora. E o é porque só podemos conversar com os milhões de habitantes do planeta através da antropologia e da história, da literatura, do cinema e das notícias veiculadas pelos jornais, rádio, televisão e internet. Observa Appiah que talvez sejam necessárias ideias que beiram a banalidade, porque os dois inimigos do cosmopolitismo estão por toda parte: os que negam a legitimidade da universalidade e os que negam a legitimidade da diferença. Aos dois ele acrescenta os que compartem a crença pela universalidade, sem simpatia pela diferença. São os novos fundamentalistas. Religiosos, eles acreditam que para todos os homens “só há uma maneira correta de viver e que toda diferença deve reduzir-se aos detalhes”. Tal universalismo se expressa na uniformidade. Unam-se a nós e seremos todos irmãos e irmãs. Appiah discorda e subscreve Olivier Roy que, em Globalized Islam: the search for a new Ummah (2004), demonstra que se pode falar da harmonização (“compatibilidade”) do cosmopolitismo tanto com o cristianismo quanto com o islamismo. Roy escreve a respeito do último: “A globalização é uma boa oportunidade para dissociar o Islã de qualquer cultura dada e proporcionar um modelo que possa funcionar além de qualquer cultura estabelecida.” A harmonização das religiões universais com o cosmopolitismo passa pelo pluralismo, esclarece Appiah. E afirma: “Os cosmopolitas pensamos que existem muitos valores segundo os quais vale a pena viver e que não é possível viver de acordo com todos eles. Como consequência, abrigamos a esperança e a expectativa de que diversas pessoas e sociedades modelem valores diferentes.” Nossa falibilidade implica que, ao contrário dos fundamentalistas, aceitemos nosso saber como imperfeito e provisório e a ser revisto à luz de nova evidência. Os atuais cosmopolitas creem na verdade universal, ainda que tenham menos certeza de tê-la encontrado. A guiá-los não está o ceticismo, mas a convicção realista de que a verdade é difícil de ser encontrada. Conclui: “não aprendi o cosmopolitismo na Inglaterra ou nos Estados Unidos, mas em Gana: meu país natal.”
Cara de um, focinho do outro
arte da minha vida profissional se passou no estrangeiro. Nos simpósios internacionais, acostumei-me a perceber o modo como a América hispânica era sobreposta à América Latina, obrigando a língua portuguesa e a cultura brasileira a se afirmarem solitariamente. Talentoso discípulo de Octavio Paz, Gustavo Krause repete a identidade equivocada no prefácio de Ficando para trás (Rocco, 2010), coletânea de ensaios sobre o desenvolvimento sustentável, organizada por Francis Fukuyama em 2005, cujo subtítulo diz o essencial: “Explicando a crescente distância entre a América Latina e os Estados Unidos.” Krause assevera que a América Latina está “unida por uma [sic] língua, uma história, um conjunto de tradições e pela cultura”. Hoje, as novas gerações desfazem o deficit identitário. Alavancados pela esperança do Mercosul, os jovens pesquisadores universitários hispânicos e brasileiros transitam com conhecimento pelas duas línguas europeias nacionais e as várias indígenas e africanas, pelas histórias locais concorrentes, pelos conjuntos distintos de tradições, perfazendo, aí sim, uma única história, em muito semelhante à dos Estados Unidos, onde são as diferenças que saem em busca da afirmação identitária. Isso significa que as “fronteiras políticas, as disputas incontáveis, as barreiras geográficas e os eventos aleatórios” estejam sendo minimizados, embora ainda existam e pipoquem. Este é, por exemplo, o caso do contencioso entre Colômbia e Venezuela. Ao tomar como referência o discurso expositivo, o crítico de formação literária percebe como a incontestável erudição dos ensaístas se vale do modo descritivo para encaminhar ao leitor, no tocante ao ideal de desenvolvimento sustentável, dados sobre os extremos opostos dos Estados Unidos e da América Latina. Desenvolvimento é definido como forma de progresso material a ser alcançado “com políticas macroeconômicas prudentes”, de que é exemplo o governo dos presidentes Lula e Kirchner. O objetivo do modo descritivo é o de tornar evidente uma crescente “lacuna” entre as duas regiões, a ser preenchida pelo discurso científico consensual da maioria dos expositores. Pela monocronia, o saber científico ideologiza o teor das competentes contribuições acadêmicas que, se aplicadas ao pé da letra, tornariam perfectível o desempenho latino. Os fatores que “não explicam a lacuna” são imputados a estudiosos divergentes, como o argentino Tulio Halperin Donghi, ou ausentes ilustres, como o americano Jeffrey Sachs. Nos ensaios de fundo econômico, os números e os dados estatísticos, que dizem mentir menos que as palavras, reforçam o já convincente modo descritivo erudito, emprestando-lhe características de terreno minado pelo parti pris propício à tese única, a da distância crescente entre o sucesso ao Norte e o fracasso ao Sul, cujo intuito se esclarece na conclusão. Nesta, com a ajuda do melhor estilo leninista, ousa-se propor aos latino-americanos “O que fazer”. O
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receituário da coletânea pressupõe boas políticas econômicas, reformas institucionais, atenção à política (ou ao populismo, caso se aclare o subtexto) e, finalmente, políticas sociais inteligentes. As políticas macroeconômicas responsáveis, alerta Fukuyama, são o melhor antídoto contra o populismo, que apenas “oferece soluções de curto prazo que na verdade pioram as perspectivas a longo prazo dos pobres”. Não teria sido aconselhável que o modo descritivo adotado pelos expositores perdesse o equilíbrio herdado do “Consenso de Washington” (1990), para acolher e analisar de modo contrastivo os extremos que, depois da implosão das torres gêmeas e da guerra no Iraque, coexistem nas duas regiões do subcontinente americano? Por que é que, quando se fala da escravidão africana no subcontinente, minimizam-se as alusões ao racismo na América do Norte e se maximizam os horrores do regime como “defeito de crescimento” na América Latina? Por serem pouco nuançados em matéria de contrastes, a maioria dos ensaios de Ficando para trás se apresenta como o avesso de filmes também tendenciosos e monocromáticos, como Dogville (2003) e Manderlay (2005), do dinamarquês Lars Van Trier. Aprende-se com a cara de um, se se sabe que ela é o focinho dum outro. Se a metodologia calcada em contrastes deve ser, pois, elogiada, já que conduz o leitoraprendiz ao pleno conhecimento das diferenças que o constituem, sem que delas se tivesse dado conta, deve ser, no entanto, relativizada caso o encaminhe para a ideia de modelo superior de desenvolvimento, a ser imitado. Somos mais bem construídos por pedagogia que incentiva a rejeição a modelo dado como consensual por uma das partes. Pela atitude crítica precoce seremos, na idade madura, melhores construtores do saber e da ação democráticos. A estrita obediência a qualquer modelo dado como superior inibe a experimentação e a criação que existem de modo latente em todo ser ou grupo humano carente de aperfeiçoamento. Durante as guerras da Independência levadas a cabo por Simón Bolívar, o pensador venezuelano Simón Rodríguez (1769-1852) escreveu nosso futuro: “Ou inventamos ou erramos.” O organizador do volume nos leva a descobrir que a Argentina é a nação da América Latina que “tem menos desculpas para ser subdesenvolvida”. O adeus ao pensamento tendencioso dos competentes analistas de Ficando para trás é dado pelo elenco das razões positivas que não justificam o malogro dos vizinhos. Aquele país está em zona temperada (e não tropical), tem recursos agrícolas abundantes e acesso ao comércio internacional. Não começou como império escravagista e por isso tem poucos conflitos étnicos. Os imigrantes são quase todos europeus “e não muito diferentes dos que se estabeleceram na América do Norte”. Trouxeram consigo instituições europeias. A receita é boa; o bolo, no entanto, solou no forno apenas morno dos pampas. Don’t cry for me Argentina!, canta Evita Perón com a voz de Madonna.
Formação e inserção
o título dos relatos sobre brasileiros e dos tratados sobre nossa sociedade, escritos e publicados no finado século XX, há um vocábulo recorrente. Refiro-me a “formação”. Citemos alguns exemplos notáveis: Minha formação (1900), de Joaquim Nabuco, Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Júnior, Formação da literatura brasileira (1957), de Antônio Cândido, e Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado. Seria longa a tarefa de apreender os significados do vocábulo recorrente e dos respectivos contextos. Tampouco seria sensato adotar um significado para “formação” em detrimento dos outros. No entanto, caso se recorra ao conceito de “episteme” como definido na história das ideias por Michel Foucault, pode-se considerá-lo elástico na sua rentabilidade discursiva. E intenso na multiplicidade de visões históricas e de versões identitárias de Brasil, a que ele deu curso. Ao se elevar à condição de paradigma, “formação” funda e estrutura no século XX brasileiro os múltiplos saberes confessionais, artísticos e científicos que compartilham − a despeito de suas especificidades e apesar de versar sobre objetos diferentes − determinadas formas ou características gerais do nosso ser e estar em desenvolvimento. De posse do paradigma formação, o analista destrinça não tanto os discursos acabados sobre o brasileiro ou a sociedade brasileira, sobre a nossa literatura ou a nossa economia, de responsabilidade de X ou de Y, mas as condições materiais e linguísticas da produção de um feixe exemplar de discursos afins e complementares. O jogo semântico é inevitável. No sentido que lhe empresta Caio Prado Jr., o de construção do Brasil moderno, “formação” reativa uma rede discursiva de carga histórica que arrebata o adolescente letrado no período de sua “formação”, agora tomada no sentido que lhe empresta Joaquim Nabuco, o do amadurecimento pessoal e cultural do cidadão brasileiro. Neste caso, formação confunde-se com o conceito europeu de “self-fashioning” (automodelagem), desenvolvido por Stephen Greenblatt em leitura das peças de Shakespeare (Renaissance Self-Fashioning, 1980). No século XIX brasileiro, quando o discurso propriamente colonial europeu perde sua razão de ser e sua forma, ele é substituído por uma força discursiva pós-colonial, semiautônoma, que explora sua eficácia civilizacional nos efeitos pragmáticos da linguagem. Benedict Anderson cunhou o termo “comunidade imaginada”. Dissemina-se um leque de discursos subjetivos e objetivos, originais e concorrentes, que levam avante, graças ao impulso do paradigma formação, a autorreflexão sobre a identidade do sujeito autônomo (o brasileiro) e a descrição objetiva do espaço social e político, emancipado e informe (o Brasil), que passa a ser e estará sendo bem ou mal governado por nós em liberdade. Formação vem qualificada, seja por possessivo (minha/nossa), seja por adjetivo pátrio (brasileiro), seja finalmente por disciplina acadêmica (literatura, economia etc.). Na hipótese derradeira, o discurso de formação – esteja ou não o vocábulo no título do livro – é dado como
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agônico e faz sentido discutir sua rota. Ao recorrer à teoria finalista, o historiador alerta para os equívocos ideológicos na análise do desenvolvimento nacional. Na evolução do colonial e na formação do nacional, o sujeito e o espaço da governabilidade vieram sendo recobertos e compreendidos por “ideias fora do lugar”. A discussão finalista não opera um corte epistemológico, para retomar Foucault. Apenas almeja corrigir a órbita liberal, onde os discursos de formação, necessariamente identitários, estiveram sendo produzidos e por onde circulavam em infração. O problema do desenvolvimento nacional nunca deixará de ser alicerce e impulso para a reflexão, daí que a agonia do discurso de formação seja mero cansaço epistemológico. Este, no entanto, assinala que o paradigma está a perder a condição de prioritário. A exaustão deriva de transformações significativas na definição de prioridades nacionais, das prioridades materiais no novo milênio que exigem outro feixe de discursos afins e complementares, que constituirão novo paradigma. As prioridades lançam outra perspectiva de pesquisa e, sugestionadas por ela, produzem-se novas visões e versões do cidadão brasileiro e da nossa sociedade. Tendo sido esclarecido (e não resolvido) o modo como o sujeito brasileiro se automodelou como cidadão e acomodou a emancipação de uma sociedade moderna nos trópicos, delega-se hoje ao Estado nacional democrático papel e funções internacionais. Cosmopolita, a nação está habilitada a tomar assento no plenário das nações. Automodelado, o sujeito discursivo – confessional, artístico ou científico − pode e deve dar-se ao luxo da autocrítica e da crítica em novo paradigma. A iminência do corte epistemológico nos leva a detectar um buraco de grandes proporções no discurso de formação, que foi escavado pela ignorância no tocante a novas questões e a novos objetos. Hoje, a produção discursiva deve fundar e disseminar novo paradigma – a que ouso nomear como o da “inserção”. Faz-se urgente dar uma posição à “inserção da linguagem-Brasil em contexto universal”, para retomar palavras premonitórias de Hélio Oiticica no texto “Brasil diarreia” (Arte brasileira hoje, 1973). Inserir a linguagem-Brasil em contexto universal traduz a vontade de situar um problema que se alienaria fosse ele local, pois problemas locais − se se fragmentam quando expostos a uma problemática universal − não significam nada. Tornam-se irrelevantes se situados somente em relação a interesses locais. E Hélio conclui: “A urgência dessa ‘colocação de valores’ num contexto universal é o que deve preocupar realmente àqueles que procuram uma ‘saída’ para o problema brasileiro.”
A comida da arte e da ciência
eitores atentos de Oswald de Andrade lembram que o Manifesto antropófago (1928) distingue a alta da baixa antropofagia. A alta antropofagia recobre, por metáfora, o pioneirismo da reflexão sobre a cultura no Brasil e o avanço iminente da nossa arte de vanguarda, contanto que as raízes indígenas sejam preservadas com alegria e assumidas sem preconceito etnocêntrico. Datado de 374, o Manifesto antropófago não se inscreve no calendário gregoriano nem no eclesiástico. A história do Brasil começa no ano em que o bispo Sardinha é deglutido pelos índios caetés. O bom humor induz a ironia; é corrosivo e demolidor. Ainda abusando da metáfora, o manifesto reza que a baixa antropofagia está “aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados”. Oswald alerta: “É contra ela que estamos agindo.” A distinção inicial se desdobra. A baixa antropofagia tomou os brasileiros por objeto, transformando-nos em povo culto e cristianizado. A alta nos elevará à condição de sujeito da história nacional, capaz de atualizar a pujança recalcada de povo primitivo e selvagem. Distinções e preferência visam a limpar o porvir brasileiro do entulho civilizatório com que a Europa nos distinguiu durante a colonização. Leiam-se estes dois aforismos tomados do manifesto. “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi carnaval.” “O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça.” O sentido das distinções possibilita que não se julgue como pecado cristão o canibalismo, prática comum entre os guerreiros tupinambás. A transgressão sanguinária suplementa a regra do convívio pacífico. É o espírito do ritual religioso. Em tempos de guerra, o tupinambá converte o inimigo em alimento. Manifesta a superioridade diante do adversário e se apropria da sua astúcia e força. Apenas aludido no manifesto, o terceiro e original sentido da antropofagia brasileira é matéria da tese La religion des tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani (saliento o capítulo IX), defendida na Sorbonne pelo etnógrafo suíço Alfred Métraux, em 1928. A tradução para o português da tese foi publicada na coleção Brasiliana. A última edição data de 1979, hoje nos sebos. Em 1928, Oswald e Métraux exclamavam: “Lá vem a nossa comida pulando.” Artista e cientista comem do mesmo prato. Não é apenas Métraux que cai no ostracismo. O sociólogo e político Florestan Fernandes fez jus ao título de mestre com a dissertação A organização social dos Tupinambá e ao de doutor pela USP com a tese Função social da guerra na sociedade tupinambá (1951). Assistente de Roger Bastide, Florestan redirecionará a pesquisa com A integração do negro na sociedade de classes (1964). Enquanto Paraty consagra o antropófago Oswald e relega ao segundo plano o etnógrafo
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suíço e o sociólogo brasileiro, nome e obra de Métraux, apesar de resgatados no catálogo da Bienal de São Paulo de 1998, são relançados na Argentina. Refiro-me ao volume Antropofagia y cultura (El Cuenco de la Plata, 2011), que vem precedido de prefácio de fôlego e erudito, assinado pelo portenho-catarinense Raúl Antelo. Dele falaremos. O principal interesse do prefácio é o de dar continuidade aos ensaios divulgados pelo catálogo da Bienal de 1998, onde, ao se acertar os ponteiros do relógio Europa pelo meridiano latino-americano, se desconstrói o eurocentrismo. O pioneirismo de Métraux e a presença silenciosa de Oswald transparecem nas manifestações artísticas e nas pesquisas etnográficas francesas, dedicadas principalmente ao continente africano. Métraux e Oswald são contemporâneos da revista Documents, 1929, da missão Dakar-Djibouti, 1931-1933, da criação do Musée de l’Homme, 1937, e dos seus teóricos e artistas, entre eles o psicanalista Jacques Lacan. Ainda em 1921, o jovem Métraux encontra na École nationale des Chartes o futuro secretário-geral da revista Documents, Georges Bataille. O suíço lhe fala com entusiasmo dos cursos de Marcel Mauss e da prática do potlach (troca de presentes) por ele estudada na Melanésia. Bataille torna-se também aluno de Mauss. Dos cursos do mestre os dois discípulos retiram um dos princípios que os nortearão: “No tocante a sua estrutura, a cultura é ambivalente, já que inclui tanto a regra quanto a sua transgressão.” Dele decorre importante lição da teoria sobre o moderno: não há como aprofundar uma análise do que nos é próprio e atual sem uma minuciosa reconstrução do que é distante. Nas palavras de Métraux: “À semelhança do biólogo que busca nos organismos elementares a descoberta das leis da vida que regem os seres mais evoluídos, o etnógrafo, para melhor compreender o conjunto de atitudes mentais e emotivas que fazem o homem, se volta para todas as formas simples da civilização.” Métraux não vê, pois, qualquer ressaibo de arcaísmo no canibalismo ritual tupinambá. Obsoletas seriam as sociedades totalitárias modernas (ele escreve nos anos 1930) que se organizam e se autodestroem pela força estruturante do valor de pureza. Em seguida, o etnógrafo explora o nacionalismo antropofágico, levando-o a atuar em análise da América Latina às vésperas da Segunda Grande Guerra: “Há sociedades cuja estrutura, ainda que complexa, é de grande banalidade.” São vulgares e estéreis os povos que vivem de empréstimo e se mostram incapazes de integrar num todo harmônico o que tomam dos demais. Essas nações “não souberam encontrar um ideal coletivo em torno do qual teria sido possível reunir e ordenar suas instituições e suas atividades”. E bate na mesma tecla do manifesto de Oswald: “Entre as nações civilizadas há também certo número que, por debaixo da máscara da civilização europeia, tenta dissimular uma existência ridícula e mesquinha.”
Estética radical
os estudos literários, o conceito de subalterno é recente e pode ser datado. Aparece na década de 1980, quando emerge na América hispânica um subgênero de autobiografia, a autobiografia dos destituídos, logo classificada como “testimonio”. Um escritor decide emprestar a palavra literária a um líder comunitário popular, desprovido da escrita e do livro pelas razões que o lado escuro da colonização europeia do Novo Mundo explica. Por virem tensionados pela alta voltagem da retórica revolucionária, os testimonios alcançam sucesso imediato. A figura carismática da indígena guatemalteca Rigoberta Menchú, de extração maiaguiché, tornou-se emblemática do subgênero testimonio. Publicada em 1982, sua autobiografia, Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la conciencia, foi traduzida para o português pela Editora Paz e Terra. O livro levaria Rigoberta ao cobiçado prêmio Nobel da Paz em 1992, ano em que se comemorou a descoberta da América. A partir de entrevistas, Me llamo Rigoberta Menchú foi escrito pela venezuelana Elisabeth Burgos, então esposa do ativista e intelectual francês Régis Debray, cuja prisão e liberação nos anos de chumbo bolivianos foram acompanhadas pelos brasileiros. O testemunho (ousemos aclimatar o espanholismo) retoma experiências menos politizadas da antropologia mexicana moderna. Escrito por Ricardo Pozas, Juan Pérez Jolote (1948) é a biografia dum índio nascido e criado na hoje explosiva região de Chiapas. O subgênero dialoga também com a antropologia urbana americana, de onde saem as narrativas de Oscar Lewis, de que é exemplo A vida (Nova Época, 1973), uma sofrida história da família porto-riquenha Ríos em Nova York, publicada em 1966. Por ser de uso recente, a categoria de subalterno guarda sua atualidade. Surge no momento em que, por adesão à democracia, os governos nacionais hispano-americanos rechaçam o projeto de uniformização dos povos indígenas por sua inclusão indiscriminada na classe operária, como aconteceu à época do governo Lázaro Cárdenas (década de 1930). Rechaçamno porque já desconfiam da modernização industrial descontrolada que, nos países em desenvolvimento, vilipendia as culturas autóctones e o meio ambiente. Desenvolvimentistas, acatam, no entanto, o que a socióloga brasileira Lélia Gonzáles (1935-1994) chamou de “recuo pedagógico” frente às culturas indígenas e africanas que, no Brasil, eram cultivadas apenas na vida privada dos descendentes. Nas Américas, o interesse pelo subalterno se transformou em bandeira de lideranças indígenas revolucionárias, de que é bom exemplo o presidente Evo Morales. Ao final do século XX, o testimonio inverte os sinais ideológicos das autobiografias dos pequeno-burgueses europeus no século XIX. Refiro-me aos relatos autobiográficos de figuras enriquecidas pela indústria e o comércio, ou pelo exercício de profissão liberal, mas sem
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reconhecimento na própria comunidade. Na busca da glória, o novo-rico pagava um ghost writer para escrever sua autobiografia e disseminá-la por editora mambembe. A autobiografia do pequeno-burguês é semelhante aos portraits dos “infames” (salauds) exibidos em museu francês da província, de que fala Jean-Paul Sartre no romance A náusea. O crítico francês Philippe Lejeune tem texto definitivo sobre “a autobiografia dos que, no século XIX, não sabiam escrever”. Está no livro Je est un autre (Seuil, 1980, ainda sem tradução). Entre nós, a autobiografia Quarto de despejo (Ática, 2007), da favelada Carolina Maria de Jesus, seria exemplo precursor e legítimo de testimonio. O jornalista Audálio Dantas teria emprestado forma literária aos diários de Carolina. Publicado em 1960, antes, portanto, do tempo propício para sua boa divulgação, Quarto de despejo foi pouco notado fora do Brasil, mas hoje se encontra traduzido em treze idiomas. Os relatos de Rigoberta e de Carolina ainda despertam controvérsias. Os interessados em Carolina podem consultar os livros do seu fiel estudioso, José Carlos Sebe Bom Meihy. Nos estudos literários brasileiros, o conceito que melhor traduz subalterno, embora dele não apreenda as nuanças pós-modernas, é o de pobre. Penso, por exemplo, em Os pobres na literatura brasileira (Brasiliense, 1983), coleção de ensaios organizada por Roberto Schwarz. Trinta estudiosos traçam um panorama das nossas letras que vai dos “vadios na literatura colonial do século XVIII” à “conspiração do silêncio” das mulheres de Tijucopapo (alusão a romance de Marilene Felinto). O conceito de pobre – como o de subalterno – tem uso analítico elástico e eficiente, propício a outra apreensão das letras nacionais, cujo chão seria pavimentado pela “história dos vencidos”, para usar a nomenclatura consensual. Roberto conclui o prefácio à coleção de estudos, afirmando que “a situação da literatura diante da pobreza é uma questão estética radical”. À semelhança da proposta feita por Roberto aos críticos literários brasileiros, John Beverley, notável especialista da subalternidade, valeu-se do contexto atual da categoria para melhor analisar e interpretar não só uma figura clássica do Siglo de Oro espanhol, o pícaro, como também personalidades e personagens da literatura contemporânea. De leitura obrigatória seria a coletânea de seus ensaios intitulada Testimonio: on the politics of truth (University of Minnesota Press, 2004). Os leitores interessados pela questão, tal como proposta nos estudos hispano-americanos e asiáticos, têm agora um bom guia em português. Trata-se do ensaio Pode o subalterno falar? (Editora da UFMG, 2010), da pesquisadora indiana Gaiatri Spivak, tradutora de Jacques Derrida e professora na Universidade de Columbia, em Nova York.
Hegel e o Haiti
professora Susan Buck-Morss explodiu a primeira bomba filosófica do milênio ao aproximar do filósofo alemão Hegel a Revolução Haitiana, que levou os ex-escravos daquela colônia a conquistarem a independência da França em 1º de janeiro de 1804. No verão do ano 2000, ela publicou na revista Critical Inquiry “Hegel and Haiti”, ensaio explosivo que, acrescido de apêndices, seria retomado em livro, Hegel, Haiti, and Universal History (University of Pittsburgh Press, 2009). O ensaio inaugural sai publicado na revista Novos Estudos (n. 90, julho 2011), em cuidadosa tradução de Sebastião Nascimento. A combinação não é apenas inesperada. Abre divergências. O desenrolar dos acontecimentos políticos liderados pelo ex-escravo Jean-Jacques Dessalines teria sido acompanhado por Hegel nas páginas da revista alemã Minerva, conformada aos ideais sociais da franco-maçonaria radical, e estaria por detrás – seria a principal fonte − da célebre passagem da Fenomenologia do espírito (escrita entre 1805 e 1806 e publicada em 1807), onde se enuncia a dialética entre senhor e escravo. Como metáfora, senhor/escravo recobre a luta de vida ou morte entre escravidão e liberdade, que caracteriza as relações de poder na Europa iluminista e o escândalo da exploração do não europeu nas colônias. Caem por terra tanto as referências eruditas a Aristóteles e a Fichte, quanto a tese de que a metáfora não provém dos antigos, já que é exemplo totalmente abstrato. Susan subscreve Michel-Rolph Trouillot que, em Silencing the past (hoje em e-book), afirma que “a Revolução Haitiana entrou na história com a característica peculiar de continuar sendo impensável, mesmo enquanto acontecia”. No entanto ela foi, prossegue Susan, “a prova de fogo para os ideais do Iluminismo francês”. Ao deixar aflorar o silêncio dos especialistas no tocante à aproximação, cuja evidência é demonstrada no ensaio, Susan assassina três princípios que norteiam o estudo de fontes na universidade e nos estudos hegelianos, para demonstrar como a lenta construção de um objeto de pesquisa pode tanto iluminá-lo quanto escondê-lo. Depende. A primeira bala de Susan vai de encontro aos discursos disciplinares sobre o conhecimento: “Hoje em dia, quando a revolução dos escravos haitianos pode parecer mais pensável, ela é mais invisível, devido à construção dos discursos disciplinares, por meio dos quais herdamos o conhecimento sobre o passado.” Como momento definidor da história universal, a Revolução Haitiana “se assenta numa encruzilhada de múltiplos discursos disciplinares”, que só serão destrinchados por metodologia pluridisciplinar. Acrescenta: “Fronteiras disciplinares fazem com que as evidências contrárias virem problemas dos outros.” Escritos na fronteira entre história, ciência política e filosofia, os ensaios trazem uma concepção de história universal cujo voo é impulsionado mais pelo método e menos pelo conteúdo. Trata-se de buscar orientação, de chegar a uma reflexão filosófica alicerçada em
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material concreto, cujo ordenamento conceitual lança luz sobre o presente político. A história como filosofia política salvaguarda a intenção universal da modernidade ocidental no ato paradoxal de descentrar o seu legado. Hegel comunga com Jacques Derrida. Ela não conclama a uma pluralidade de modernidades alternativas. “A verdade não muda; nós é que mudamos.” A segunda bala assassina atinge os leitores de Hegel que não percebem que “até mesmo os mais abstratos termos do vocabulário conceitual do filósofo são derivados da sua experiência cotidiana” e – se acrescentará páginas adiante − da leitura de jornais e de revistas. A seu favor, Susan reporta-se ao momento em que Hegel abandona as categorias de “burguês” e de “civil”, aplicadas à sociedade, para endossar, a partir da análise de Adam Smith sobre a fabricação de alfinetes, uma visão comprometida com a nova economia – “necessidade e trabalho é que criam um sistema monstruoso de dependência mútua”. Fatos, afirma Susan, não são importantes como informação de significados fixos, são caminhos que continuam a surpreender-nos. Fatos devem inspirar a imaginação e não acorrentá-la ao chão. A terceira bala assassina vai de encontro aos marxistas que propõem uma apropriação social da dialética hegeliana. A metáfora senhor/escravo perdia a referência literal e passava a recobrir a luta de classes. Não está em questão o brilho das análises de Geörg Lukács, Herbert Marcuse ou Alexandre Kojève, esclarece Susan. E se explica: “O problema é que, dentre todos os leitores, os marxistas (brancos) foram os menos propensos a considerar a escravidão real como algo significante, uma vez que, em sua concepção etapista da história, a escravidão – não importando quão contemporânea – era vista como uma instituição pré-moderna, banida da história e relegada ao passado.” Conclui: “Há um elemento de racismo implícito no marxismo oficial, ao menos por conta da história como uma progressão teleológica.” O elemento implícito torna-se explícito na recusa dos marxistas (brancos) em aceitar a tese também de inspiração marxista do historiador jamaicano Eric Williams, expressa em Capitalismo e escravidão, livro publicado em 1944 e traduzido em 2012 pela Companhia das Letras: “A escravidão do sistema plantation é uma instituição quintessencialmente moderna de exploração capitalista.” Apesar de esclarecer as possíveis relações entre os redatores da revista alemã Minerva e os francos-maçons, apesar de conduzir com habilidade as leituras latentes nos escritos de Hegel que indiciam seu conhecimento da bibliografia, Susan alerta para o fato de que “sabemos muito pouco sobre a maçonaria no Atlântico negro/pardo/branco, um capítulo de relevo na história da hibridez e da transculturação”. Reabrem-se as portas da pesquisa.
Nacionalismo e estética
atéria obrigatória nos tratados sobre o modo como o Novo Mundo indígena se tornou cópia da Europa, as análises sobre a nossa ocidentalização não fazem jus às reflexões radicais sobre a operação histórica equivalente, ocorrida no Japão a partir do século XVIII. O fluxo da europeização japonesa ganhou volume durante a restauração Meiji (1868-1912), arrastou dois imperadores e uma Constituição inspirada no direito alemão (1889). Passou pelo colapso do Xogunato Tokugawa e a adoção do xintoísmo como religião do Estado, por guerras regionais e a militarização imperial. E desaguou no oceano belicoso que, ao final dos anos 1930, levou a nação a se aliar às tropas do Eixo. As irrupções de rebeldia e de revolta nacionalista ocorridas nas Américas não têm a intensidade, a ousadia e a reivindicação de universalidade propostas pela dolorida e sofisticada reação dos japoneses à sobreposição das conquistas técnicas ocidentais à sua vida cotidiana, entendendo-se por esta uma visão popular e estética de mundo. A cultura do povo reage pelo jingoísmo, e o nacionalismo ilustrado, pela estética. Os dois pares se casam de maneira notável e constrangedora no ensaio Em louvor da sombra (Companhia das Letras, 2007), obra-prima do romancista Junichiro Tanizaki. Publicado em 1933, Em louvor da sombra rechaça as conquistas científicas impostas ao Oriente, a fim de retrabalhar a tradição japonesa, então em desvio fatal e (ainda que não se pudesse prever na data) à beira de catástrofe mundial. A reação ufanista se ampara na frágil e agressiva “imaginação do artista”, visto que a realidade já era presa da modernização ocidental. O absurdo encanto do ensaio de Junichiro – e talvez sua atualidade num planeta convulso e de novo atravessado por nacionalismos – resulta de “devaneios” de fundo abstrato, cujo forte é a restauração do passado nipônico pelo elogio de pormenores obsessivos e sedutores. A conjunção “se” dá o chute inicial e formula hipóteses inconformadas e vadias sobre o Japão gorado. Os inventos técnicos de uso prático − se tivessem trilhado um rumo original no Japão − teriam exercido ampla influência sobre o cotidiano e sobre a estrutura política, religiosa, artística e industrial. Por exemplo: “Imaginar quão diferente seria o aspecto atual da sociedade japonesa se uma cultura científica única, diversa da ocidental, houvesse prosperado no Oriente.” Recolho uma divagação pitoresca: “Se a caneta-tinteiro tivesse sido inventada na Antiguidade por japoneses ou chineses, não traria uma pena metálica adaptada à sua ponta, mas um tufo semelhante ao de pincel, feito de pelos.” A tinta não teria a cor azulada. Seria um tipo de sumi (tinta mais barata que o nanquim), a escorrer aos poucos do corpo da caneta para o pincel. O papel teria de ser semelhante ao japonês (washi) e “as discussões sobre a romanização da escrita japonesa não teriam campo para se expandir e, por outro lado, teriam fortalecido a preferência popular pela escrita de nomes ocidentais com ideogramas”. Ezra
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Pound e os irmãos Campos aplaudiriam. Se poético o devaneio, é imperial o caminho industrial franqueado: “Em lento e cuidadoso progresso, um dia talvez viéssemos a descobrir substitutos para os trens, os aviões e os rádios atuais, inventos não mais tomados de empréstimo de outras civilizações, e sim conveniências modernas adequadas realmente ao nosso modo de vida.” Inventados por japoneses, filmes e reveladores químicos apreenderiam melhor o ambiente de sombras em que vive o japonês, sua cor de pele e aparência física. O rádio e o fonógrafo ressaltariam o timbre de voz do oriental e a sonoridade dos seus instrumentos musicais. Reproduzidas em bolachas, elipses e pausas perdem a graça. No Ocidente, prata, ferro ou cobre são usados na fabricação de aparelhos de jantar e talheres, que são polidos até brilhar. Devaneia o artista: “Nós, os japoneses, sentimos desassossego diante de objetos cintilantes […]. As coisas que apreciamos como belas e requintadas têm em sua composição parcelas de sujeira e de desasseio.” A verdadeira beleza dos objetos de uso doméstico não está no branco imaculado da porcelana, está na laca, que só se revela plenamente na penumbra. “A sombra”, Junichiro arremata, “é elemento indispensável à beleza dos utensílios laqueados.” Reaparecem o cá e o lá de Gonçalves Dias. A beleza das igrejas góticas reside em suas torres altaneiras. No Japão, sobressaem o telhado de telha ou de colmo e o extenso beiral. Ao construir uma residência, o japonês abre primeiro um guarda-sol – o telhado – para projetar um pedaço de sombra na terra. Na ausência de tijolo, vidraça ou concreto, o beiral alongado protege o morador das arremetidas de chuva. Nesse espaço sombrio, levantam-se a casa popular, o palácio ou o templo. Lá dentro, na penumbra, é que os antepassados descobriram “a beleza na sombra e, com o tempo, aprenderam a usar a sombra para favorecer o belo” e “dela tirar efeitos estéticos”. Dentro de casa, os arranjos florais – continua o ensaísta – visam antes a acrescentar profundidade à sombra do que a exercer função decorativa. O elogio da sombra no processo de restauração dos valores orientais se confunde com o projeto literário de Junichiro Tanizaki, que pretende “invalidar” as desvantagens técnicas e culturais decorrentes do processo de ocidentalização do Japão. Confessa ele no parágrafo final do ensaio: “Quanto a mim, gostaria de fazer reviver, pelo menos no campo literário, esse universo de sombra que estamos prestes a dissipar.” Continua: “Gostaria de projetar um beiral amplo para o santuário da Literatura. Pintar as paredes de cores sombrias, enfurnar nas trevas tudo o que se destaca em demasia e eliminar os enfeites desnecessários.” E convoca: “E agora: vamos apagar as luzes elétricas para ver como fica.”
Londres, capital do século XVIII
s vésperas da Inconfidência Mineira, o patriarca letrado mandava o filho adulto estudar na Europa. Lá este tinha contato com pessoas e ideias que enegreciam os fantasmas pátrios. Matriculado na Faculdade de Medicina de Montpellier (França), Vendek, codinome do futuro inconfidente Maia e Barbalho, se atreve a enviar carta a Thomas Jefferson, então presidente dos Estados Unidos. Ela se tornaria documento-chave na historiografia brasileira. Escreve o acadêmico carioca: “O senhor sabe que minha pátria geme numa escravidão abjeta que, desde o momento da gloriosa independência norte-americana, se torna cada vez mais insuportável.” Nas últimas linhas, conjura: “É preciso fazer nossa liberdade reviver.” O resto está nos volumes dos Autos de devassa (encontrados em sebos ou em bibliotecas). O exemplo é instrutivo na avaliação do livro de Julie Flavell, When London was the capital of America (Yale University Press, 2010), que recobre o dia a dia de abastadas famílias de colonos norte-americanos que, antes da Declaração da Independência, em 1776, elegem Londres como morada. Associados aos pares das colônias britânicas no Caribe, fazendeiros sulistas e comerciantes bostonianos, suas esposas, filhos e escravos domésticos se instalam na capital do século XVIII. A publicação de documentos pessoais e os estudos especializados em história se multiplicaram. Flavell nos entrega a preciosa síntese, hoje indispensável aos estudiosos do período colonial. Ao final do livro, bibliografia e notas são tão úteis quanto o texto. Em 1771, chega a Londres Henry Laurens, 47 anos, viúvo e abastado rizicultor sulista. Vem com a intenção de dar boa educação a Henry e John, filhos menores. Em casa de parentes, ficaram Patsy e Mary. A família senhorial se faz acompanhar do escravo Scipio, que tinha prometido bom comportamento, e se incorpora a outras cinquenta famílias sulistas, já residentes. Elege morar em pleno coração da aristocracia e da burguesia londrina, em casa próxima de Downing Street. Henry e John são logo matriculados em escola bem conceituada e terão Scipio como acompanhante (footman-valet). Naquela década, são quinze mil os negros em Londres. Sobressai a figura de Soubise, o ex-escravo caribenho então favorito da duquesa de Queensberry. Até as guerras da Independência americana, o clima reinante entre os colonos abastados e distantes da pátria é o de imitação dos valores da burguesia londrina. O futuro inconfidente ia estudar em Portugal ou na França e viajava só. A palavra “liberdade” é chave mestra na fala e nos escritos do brasileiro europeizado. A indispensável rebeldia na pátria ausente contrasta com a busca do bem-estar cosmopolita para o viúvo e os filhos menores, órfãos de mãe. Para os Laurens, Londres não era cidade estrangeira. Às famílias dos fazendeiros de tabaco e de arroz, moradores no West End londrino, somam-se os escravos africanos, que logo se associam aos serviçais remunerados e sorriem à espera da gorjeta (vails) dos senhores. Aos
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estudantes folgazões e boêmios se somam os comerciantes ianques, dispostos a se tornarem mais ricos na metrópole. Aos deslumbrados artistas e cientistas provincianos se somam os caubóis (frontiersmen), que já então encantavam as multidões. Os especuladores imobiliários americanos dominam Whitehall. Antes de ser muralha, o Atlântico é autoestrada, mais rápida que os caminhos regionais na pátria. Do capítulo “Escada acima, escada abaixo”, desentranhemos Scipio e demais africanos em Londres. O escravo doméstico fica mais em conta para os colonos que o criado inglês, embora pudesse transformar-se em arma temível. Segundo Sir John Fielding, ao se inserir entre os semelhantes britânicos, ele “se intoxica com a sensação de liberdade e espera salário” e, de volta às fazendas do sul, “inspira insurreições”. A viagem serve-lhe também para que mude o nome. Scipio, por exemplo, descobre que o hábito sulista de dar nome romano a escravo já é piada nos jornais londrinos. Nas charges, lê-se: “Domiciano, mate-me aquela mosca”, ou “Pompeu, engraxe meus sapatos.” Scipio se autonomeia Robert Laurens. A decisão é assumida pela família senhorial e dá a impressão de não ser ele escravo, mas um agregado obediente. Seguem-se tópicos fascinantes. No dia a dia, o escravo revê a noção de miséria humana. Em carta, um dos fazendeiros diz que o preto “aprende aqui a desprezar o branco”, já que o pobre sobrevive a caminho da fome e traz o corpo malcheiroso e em declínio físico. Gravuras e textos escolhidos pela autora não o desmentem. Apesar de interditado nas colônias, o casamento inter-racial é comum entre os escravos e a criadagem branca. O rizicultor Laurens discorre sobre o desgosto que sente ao ver tantas crianças mulatas pela cidade. A febre (gust) da mulher branca pelo homem preto lhe é incompreensível. Apesar de as leis britânicas estipularem que só o criminoso é passível de detenção, o escravo fugido faz renascer em Londres o capitão do mato. Como ele não tem o direito de meter o preto no xilindró, embarcao de volta no próximo vapor. Granville Sharp, um mero funcionário público, se transforma em defensor dos escravos a partir de 1765. Chega à clínica do irmão o escravo Jonathan Strong, completamente desfigurado em virtude das coronhadas que recebera do senhor, David Lisle. Dois anos depois, já refeito, Strong é raptado por Lisle, que o manda encarcerar por crime. Granville decide levar o caso ao prefeito (lord mayor). Este inocenta Strong. Concluiu-se: “A lei inglesa não reconhecia a escravidão.” A revolução americana não teve como objetivo inicial a independência, mas a conquista de maiores direitos para a colônia dentro do império. A partir de outubro de 1775, quando o rei declara que os rebeldes lutam pela independência, não se perseguem abertamente os colonos na metrópole. Conclui Flavell: “Numa nação que se orgulha do amor pela liberdade, prevalece a regra da lei.” Houve presos, mas não há execuções nos cadafalsos de Tyburn ou da Torre de Londres.
A terceira idade do cientista
m 1986, aos 78 anos, Claude Lévi-Strauss proferiu três conferências no Japão, reunidas agora em livro sob o título de L’anthropologie face aux problèmes du monde moderne (Seuil, 2011). Mais que uma série de reflexões cautelosas a favor do “humanismo democrático”, a traduzir tanto a emergência no século XX das nações humildes e desprezadas quanto o término da supremacia cultural do Ocidente e o decorrente relativismo cultural e moral, as conferências estampam o testamento intelectual e ético de mente excepcional. Por ter enriquecido o conhecimento nas ciências humanas por mais de meio século, Lévi-Strauss ganhou o direito de manejar a linguagem expositiva e a persuasão no alto da própria sabedoria. Ao auferir os dividendos, a aventura do saber antropológico resplandece. Quando alicerçado na memória individual e na idade avançada, o conhecimento científico deixa de ser generoso e comunitário para se encaramujar em introspecção. As reflexões teóricas e os exemplos tomados desse ou daquele escrito do autor extrapolam o marco original da evidência científica e se transformam, aos ouvidos do leigo a que o palestrante se dirige, em dados irrepreensíveis e modelares. A exemplaridade do saber amealhado pelo antropólogo é o espelho onde se mira o conferencista para apresentar, polemizar e transmitir o tema sugerido pela Fundação Ishizaka. O tema proposto reporta-se à obra consagrada e ambos dialogam em fala que opta pelo modo absoluto. A imagem duma bela vida de estudos, de docência e de publicações talvez seja a principal dádiva oferecida. Nesse sentido, não conheço introdução mais fiel e rigorosa (e certamente menos crítica) ao grosso da produção e do pensamento lévi-straussiano. Espremida a obra e condensada em casca de noz, sobressai uma das técnicas mais felizes da argumentação antropológica de LéviStrauss, a refletir as pesquisas e as viagens do cientista pelo tempo e o espaço. Trata-se das “relações de simetria”, inspiradas talvez pela teoria dos conjuntos em matemática, desenvolvida pelo grupo francês Bourbaki. Pelo exercício delas, situações aparentemente distantes no tempo e no espaço e aparentemente diferentes na longuíssima história da humanidade são aproximadas e se encaixam pela semelhança semântica e lógica, estabelecendo novas categorias mentais. Ordena-se a multidão de variantes para que a propriedade invariante venha à luz. A lição oferecida pelas civilizações que desconhecem a escrita e os meios mecânicos “ilustra, pois, um denominador comum da condição humana”. Daí que grande parte do esforço metodológico de Lévi-Strauss seja o de desmascarar os jogos de aparência impostos pela disposição geográfica dos povos no planeta e pela história evolutiva e linear do progresso da humanidade. Em Tristes trópicos , ele se vale da atitude teórica de Freud frente ao inconsciente e de Marx frente à ideologia para afirmar que “a realidade verdadeira nunca é a mais patente [la plus manifeste] e que a natureza do verdadeiro já transparece no zelo que este emprega em se ocultar”. Ao sobrepor o racional ao sensível,
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conclui: “Sinto-me banhado numa inteligibilidade mais densa, em cujo seio os séculos e os lugares se respondem e falam linguagens afinal reconciliadas.” As relações de simetria aliam a linguagem do antropólogo à do geólogo, conferindo-lhes a altitude da visão de poeta e de alquimista. Associados, almejam o saber expresso no soneto “Correspondências”, de Charles Baudelaire, por sua vez inspirado no misticismo platônico do sueco Swedenborg. Decorre que, para se reconhecer, uma sociedade precisa dispor de uma ou de outras que lhe sirvam de termo de comparação. A identidade nacional é produto de uma “técnica do dépaysement”: o observador compreende melhor o objeto que lhe é próximo se o visualizar da perspectiva do outro. Como no teatro japonês, o ator julgará melhor seu desempenho dramático se o fizer da poltrona na plateia. Esse é o caminho que deve conduzir os membros das nações ricas e poderosas em direção a certa humildade que se confundirá com a sabedoria antropológica. Lembra Lévi-Strauss: Jean-Jacques Rousseau preferia crer que eram homens os gorilas vistos e descritos pelos viajantes europeus. O filósofo não corria o risco de negar a qualidade de homens a seres que talvez revelassem um aspecto ainda desconhecido da natureza humana. Ao se apoiar no olhar crítico e distanciado, a reviravolta sugerida por Rousseau aconselha as nações desenvolvidas a se enxergarem no processo globalizado de industrialização a que submetem tardiamente os países subdesenvolvidos. No espelho da ex-colônia, vê-se a imagem da metrópole corrompida pela ambição desmedida dos homens e deformada pela pressa. A imagem grotesca explicita as destruições que foram necessárias para que as nações imperiais atingissem o estágio de progresso a (não) ser imitado. Para que repetir estragos? Na resistência ao progresso pelo caminho único da industrialização, Lévi-Strauss observa três tendências entre os povos desprovidos de escrita: o desejo de unidade sobrepuja a realidade dos conflitos internos, o respeito às forças naturais domina e, finalmente, aflora a repugnância ao encaixe artificial num devir histórico. Ao reconhecer a diversidade das culturas, o evolucionismo apenas finge. Se os diferentes estágios das sociedades humanas − tanto os das antigas no tempo quanto os das distantes no espaço − são tratados como etapas de um desenvolvimento único a empurrar a humanidade para a mesma direção, a diversidade é só aparente. O progresso não é contínuo nem necessário. Procede por saltos. Por mutações, como dizem os biólogos. No xadrez, o cavalo, bloqueador de peões adversários, se move na liberdade que lhe oferecem as orientações em L.
O filósofo entra na igreja
o dia 9 de abril de 1991, o corpo do dramaturgo suíço Max Frisch, conhecido dos brasileiros pela peça Biedermann e os incendiários, foi velado na Igreja de S. Pedro, em Zurique. Presentes à cerimônia fúnebre o filósofo alemão Jürgen Habermas e vários intelectuais que tinham dedicado pouco ou nenhum tempo da vida à igreja e à religião. Todos ouviram a mensagem lida por Karin Pilliod, companheira de Frisch. O dramaturgo pedia aos mais chegados a se exprimirem em voz alta e a não dizerem amém. Em seguida, agradecia à congregação zwingliana por ter permitido a exposição do caixão no templo. Seu corpo seria cremado e as cinzas, esparramadas pela vizinhança. Nenhum pastor no recinto, nenhuma bênção dada. Já picado pela mosca da religião, Habermas recorda a cerimônia fúnebre em 2007: “Agnóstico que rejeitava qualquer profissão de fé, Max Frisch se sentia desconfortável frente às cerimônias fúnebres que desconsideram a religião. Pela escolha do local onde seu corpo seria velado, declarava publicamente que a idade moderna iluminista não tinha conseguido encontrar um substituto adequado para o modo religioso de lidar com o rito de passagem que dá por finda a vida.” A atitude de Frisch é paradoxal e o relato do evento religioso abre o curto ensaio de Habermas intitulado “Um entendimento do que está faltando”, submetido a debate em fevereiro de 2007 na Escola Jesuíta de Filosofia, localizada em Munique. O texto de Habermas, as intervenções assinadas por quatro religiosos da escola e a argumentação final do filósofo foram traduzidos para o inglês e reunidos no volume An awareness of what is missing: faith and reason in a post secular age (Polity, 2010). Com vistas à “coexistência construtiva”, filósofo e religiosos acertam os ponteiros do raciocínio em torno de duas questões. O jesuíta Norbert Brieskorn observa que a falta, a que o título do ensaio alude, deve ser compreendida como privatio, carência de religião: “Falta à razão algo que poderia ter, mas não tem e por que anseia dolorosamente.” Já o conceito de razão se refere a algo a que falta alguma coisa, a fé. Faltam-lhe os ritos religiosos e, no plano comunitário e político, a solidariedade. Não há interesse em debater a relação entre Estado e Igreja e, sim, o vínculo entre razão e fé, entre valores e normas. Como “traduzir”, pergunta o jesuíta Friedo Ricken, os conteúdos da crença religiosa na língua da razão iluminista? Na metafísica grega e nos primeiros documentos do cristianismo, filosofia e religião tiveram origem comum. No terceiro milênio, como buscar a coexistência construtiva de razão e fé? Se o filósofo evitar falar sobre o outro e procurar falar com o outro, a razão secular não se afirmaria como juiz em relação às verdades de fé, mesmo se ela só pudesse acatar como razoável o que fosse traduzido no seu próprio discurso e em assonância com o princípio de acessibilidade universal. Por seu turno, o homem religioso teria de acatar a autoridade da
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razão, definida a partir dos resultados falíveis das ciências naturais institucionalizadas, resultados estes determinados pelos princípios básicos do igualitarismo universal em lei e moral. Não há novidade na formulação dos pressupostos para o diálogo e, sim, no movimento das peças pelo tabuleiro de xadrez. Para que a razão comece a se movimentar, é preciso primeiro que rejeite o iluminismo tacanho que, por desiluminar a si próprio, nega à religião qualquer conteúdo racional. Deve rejeitar em seguida a visão de Hegel pela qual a religião representa uma formação intelectual só passível de ser invocada sob a forma de “pensamento representacional”, subordinado à filosofia. Foi à luz de outro exemplo funesto, o ataque aéreo às torres gêmeas ao sul de Manhattan, que Habermas formulou o conceito de “pós-secular” (Entre naturalismo e religião, Tempo Brasileiro, 2007). Este configura o fato de que, por um lado, as religiões continuam a existir em toda plenitude e, por outro, nas sociedades modernas a hipótese da secularização vai perdendo o poder explanatório absoluto. Daí a necessidade urgente de interação entre as partes. O pós-secularismo se torna mais premente diante das questões colocadas pela bioética, onde se busca um consenso moral. Habermas acredita que os cidadãos religiosos têm acesso a um potencial teórico que pode esclarecer e justificar as questões éticas. A religião provê a base moral para o discurso comunitário sobre o cientista e suas pesquisas nas áreas das ciências da vida e da saúde. Apesar de ser ferrenho defensor da racionalidade iluminista, a busca de diálogo com os religiosos é coerente dentro da obra de Habermas, pelo menos desde a sua postulação do “agir comunicativo” (1981). Em excelente introdução aos escritos clássicos do filósofo, Barbara Freitag e Sérgio Paulo Rouanet afirmam que a situação linguística ideal “supõe que, em princípio, todos os interessados possam participar do discurso e que todos tenham oportunidades idênticas de argumentar dentro dos sistemas conceituais existentes ou transcendendo-os, e chances simétricas de fazer e refutar afirmações, interpretações e recomendações” (Habermas, Ática, 1980). Não por coincidência é nos anos 1980 que aflora a questão religiosa nos textos de Habermas. Ainda julgada pela negatividade, logo é varrida para baixo do tapete da razão. O filósofo assumia, então, que, com o desenvolvimento da moderna sociedade democrática, a função da religião como motor de integração social seria transferida para a razão comunicativa secularizada. A autoridade do sagrado seria gradualmente substituída pela autoridade do consenso, a que as partes em litígio chegariam. Hoje, Habermas atrela o cadáver de Max Frisch à implosão das torres gêmeas e, ao rever antigas hipóteses sobre razão e fé, afirma-se como pensador pós-secular. Como Ernest Bloch, ele enxerga “os prenúncios duma ordem a ser instaurada no futuro”.
Morte e vida do autor
m se tratando de leitura de texto, Jacques Derrida é o filósofo que mais se empenha em neutralizar a figura do autor. É clássica sua análise do Fedro, de Platão. Ele retoma o esquema que rebaixa o valor do texto escrito, delegando-o aos sofistas, e nobilita a busca da verdade pela presença de Sócrates junto à sua fala. Sócrates a protege e a explica. Derrida assinala o quiproquó do grego e afirma que os interlocutores, ao deixarem gravar no papel a palavra, dela se ausentam para que o texto do diálogo, a escrita, seja em toda plenitude. Gravada no papel, a palavra viva de Sócrates é a letra morta de Platão. Sem a assistência do autor, o texto autossuficiente passa a deambular pelo mundo em busca de sentido. (Machado de Assis, criador de Dom Casmurro, não socorre o leitor nas dificuldades que enfrenta. Apenas diz: repita a leitura, um dia você ainda o entende.) Ao assumir a postura derridiana, o leitor do diálogo platônico reclama, pois, a autonomia e a liberdade indispensáveis para apreender com rigor qualquer texto. Responsabiliza-se: faz seu o que é de outro. Esse é o fundamento da teoria de Derrida sobre a escrita (e não sobre o poder da voz) e sobre a leitura (e não sobre a interlocução ao vivo). A prática filosófica foi herança do diálogo entre falantes, da maiêutica. Hoje, o leitor não se julga mais um interlocutor desvalorizado de Sócrates que, além-túmulo e ainda junto à fala, protege-a dos falsários e a explica. A prática filosófica desconstrói (verbo de Derrida) o fundamento fonocêntrico da metafísica ocidental, da linguística de Ferdinand de Saussure, da antropologia de Lévi-Strauss e da psicanálise de Lacan. Ao desconstruir esse pressuposto, a filosofia passa a ter por objeto a escrita e como prática a leitura. As 740 páginas escritas por Benoît Peeters (Flammarion, 2010) historiam longa e minuciosamente a “vida de Jacques Derrida” (1930-2004). As premissas que regem o gênero biografia, de que é exemplo o clichê da infância humilde dos grandes homens, não teriam sido minadas pela desconstrução? Desconstruída, a biografia clássica não é apenas um caminhãobaú que, tendo como destinatário o admirador do filósofo, transporta com competência e carinho documentos e depoimentos de ordem pessoal dispostos cronologicamente? Como recuperar a memória do filósofo? Pena que a resposta tenha sido apenas insinuada por Derrida. Sabe-se como não se deve. Não é, pois, estranho que o discípulo Bernard Pautrat tenha se indignado quando o carioca Carlos Freire andou clicando Derrida. Peeters registra a indignação (p.542). Pautrat admirava a linha antimídia do mentor. Não dava entrevistas, não se prestava a fotos. Um choque. Dezenas de fotos do filósofo no número especial da revista Magazine littéraire e no livro produzido com Geoffrey Bennington. Imagens meramente anedóticas e retratos da vida privada. “Confesso que fiquei decepcionado”, confidencia Pautrat. Passo por cima dos dois cadernos de fotos selecionadas por Benoît Peeters.
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O equívoco de Peeters é o de dar a entender que Derrida se interessa pela biografia de filósofos. Há que distinguir biografia e autobiografia. Derrida não se interessa pela vida de um autor escrita por outro, em geral de forma anedótica e cronológica. Interessa-se pelos textos autobiográficos de Jean-Jacques Rousseau e de Friedrich Nietzsche. Nestes, a subjetividade se escreve a si pela letra morta e atesta a favor da necessidade filosófica de não sublimar o corpo (físico) no corpus (textual). Aliás, Derrida estabelece a distinção entre uma e a outra de maneira vulgar. Propositadamente? À pergunta “Qual é a vida sexual de Hegel ou de Heidegger?”, seguem-se considerações impertinentes: “Não estou querendo dizer que seria necessário fazer um filme pornô sobre Hegel ou Heidegger. Quero ouvi-los falar sobre o papel que o amor tem nas suas vidas.” Ao transcrever a si no papel, o autor se apresenta contraditoriamente mais vivo. A “vida” do filósofo é diferida em escrita e revelada pela autonomia do texto que dela se libera. Os atos e fatos enumerados do mero viver não são tema filosófico. A letra morta e enigmática da subjetividade em crise o é. Peeters está certo quando dá a entender que Derrida só tem interesse pela vida de figuras notáveis. O autor de Otobiographies não se arrisca como Michel Foucault ao analisar Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. E mais correto está ao salientar a coragem pública de Derrida, de que é bom exemplo a defesa de Heidegger e de Paul de Man, acusados respectivamente de nazista e de antissemita. Em entrevista a Evelyne Grossman, Derrida confessa: “Quando tento pensar, trabalhar ou escrever e quando creio que alguma coisa ‘verdadeira’ deve ser aventada no espaço público, na cena pública, pois bem, força alguma no mundo me bloqueará.” Exemplifica com os ensaios que iriam ferir Lévi-Strauss e Lacan. E conclui: “era impossível guardar aquilo só para mim. Trata-se de uma lei, de uma pulsão e de uma lei: não posso não dizer. ” A esse impulso, ele dá o nome de pulsão de verdade. O leitor pouco comprometido com a filosofia de Jacques Derrida e interessado por um vasto, às vezes pouco rigoroso, e sempre rico panorama da vida filosófica na França e nos Estados Unidos (onde o filósofo ensinou com frequência) poderá ter prazer ao acompanhar a história sentimental do menino judeu-argelino que assombrou o mundo pela sua compreensão solitária, arrojada e originalíssima da metafísica inventada pelo Ocidente e por ele imposta como universal. Derrida não pode não ser judeu-argelino. O Mediterrâneo europeu é compreendido pela sua outra margem, ontem e hoje em chagas. Quanto do teu sal são lágrimas de África!
Dispositivo
mbora discutível, não é desastroso o processo de distanciamento da noção de ideologia que, a partir de maio de 1968, passa a dominar o pensamento crítico francês. O canto do cisne da ideologia acontece em 1970. Louis Althusser, filósofo marxista, retrabalha a noção clássica de aparelho do Estado (governo, administração, exército, tribunais), para somar a ela os chamados Aparelhos Ideológicos do Estado (família, escola, mídia, sindicato e sistema político nacional). Um e o outro, repressores e formadores, asseguravam a passagem da servidão voluntária do indivíduo à ideologia vigente. Mantida a ordem social, perpetuavam-se as relações de produção capitalista. O primeiro passo no processo de distanciamento da noção de ideologia é dado por Michel Foucault, discípulo de Althusser. Foucault desloca a reflexão macro sobre as instituições do Estado e da Sociedade para focá-la na análise dos micropoderes, que cerceiam o comportamento do indivíduo e o submetem a correções e punições injustas, ou ao silêncio (Microfísica do poder, Graal, 2008). Os micropoderes se exercem sobre o sujeito por um conjunto de forças, a que Foucault chama de “dispositivo”, cujo valor não é universal. Sua função é, pois, estratégica. O dispositivo é um conjunto heterogêneo. Inclui virtualmente discursos, instituições, leis, proposições filosóficas, medidas policiais e de comportamento, regras arquiteturais etc. Dispositivo é, diz ele, “um conjunto de estratégias de relações de força que condicionam certos tipos de saber, e por ele são condicionados”. Ao somar poder e saber, a noção de dispositivo instrumentaliza a indagação sobre o modo como as expectativas emancipatórias do indivíduo se dobram ao coercitivo e punitivo “governo dos homens”. Veja-se o modo como, em dada sociedade, certos indivíduos são silenciados. Ao falar em lugar da fêmea, o macho a silencia. O branco silencia o negro e o índio, o advogado, o acusado, e o sindicato, o operário. Em relação aos homossexuais, o exército americano adotou a política do “don’t ask, don’t tell” (não pergunte, não diga). A coerção ao silêncio aviva o sentido de inadequação, ou a culpa, no indivíduo e no grupo social em que ele é enquadrado. O intelectual perdia o direito à palavra autoritária, que exprimia o imperativo do pensamento dialético, e reconhecia o limite da própria fala. Ao abrir espaço na sociedade para a fala dos silenciados, o intelectual reassume sua função de maneira democrática. Como no vôlei, trabalha-se por rodízio. O filósofo recebe e levanta a bola para que o outro a golpeie de maneira crítica no campo adversário. A fala do até então sem voz transforma-o em cidadão atuante. O governo de si articula as relações sociopolíticas e econômicas do sujeito com o outro e, em micro, com a comunidade. A governabilidade dos homens se confunde com os ganhos da cidadania.
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A teorização de Foucault sobre o dispositivo é bem recebida no meio universitário, onde cria e apoia as disciplinas que problematizam as políticas de identidade. Exemplo: os estudos feministas, afro-americanos e orientais e a teoria queer (nesta, a identidade sexual, singular ou plural, é definida ou inventada pelo próprio sujeito). A bibliografia decorrente tem sido bem divulgada por nossas editoras e universidades. Num segundo momento, o processo de distanciamento se abre para acolher o filósofo italiano Giorgio Agamben, que atualiza a noção de dispositivo foucaultiano. A leitura da coletânea O que é o contemporâneo e outros ensaios (Argos, 2009), de Agamben, serve de roteiro para o caminho traçado, embora a reflexão do italiano escamoteie a bête noire de Foucault, ou seja, o influente ensaio de Louis Althusser. A conclusão a que chega Agamben evidencia a dívida para com Foucault: “Chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.” A atualização do conceito aparece nos exemplos onde o dispositivo atua: a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os celulares e – por que não? – a própria linguagem. Agamben reintroduz o cidadão foucaultiano num mundo opaco e sem saída: “Hoje não haveria um só instante na vida dos indivíduos que não seja modelado, contaminado ou controlado por algum dispositivo.” Exemplo mínimo: o uso do telefone celular. Ele deixa as relações entre as pessoas ainda mais abstratas. Não há como usá-lo de modo correto, ou como destruí-lo. Não há como se tornar beneficiário dele. Se o dispositivo foucaltiano alimentava os processos da nova subjetividade cidadã, o definido por Agamben opera, na expectativa de emancipação, um idêntico, oposto e autodestrutivo processo de dessubjetivação. Ambíguos, somos seres viventes larvares. Na atualidade da economia globalizada, o cidadão, nascido no embate contra os micropoderes, corresponde, em Agamben, à impossibilidade de recomposição da cidadania por novas subjetividades. Impasse. Tornamo-nos sujeitos espectrais. Agamben exemplifica. Quem se deixa capturar pelo dispositivo telefone celular é “somente um número pelo qual pode ser eventualmente controlado”. Será que, na história do planeta, os indígenas brasileiros formariam o único grupo a instituir a vida social sem o recurso ao poder coercitivo? Esta é a audaciosa tese sobre a organização das comunidades da Amazônia, defendida pelo antropólogo Pierre Clastres em A sociedade contra o Estado (Cosac Naify, 2007). A conferir.
MBK
illes Deleuze foi o primeiro a utilizar o termo filosofia pop. Ao se referir ao livro Mil planaltos (1980), vale-se dele e quase o condena. Estaria destinado à lata de lixo? Não, responde Mehdi Belhaj Kacem (MBK, de agora em diante), jovem filósofo franco-tunisiano e ex-discípulo fervoroso de Alain Badiou. O pensador alternativo dá o título de Pop philosophie (Perrin, 2005) às onze entrevistas que concede a Philippe Nassif em 2003 e 2004. MBK quer reconciliar a pesquisa na filosofia e na psicanálise com a atualidade política e comportamental. Trabalha a deserção do político, a competição dos egos, a frivolidade depressiva e a pornografia, a vida punk, o videogame e a sitcomização (de sitcom, comédias em que os mesmos personagens aparecem em capítulos sucessivos) da vida amorosa. Pretende elevar a obscenidade contemporânea à altitude grega. Deve haver uma obscenidade grega e uma altitude contemporânea. A reviravolta na valoração tem de ser dada a conhecer. MBK a reconhece e a cria a partir de discussões sobre racionalidade rude e instinto vivo, anarquia e lei, lucidez desencantada e ativismo apaixonado, comunidade e sujeito, exigência e gozo. Ao encarnar a figura do jogador (de videogame), o filósofo pop se libera de problemas falsos. Não é por acidente que MBK resgata em seminários a presença física do filósofo, sua palavra viva. O retorno à ágora socrática encaixa o pop entre os adversários dos filósofos da escrita, de que é exemplo Jacques Derrida. “Há situações de verdade que não são jogos de linguagem”, reitera Badiou. A animação de seminários, entre eles o famoso “la cellule”, e a opção por expor as ideias em livro/entrevista não invalidam a experiência do pensamento em escrita de MBK. Confessa, no entanto, que tem mais e mais necessidade de presença. E se justifica: “Há uma verdadeira diferença entre a palavra viva, que se desdobra aqui e agora, com você à minha frente, e a minha palavra diante do computador ou do caderno. Posso ter afetos extremamente fortes diante da folha de papel ou da tela, mas, por mais que Derrida me diga o contrário, há algo a mais na palavra viva e na presença física.” Simples: a palavra viva do filósofo senta o real no poder e de lá expulsa a imaginação, entronizada em 1968. Escute-se o lema de MBK: “Por toda parte, o real tornou-se didático, despoticamente didático.” À época das entrevistas, destaca dois acontecimentos: o atentado às torres gêmeas (2001) e a ascensão de Jean-Marie Le Pen (extrema-direita) ao segundo turno das eleições francesas (2002). Considere-se o significado original que dá ao acontecimento: é “o real de uma representação desagregada”. Entenda-se: o real aparece numa representação em que estão destruídos os princípios de coesão e de unidade. O acontecimento endossa, portanto, a atual falência da representação artística. À diferença do filme Duro de matar, o atentado não causa efeitos simbólicos. Causa efeitos sobre o simbólico; machucam-no como faca fere a pele ou a fruta. No acontecimento nova-iorquino, o real se apresenta de modo desagregado; põe em jogo um não tempo caótico, a ser trabalhado filosoficamente. A mídia contra-ataca: imobiliza
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o cidadão, saturando-o de imagens. Pânico (MBK subscreve Deleuze e Badiou) é palavra que pertence ao registro do afeto, e não ao registro do real ou da representação. MBK é radical: o Estado de exceção não deve armar o gatilho da guerra civil. Não houve baixas em maio de 68. Quem leva o pensamento a pensar trata o acontecimento com atitude marcial. Pela “marcialidade” o pop não forma discípulos, forma “guerreiros”, que improvisam em presença do imprevisto. Não se improvisa por escrito, mas a cappella. “Não tenho consciência de todas as filosofias por que atravessei”, afirma MBK. Explica-se: “Você lê, você esquece, compreende cada vez mais; quanto a mim, compreendo o essencial do que há para se compreender, mas não lembro.” Ele inaugura o “niilismo democrático” da atualização, que contradiz a memória plena, de que falam Bergson e Deleuze. Em oposição ao ensino magistral de caráter universitário, o ensino marcial pop capacita o sujeito a se reatualizar, a ser no tempo atual. O pensador que julga poder compreender com seu estoque de saber a “falência da representação” é um desorientado a priori. Constatará: não sei reagir ao imprevisto. MBK repete Sócrates: “Chego virgem, vazio, nu, nada sei; chego a alguma coisa na discussão.” Trabalha-se a arte de se aperfeiçoar. O modo de viver e de praticar a filosofia se dá pelo desenvolvimento no discípulo do “intercepto” (ato de obstruir o fluxo de alguma coisa). A escuta é o sentido que não se desliga, disse Freud. Antes de pedir a palavra, o guerreiro fica de tocaia, à escuta das coordenadas da situação. MBK lembra o seminário “la cellule”: “Eu entrava na sala sem saber o que iria dizer. Formulava questões e orientava minha fala de acordo com as reações que sentia e a atenção que captava. Ficava atento ao que desejava dizer e, ao mesmo tempo, à possibilidade de uma improvisação total.” O intercepto é a negação do “democratismo convivial e autista” (adjetivos usados por ele na crítica ao ministério Dilma Rousseff). Quando a própria morte não paga a serventia do ser à causa nobre, não há herói. Há o jogador. Seu corpo participa da ação virtual, apropriando e manuseando imagens. Por ser explorado como jogo, o virtual é uma técnica tão revolucionária quanto o foram a foto e o cinema. Com uma vantagem: não é preciso ter a história da arte na cabeça para apreciar um videogame. Ao sobreviver no real político do Ocidente, onde imperam a depressão e o suicídio, o “jogador” pop corre risco de vida. De outra forma: o guerreiro arrisca a própria pele até no campo lúdico da representação. Deserdado, glorifica a herança da morte do herói.
Uma década de esperanças em declínio
cesse o Google. No retângulo designado à pesquisa, insira o nome de político com importância no cenário nacional. Acompanhe-o da palavra narcisismo. A tela será tomada por uma enxurrada de citações. Não há jornal, site, ou blogue que não lhe forneça rico material. Em seguida, insira o nome de figura notória das artes e dos esportes. Não será diferente o resultado. Na sociedade midiática e informatizada, o narcisismo ata o político à pessoa notória e, ao definir a ele e a ela de celebridade, os individualiza. Vulgarizado o termo, pergunta-se quando, como e por que ele ganhou o contexto sociopolítico e econômico. Há 31 anos, o sociólogo Christopher Lasch (1932-1994) tomava o termo de empréstimo à teoria de Sigmund Freud sobre o “narcisismo secundário”. Segundo ele, o nó górdio da sociologia estava na nova onda de individualismo. Numa década de esperanças em declínio, o sujeito recalca a autoestima baixa e a raiva, para impor como moeda corrente a imagem grandiosa de si mesmo. Ao usar o outro como objeto de autogratificação, o narcisista está, na verdade, a reivindicar a aprovação e o amor da sociedade. Christopher Lasch intitulou seu estudo de A cultura do narcisismo – a vida americana numa era de esperanças em declínio (1979). No Brasil, o best-seller foi publicado em 1983 pela Editora Imago. A edição tornou-se raridade e os sebos a oferecem por 250 reais. Com a metralhadora giratória freudiana, onde sobressai algum chumbo grosso marxista, o sociólogo varre a cena americana, recém-liberada dos horrores da guerra do Vietnã, ainda às voltas com a renúncia do presidente Nixon e a enfrentar a escassez de petróleo em casa e as violentas represálias aos seus diplomatas no mundo muçulmano. Recessão e inflação batem à porta e reacendem o narcisismo dos líderes. Relembra a fala farsesca do presidente Kennedy diante de Kruschev em Viena (anos 1960) e as trapaças retóricas do presidente Nixon frente a uma nação que lhe era invisível (anos 1970). Dos líderes, o narcisismo se transfere para os cidadãos, só dispostos a agir em público quando a autoridade política os desaponta. Lasch critica as forças do Partido Republicano. Ao se retirar o esporte das quadras estudantis e anular a torcida de parentes e vizinhos, o jovem desportista vira figura midiática solitária, valorizado na publicidade das commodities. Também critica os democratas. Sob o paternalismo do Estado, acolhem o pluralismo racial e cultural. Encaminhar o jovem na vida deixa de ser atributo da família. Transforma-se em prerrogativa das agências de controle social. Os laços familiares cedem o lugar ao bem-intencionado e funesto assistente social, e as escolas públicas entregam profissionais iletrados à sociedade. O racismo de jure do Sul se casa com o racismo de facto do Norte. Encarar a atualidade implica também em analisar o modo como estão envelhecendo mal os líderes estudantis do campus de Berkeley e de outras universidades.
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O terrível diagnóstico de Lasch é ratificado no discurso sobre o mal-estar dos cidadãos americanos (malaise speech), proferido pelo presidente James Carter em 1979. Diante da nação, Carter verbaliza a ansiedade geral através de mil e uma falas de populares, que cita. O presidente as sintetiza: “Numa nação que tinha orgulho do trabalho braçal, dos laços familiares fortes, das comunidades fraternas e da fé em Deus, muitíssimos de nós tendem hoje a venerar a autocomplacência e o consumo.” Importante na elaboração do conceito de narcisismo é o modo como Lasch o desentranha da derrocada do individualismo empresarial, desde sempre abonado pelo mito do sonho americano. Para desenhar o declínio da força do indivíduo, até então canalizada para o negócio e o enriquecimento rápido, o sociólogo invoca o ideólogo da mobilidade das classes baixas, Horatio Alger (1832-1899). Foi ele o popular romancista das centenas de histórias de pobres que se tornam ricos (ragged to riches stories). Na falência do espírito Horatio Alger, Narciso abria a válvula de escape. O anônimo indivíduo de sucesso se deixa fascinar pela fama. Diz Lasch: “São tipos em extinção o megaempresário que vive na obscuridade pessoal e o capitão da indústria que nos bastidores controla o destino de nações.” Entre os mortais, evita-se a competição, perde-se a credulidade, são desqualificadas as relações pessoais, tornando-as transitórias. “Straights by day, swingers by night” (caretas de dia, descolados à noite) – em As contradições culturais do capitalismo (1976), o sociólogo Daniel Bell, teórico da sociedade pós-industrial, prenunciara as análises de Lasch. Numa década de esperanças em declínio, o lucro e as virtudes protestantes, de que Max Weber fora o porta-voz, não mais despertam o entusiasmo dos cidadãos. Abandona-se a salvação pelo trabalho e, como alternativa individual e salutar, adota-se a sensual terapia corporal. Na autobiografia Crescendo aos trinta e sete (1976), Jerry Rubin, o anarquista do grupo dos Chicago 7, escreveu que, de 1971 a 1975, tinha experimentado terapia gestalt, bioenergética, comida natural, tai chi, hipnotismo, dança moderna, meditação, acupuntura, terapia sexual etc. Aos 37 anos se sentia como se tivesse 25. Rubin, como outros ex-radicais, conseguia trocar os slogans revolucionários pelos terapêuticos, com igual desrespeito aos dois. “Rápidas e sucessivas mudanças sociais por um longo período de tempo”, Lasch observa conservadoramente, “criaram nos Estados Unidos da América o desemprego, desvalorizaram a sabedoria dos mais velhos e desrespeitaram todas as formas de autoridade, incluindo a autoridade da experiência.”
O mundo é alvo do olho
o ler os ensaios que compõem a antologia The Rey Chow Reader, organizada por Paul Bowman e publicada em 2010 pela Columbia University Press, uma imagem não me saía da cabeça. A do intelectual e acadêmico carioca José Guilherme Merquior, prematuramente falecido em 1991. Ao ser esboçado pela imprensa, o perfil de Merquior vinha revestido por metáfora que explicitava sua opção. Como crítico atuante, era “verdadeira metralhadora giratória”. Não deixava nada e ninguém de pé. Rey Chow, nascida e educada em Hong Kong, com doutorado em Stanford e hoje professora na Duke University, não lhe fica atrás. É uma das mais participantes e controvertidas ensaístas na área de estudos pós-coloniais, desconstrução e cinema. Por sua origem e formação está hoje entre as cabeças pensantes mais consultadas na área de estudos culturais com foco no Oriente. Sua originalidade primeira, confessa ela no ensaio “Lições em legitimação cultural”, reside no fato de ser, no Primeiro Mundo, uma estudiosa do póscolonialismo com educação acadêmica em nação colonial. Durante as décadas de 1960 e 1970, fez o ginásio e a universidade na Hong Kong britânica. Em livros e ensaios soltos, Rey Chow tem ofertado ao especialista e ao leitor uma série de conceitos que, pela sua rentabilidade analítica e repercussão teórica, transcendem as fronteiras acadêmicas. Salientemos dois: “visualidade” e “visibilidade”. Poderoso é o modo como a ensaísta retoma ideias já conhecidas e dispersas sobre a moderna relação entre imagem do mundo e visão humana. Retoma-as e as entrelaça criticamente no intuito de analisar o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, ocorrências reconhecidas pela foto da nuvem de cogumelo. Leia-se o ensaio “A era do alvo mundial”. Acompanhemos seus passos. Rey Chow parte de postulação complexa, desenvolvida no ensaio “A era da imagem mundial”, de Martin Heidegger. Nele, o filósofo explicita o modo como a ciência dinamita a noção estática de busca do conhecimento para reapresentá-la como atividade em constante progresso. O scholar é substituído pelo pesquisador e o exame erudito das fontes, pelo experimento. É a ciência moderna que também leva o homem a reapresentar e a compreender o mundo como imagem. Ao olhar especializado (e ao olhar leigo, como se verá), o mundo se oferece como imagem estruturada, produzida pelo homem. A pesquisadora excede a postulação heideggeriana com as análises de Walter Benjamin sobre a obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Salienta-se ali o papel do cinema e da fotografia na concepção de imagem a que chegamos. Por ser passível de se reproduzir ao infinito, ela tem sido veiculada em escala planetária. Chow enriquece as duas postulações filosóficas e as afina com as do pensador pós-modernista Paul Virilio, autor de Guerra e cinema (Boitempo, 2005). Afirma este que o campo de batalha é o campo da percepção. Para os homens em guerra, a
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função da arma é função do olho, é função da câmara cinematográfica. Só pode ser destruído o alvo que se vê. O mundo é alvo do olho. Bem alicerçada, Rey Chow se lança à leitura do raide atômico pela sua “visualidade”. Imagem do mundo, a foto da nuvem de cogumelo prevalece e desocupa (preempt) os efeitos da radiação e da devastação humanas a que foram submetidas as duas cidades japonesas. A imagem que chega aos olhos e à mente do espectador não é mera réplica mimética da realidade. Na infindável reprodutibilidade, ela adquiriu a qualidade de “signo de terror”, do terror atômico que afeta a todos, indiscriminadamente. Ela prova o que já somos: sobrevivemos como alvo. O interesse de Chow é o de mostrar como, ao transformar tudo em representação e realidade virtual, a imagem em si (no caso, a foto) é um fato epistêmico na cultura global. Por detrás do artefato atômico e em exposição também elegante, está a insondável física moderna, que reapresenta o caos apocalíptico por uma fórmula tão sucinta e legível quanto a foto. Ele será reconhecido na sua visualidade: E=mc². Num breve e intenso clarão, o olho humano apreende na equivalência de massa-energia a obscura teoria da relatividade, de onde procede a arma letal. A harmonia e a leveza formais da notável descoberta científica também encaminham o olhar humano para a magnitude do potencial destrutivo do homem. Chow conclui a análise: “Um avião mais uma bomba = menos uma cidade japonesa.” Proporcionada pela representação do mundo como imagem, a visualidade da destruição e da fórmula também autentica o processo de vitimação por que passou o povo japonês sob o poderio bélico ocidental. No entanto, o cogumelo de nuvem obscurece a “visibilidade” do quadro de vitimação por que passou o outro do povo japonês, ou seja, o povo chinês. Refere-se Chow aos habitantes da região noroeste da China que, entre 1937 e 1945, sofreram horrores durante a ocupação japonesa. Para alguém como ela, que viveu entre os sobreviventes da guerra dos oito anos de resistência aos japoneses (banian gangzhan), a imagem da devastação atômica escamoteia, em evidente obscurecimento da história, outro alvo humano. “Quando criança”, escreve ela, “estava mais acostumada a ouvir falar das atrocidades japonesas contra homens e mulheres chineses que a ouvir falar das atrocidades cometidas pelos Estados Unidos.” Enquanto a menina Rey Chow crescia e se educava sob a proteção da coroa britânica, os relatos orais da infância não persistiam na memória como subsídio para se chegar ao apuro histórico. As lembranças geravam, antes, “uma espécie de dissonância emocional”. Fora de lugar, a imagem mundial de arma-e-alvo ganha nova visibilidade quando escapa às articulações semânticas automatizadas pela foto da nuvem de cogumelo e pela fórmula científica einsteiniana. Xangai, 1937: a foto mostra uma criança chinesa que chora. Está abandonada no meio dos destroços da estação rodoviária, bombardeada pelos japoneses.
D. H. Lawrence, o clássico e o pós-humano
atualidade do escritor e ensaísta D. H. Lawrence transparece nas citações de escritos seus pelos teóricos da filosofia e do pós-humano. Graças ao sucesso mundial de romances como O amante de Lady Chatterley, o brasileiro o conheceu de leitura no passado e agora o reconhece nas páginas de Gilles Deleuze, Félix Guattari e Jeff Wallace. O descompasso entre a leitura dos romances e o reencontro casual em livro alheio se explica pelo fato de a obra ensaística de Lawrence ter permanecido praticamente inédita no Brasil. Alguns ensaios dele acabam de ser traduzidos e publicados sob o título de O livro luminoso da vida (Crisálida, 2010). A predileção do antologista pelos estudos sobre literatura e arte deve ser complementada com a leitura prévia de Apocalipse (Companhia das Letras, 1990). Como atesta Deleuze em Crítica e clínica (Editora 34, 1997), o teor da reflexão de Lawrence é nietzschiano. O livro contrasta o Evangelho segundo São João e o Apocalipse, também de João, desterrado em Patmos, com o fim de questionar a autoria única. Proposta por Lawrence, a distinção entre um João e o outro não se esgota em si. Visa a dramatizar duas regiões diversas da alma humana que fundamentam um e o outro livro bíblico. Como assinala Deleuze, o Evangelho é aristocrático, individual, doce, amoroso e decadente, já o Apocalipse é coletivo, popular, inculto, raivoso e selvagem. A cisão autoral encaminha a preferência de Lawrence. Não se esquecer de que para ele “romances realmente grandes são os livros do Velho Testamento”, escritos por autores com intenções tão grandes que não entram em choque com a inspiração apaixonada. Acrescente-se que, para o ficcionista gaulês, “os diálogos de Platão são estranhos pequenos romances”. Se o ensaísmo não se desvincula do caminho real da narrativa bíblica, a ficção – como no espetáculo O banquete, de José Celso Martinez Corrêa – não se libera de Sócrates e do colóquio platônico. Afirma Lawrence que, depois de Aristóteles, Tomás de Aquino e o abominável Kant, “o romance ficou aguado e a filosofia, seco-abstrata”. Talvez em alusão ao desafeto Bertrand Russell, Lawrence lamenta que “filosofia e religião foram muito longe no caminho algébrico”. Em 1923, Lawrence reuniu as exegeses literárias de maior densidade em Estudos sobre a literatura clássica norte-americana. Do volume temos, na atual coletânea, dois exemplos notáveis e complementares. O primeiro exemplo é a análise do puritanismo no romance A letra escarlate (Ediouro, s/d), de Nathaniel Hawthorne. Para avaliar o modo como a agradável consciência intencional dos americanos convive com o diabólico inconsciente, Lawrence interpreta o episódio da queda no Gênesis. No momento em que Adão e Eva querem SABER (maiúsculas do ensaísta) o que tinha acontecido entre eles, emerge o conhecimento da mente, que aprisiona e recalca instinto e intuição, ou seja, o conhecimento do sangue. No interregno entre o saber do sangue e o da mente, nasce o pecado. Ao nomear a culpa, o saber que se antecipa ao ato sexual glorifica o puritanismo. Ao diferir o sexo por ser ele fonte do pecado, o
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puritano deixa de problematizar os sentimentos que transitam da cintura para baixo no corpo humano. O segundo exemplo comporta digressões líricas sobre a obra de Walt Whitman, o poeta das Folhas de relva (Iluminuras, 2008). É ele o primeiro a dar como superada a concepção moral que afiança estar a alma do homem “acima” da carne e ser algo “superior” a ela. Alma e corpo se inter-relacionam e caminham a pé pela estrada. Whitman teria dito a ela: “Fique aí, ó Alma, onde é seu lugar. Fique na carne. Fique nos braços, nos beiços e na barriga. Fique nos escuros membros dos negros. Fique no corpo da prostituta.” Se o Velho Mundo do cristianismo tinha instituído a moral da salvação, o americano Whitman introduz nova forma de moralidade, antípoda da ascese pregada por Gustave Flaubert em Tentações de Santo Antão (Iluminuras, 2004). A nova moralidade é “uma doutrina de vida”. Renega culpa e pecado na formação da alma humana. Ao contrário de Flaubert, que se identifica ao leproso pela caridade evangélica, Whitman não se propõe como Salvador. Foi “o primeiro aborígene branco”, diz Lawrence. Mas a maioria dos ensaios dessa antologia vem de periódicos da época. Os textos são curtos e atravancados, poéticos e enigmáticos, brilhantes sempre, e fluem por uma lógica sufocante e alucinatória que, ao contradizer as intenções do autor, seja ele Dostoievski ou Thomas Mann, retira a obra do nhe-nhe-nhem crítico. Lawrence constata que os grandes romancistas têm uma intenção didática oposta à inspiração passional, daí ele afirmar que “a função mais apropriada ao crítico é a de salvar a narrativa do artista que a criou”. Brinca ele: “Se o artista pretender pregar alguma coisa no romance, ou mata o romance, ou o romance se levanta e vaise embora com o prego.” Foram também selecionados ensaios sobre temas clássicos da arte. Destaque para “Pornografia e obscenidade” e “A moralidade e o romance”, que me parecem os ensaios menos atuais. Depois da revolução no comportamento estimulada pela pílula anticoncepcional, os alucinógenos e o rock & roll, “pornografia” e “obscenidade” passariam a recobrir objetos de arte mais derrisórios e problemáticos que os criados e levados ao público por Lawrence. O texto de O amante de Lady Chatterley é pinto perto das fotos de Robert Mapplethorpe, das poupées de Hans Bellmer (quando exibidas no Beaubourg, em Paris, o acesso só era permitido a maiores) e dos diálogos nos filmes de Quentin Tarantino. O livro luminoso da vida apresenta um conjunto expressivo e incompleto dos ensaios de Lawrence. Aguardam-se a ficção e os ensaios que anunciam a “retrometamorfose” (Günther Anders) do humano em animal, como em Guimarães Rosa e Clarice (“Não ter nascido bicho parece ser uma de minhas secretas nostalgias”), e o devir máquina do humano, como no filme O caçador de androides. O pós-humano.
Uma revoada de vaga-lumes
menino voa a Brasília para visitar os tios. Está em construção a capital do país. Ainda no carro, ele se assusta com o cenário oferecido. Máquinas derrubam árvores, dizimam a vida animal selvagem e erguem belos edifícios modernos. Já em casa dos tios, alegra-se frente ao espetáculo da plenitude: no terreiro, entre a casa e as árvores da mata, evolui um peru. Sua cabeça “possui laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços”. Ele é “completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos – o peru para sempre. Belo, Belo!” A ave doméstica é o banquete no dia seguinte. O menino se embrenha nas trapaças da gula e no horror da degola. Quer desbravá-los. Volta ao terreiro. Nele, cisca outro e semelhante peru. Constata: “Oh, não. Não é o mesmo. Menor, menos muito.” A cópia não é bela e é cruel. Pega de bicar a cabeça degolada, atirada no lixo pela cozinheira. Trevas arrebatam menino e mundo. Leve e misteriosa luminosidade flutua nas profundezas da noite: “Voava a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vaga-lume. Sim, o vaga-lume, sim, era lindo! Tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a alegria.” Intrometo o conto “As margens da alegria”, de Guimarães Rosa, na leitura do belo livro de Georges Didi-Huberman, Sobrevivência de vaga-lumes (Editora da UFMG, 2011), para que se contextualize, outra vez em quando, a modernidade tardia brasileira. O Rosa intrometido realça a metodologia adotada por Didi-Huberman, em que a arte e os seus produtos solicitam a reflexão filosófica. Realça, ainda, o paradigma das trevas e da luz, oriundo do Inferno e do Paraíso dantescos. O contraste se reproduz hoje nos escritos legados por Pier Paolo Pasolini, Walter Benjamin, Giorgio Agamben e Georges Bataille. Genocídio e fulgurações da alegria. Barbárie bélica e clarões de beleza. Poluição e estilhaços de esperança. Perda da voz política e experiência interior. Conservadorismo acachapante e sobrevivência em lascas. A luzinha viva, intermitente e reservada dos vaga-lumes perturba a alta voltagem festiva e feérica dos refletores na sociedade do espetáculo. Sobrevivência dos vaga-lumes não se contenta em apenas descrever o não à luz espetacular da televisão e dos shows. Ao nomear uma comunidade de vaga-lumes, pretende organizar o pessimismo moderno e sustentar um espaço de imagens artísticas contraideológicas que visam a minar a fúria das pressões obscurantistas. Por não subscrever o horizonte entrevisto pela visão teológica ou apocalíptica de Giorgio Agamben, deseja afiar o olhar na pedra de amolar das imagens que transitam próximas a nós, minúsculas e fugidias. René Char: “Se moramos num clarão, ele é o coração do eterno.” O saber-vaga-lume é, às vezes, um não saber, e é sempre saber clandestino, intempestivo e hieroglífico. Enriquece-se com realidades constantemente submetidas à censura e à tortura. Coletados por Charlotte Beradt nos campos de concentração, os sonhos “nada explicam, nem a natureza do nazismo nem a psicologia dos sonhadores, embora forneçam uma ‘sismografia’ íntima da história política do 3º Reich”.
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Pascal: “Ninguém morre tão pobre a ponto de não legar coisa alguma.” Para desconstruir o pensamento crítico da modernidade culpada, Didi-Huberman alicerça seu livro em duas obras. Na de Pier Paolo Pasolini, artista que, tendo inventado o viver-vagalume em tempos de Mussolini, acabará por abjurar, frente à ressurgência do fascismo sob a forma de “genocídio cultural”, o saber bruxuleante e resistente. Alicerça-o, ainda, na obra de Giorgio Agamben, filósofo que afirma ter sido o vaga-lume incinerado pelos holofotes midiáticos e objetivos da comunicação social. Viramos povos desprovidos de luz própria. DidiHuberman se alimenta dos escritos de Pasolini e de Agamben para engrandecê-los e, a justo título, lamentá-los. Tomemos o caso do primeiro. Os vaga-lumes entram no universo de Pasolini na carta que escreve a um amigo em 1941. O futuro cineasta se aventura pelo campo bolonhês no mês em que Mussolini e Hitler apertam as mãos no Berghof. Noite sem lua, os amigos sobem até a Pieve del Pino onde se deparam com uma revoada de vaga-lumes: “nós os invejamos porque se amavam, porque se tocavam em voos amorosos e luzes.” O recatado alvoroço sensual dos adolescentes confina com a luminosidade mágica do desejo animal e “permanece como a alegria inocente e poderosa que é alternativa para os tempos sombrios ou por demais iluminados do fascismo”. Conclui: a obra literária e cinematográfica de Pasolini tira sua força dali. É atravessada por momentos de exceção em que os personagens são vaga-lumes − “seres humanos luminescentes, dançarinos, errantes, inapreensíveis e, enquanto tal, resistentes”. Pasolini desenvolve o tema do “genocídio cultural” a partir de 1969. As velhas gesticulações de Mussolini são suplantadas por um fascismo mais corrosivo. Intelectuais e artistas não “percebem que os vaga-lumes estão desaparecendo”, escreve Pasolini em 1975. Apequenada a metáfora, sua desvalorização mortifica a visão política, ideológica e estética. Foi possível resistir ao fascismo histórico. O novo fascismo “combate os valores, as almas, as linguagens, os gestos e os corpos do povo”. Analisa Didi-Huberman: “Nos últimos anos de vida, Pasolini se vê constrangido a abjurar o que tinha sido o alicerce de toda sua energia poética, cinematográfica e política.” Designar a máquina totalitária é necessário. Conceder-lhe a vitória? Pasolini não pôde, não quis mais enxergar o espaço intersticial, intermitente e nômade das aberturas, dos clarões possíveis e súbitos. Rosa, na esteira de Maiakóvski em conversa com o poeta-suicida Sierguéi Iessiênen: “É preciso arrancar alegria ao futuro.”
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CIP-Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Santiago, Silviano, 1936S226s Aos sábados, pela manhã [recurso eletrônico] : sobre autores & livros / Silviano Santiago; organização Frederico Coelho. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Rocco Digital, 2013. recurso digital ISBN 978-85-8122-232-5 (recurso eletrônico) 1. Literatura brasileira - História e crítica. 2. Livros eletrônicos. I. Coelho, Frederico. II. Título.
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Sobre o autor
SANTIAGO é um dos mais prolíficos intelectuais brasileiros. Poucos autores conseguiram conjugar tão bem, e de forma tão definitiva, obras ficcionais e críticas. Escritor, poeta, professor, crítico literário e ensaísta, foi três vezes vencedor do Jabuti – com Em liberdade (romance, 1982), Uma história de família (romance, 1993) e Keith Jarrett no Blue Note (contos, 1997). Seu romance Heranças recebeu o Prêmio ABL de Ficção 2009 e ficou entre os finalistas do Jabuti e do Portugal Telecom. Suas obras foram traduzidas para o inglês, francês e espanhol. Nasceu em Formiga, no interior mineiro, em 1936, mas passou a adolescência em Belo Horizonte. Formou-se em Letras Neolatinas na UFMG e fez doutorado na Sorbonne, em Paris. Manteve atividades docentes no Canadá, nos Estados Unidos e na França. Hoje vive no Rio de Janeiro e é professor aposentado da Universidade Federal Fluminense. Escreve nos principais veículos da imprensa brasileira.
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ILVIANO